31.10.05

Lições Elementares da Pedra - VI

Cosmogonia

Ao pirilampo pedra-abdome acesa
A duplas-asas-olhos defecados
Em duplos sóis-sistemas-orbitados
Em pedras duplas asas-baronesas.

Em pirilampo o ventre pétreo e cru
Em pedra-cinturão estilhaçada
Que dessa granulada defecada
Estrume de uma delas pedra-azul.

A outra pedra-sol, foi pedra-tudo
E pirilampo gesta pedra-mundo
Defeca noutro olho pedra-lua.

Deventre pirilampo, pedra-sua
É pedra de meeiro, pedra-gente
O bagaço-de-pedra da semente.


Lucas Tenório

28.10.05

Lições Elementares da Pedra - V

O ventre-mangue

O ventre é pedra oca
É pedra ainda sangue
Que na pedra de mangue
É loca de maloca.

É ventre de vazio
Que atomizado fica
Na pedra que se estica
Em coito-ventre-cio.

É pedra de estio
Que a sede pavimenta
Na construção sangrenta
Do ovo-ventre-rio.

Do ovo, ventre-pedra
De pedra ventre-feto
Em feto-ventre nada
De comunhão de água.

Se água é pedra-nada
(E disso a pedra nega)
A terra-pedra cega
Faz dela pedra-aguada.

E nessa pedra sangue
Flutua a pedra-gente
Em pó deliquescente
De pedra-pó de mangue.

No ventre-pedra mangue
A pedra se completa:
O ovo-pedra cresta
Na gente-pedra exangue.

A gente-pedra exangue
É recife de pedra
De urbe-sal que medra
Em gente-pedra-sangue.

Em sangue-pedra-quente
O ventre pari ponte
De rente-pedra fonte
Em mangue-pedra-gente.


Lucas Tenório

27.10.05

Nordestinados - Marcus Accioly

"A safra que se espera
A mão do dono apanha,
Porque a mão que lavra
A pedra à mão, não ganha.
Porém recolhe a larva
Da pedra não estranha,
Pois se colher da safra
A mão que lavra apanha.

A mão que lavra sente
A pedra que se alarga
Quando o suor escorre
Da larga fronte amarga.
A pedra, mais estéril
Que o chão de argila ou marga,
Transforma a vida dura
Na vida mais amarga.

A pedra amarga a vida
Contrária à pedra, fraca,
A vida que se corta
Na pedra-gume, faca.
Porém, a vida pouca,
A própria pedra ataca
E, sendo apenas corte,
Se torna às vezes faca.

A vida corta a pedra
Mas ao cortar se corta
Na pedra quase-viva
A vida quase-morta.
A vida, igual à safra
Que o grão da pedra aborta,
De novo volta à pedra
Depois da vida, morta."

A PEDRA LAVRADA

In Nordestinados, Marcus Accioly,
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1971,
pp.18-19

26.10.05

Palmares, Canudos e os Negros Norte-Americanos

Soube, pelos telejornais, da recente morte de uma ativista negra norte-americana, Rosa Parks, que marcou a história com um gesto: negou-se a ceder o seu lugar, num ônibus, a um homem branco, na época – década de cinquenta - em que havia nos Estados Unidos a determinação de que os negros deveriam andar nos assentos de trás dos coletivos e os brancos na frente. O então ainda desconhecido - e segundo as matérias dos jornais - Martin Luther King, organizou, a partir desse episódio, um boicote às empresas de ônibus que levou o governo e o poder econômico à paulatina revisão dessas discriminações.

O que me despertou uma notícia como essas foi a renovada reflexão e certeza do quanto nós, a maioria dos brasileiros, estamos distantes de entendermos como poderíamos efetivamente mudar o nosso país, e principalmente num momento como esse, em que vivemos uma profunda crise institucional e dos poderes estabelecidos.

Creio que apostamos – essa considerável maioria - demasiadamente na eventual força mobilizadora e transformadora das nossas instituições, o que a princípio seria, não fosse isso parte de um condicionamento e alienação estruturais, um sinal muito positivo de respeito e confiança na nossa Democracia e em seus valores fundamentais. Entretanto, todos nós brasileiros sabemos – talvez a minoria restante - como essa nossa democracia - por várias razões que se fôssemos comentar razoavelmente requereria um extenso texto à parte - é muito mais formal que procedimental, e como nossas instituições, ou a maioria, estão visceralmente contaminadas por uma cultura sócio-político-econômica corrupta, autoritária, patrimonialista, nepotista, de tráfico de influência e abuso e desvio de poder.

Particularmente me lembro da época em que Miguel Arraes voltava ao governo de Pernambuco, em 1987, e que simultaneamente Jarbas Vasconcelos era prefeito do Recife. Eu, na época com 17 anos, acreditava nas transformações, porque o discurso da “Esquerda” de então, no Estado, era o melhor possível: de mudança, de conquistas para os excluídos, de igualdade social, de reforma estrutural. Passaram os governos, Jarbas deslocou-se mais para o “Centro”, Arraes morreu (em que pesem as coisas boas realizadas, a bem da justiça), e continuamos “reféns” de retóricas políticas formais salvacionistas, na figura de líderes políticos “de carreira” (alguns bem intencionados), com um Estado e um país agonizando em problemas como a violência, a miséria, a fome, a corrupção, a concentração de renda, a desigualdade social. Antevejo por isso, posso estar enganado, o recém-nascido P SOL como o PT de amanhã - com todo respeito ao PT e aos quadros do P SOL -, e por considerar os adventícios desse nosso processo político-eleitoral suficientemente “contaminados” pelas práticas nefastas a ele imanentes, que mesmo dialeticamente seria difícil pensá-los como vetores de mudanças orgânicas.

Penso que haja esse equívoco. A cidadania brasileira deveria verdadeiramente e diretamente mobilizar-se, como fez a ativista norte-americana, no enfrentamento aos nossos problemas sócio-político-econômico-culturais. Entender que o que possa parecer um simples e débil gesto, como o poderia ter sido o da norte-americana, representa – se disseminado - (difícil, sabemos, para a nossa tradição patriarcal, paternalista, autoritária e centralizadora) uma ação consistente contra o cerne do problema, e que se universalizado redundaria num golpe decisivo para a reprodução e portanto continuidade do que se combate, provocando a sua transformação.

Não falo necessariamente em pegar em armas, em revolução. Penso em ações reformistas mesmo. Terá acontecido isso (essa filosofia) no Brasil (armas à parte) em Palmares, na Inconfidência Mineira, Revolução Pernambucana, Canudos, Tenentismo, Revolução Constitucionalista, Movimento pela Anistia, Diretas Já, Caras-Pintadas?

Não sei exatamente. Acho que nesses momentos da história do Brasil (talvez a exceção seja Palmares e Canudos) sempre estiveram presentes de forma pré e proeminente as instituições formais, inclusive nos últimos deles a força da Mídia, que como tal penso que poderia ser também considerada como uma “instituição” nacional.

Palmares e Canudos foram gritos contra o poder hegemônico e que partiram dos marginalizados, e, curiosamente, veja-se: significaram (além do aspecto de contestação e afirmação étnica e racial) uma ruptura (e daí a semelhança com a repercussão do gesto da norte-americana) no sistema do modo de produção vigente. Palmares contra o latifúndio e a monocultura; Canudos, não muito diferentemente, contra a Velha República e a incipiente e concentradora industrialização. A norte-americana contra o modo de pensar capitalista.

Podemos dizer, portanto, que nos falta uma insatisfação da cidadania canalizada para o exercício próprio da cidadania, dos direitos e prerrogativas civis, e talvez dessa forma a construção de uma instituição que não seja verticalizada, de cima para baixo. Uma instituição horizontal, dos cidadãos. Uma pátria nova, verdadeiramente democrática. É evidente que não podemos abrir mão das instituições como elas são e estão colocadas agora. Penso, todavia, que podemos, a partir de gestos congêneres aos da ativista negra norte-americana (e da filosofia que esteve presente em Palmares e Canudos), e de tantos outros gestos de outros lugares do mundo, refundar a nossa sociedade, pacificamente, através de fissuras e “sangrias” nos blocos reacionários de poder, rumo a um estado futuro de coisas mais justo, mais equilibrado, mais ético, mais humano.

Lucas Tenório

25.10.05

Monólogo de uma sombra - Augusto dos Anjos

Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!

A simbiose das coisas me equilibra.
Em minha ignota mônada, ampla, vibra
A alma dos movimentos rotatórios...
E é de mim que decorrem, simultâneas,
A saúde das forças subterrâneas
E a morbidez dos seres ilusórios!

Pairando acima dos mundanos tectos,
Não conheço o acidente da Senectus
— Esta universitária sanguessuga,
Que produz, sem dispêndio algum de vírus,
O amarelecimento do papirus
E a miséria anatômica da ruga!

Na existência social, possuo uma arma
— O metafisicismo de Abidarma —
E trago, sem bramânicas tesouras,
Como um dorso de azêmola passiva,
A solidariedade subjetiva
De todas as espécies sofredoras.

Com um pouco de saliva quotidiana
Mostro meu nojo à Natureza Humana.
A podridão me serve de Evangelho...
Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques
E o animal inferior que urra nos bosques
E com certeza meu irmão mais velho!

Tal qual quem para o próprio túmulo olha,
Amarguradamente se me antolha,
À luz do americano plenilúnio,
Na alma crepuscular de minha raça
Como uma vocação para a Desgraça
E um tropismo ancestral para o Infortúnio.

Aí vem sujo, a coçar chagas plebéias,
Trazendo no deserto das idéias
O desespero endêmico do inferno,
Com a cara hirta, tatuada de fuligens
Esse mineiro doido das origens,
Que se chama o Filósofo Moderno!

Quis compreender, quebrando estéreis normas,
A vida fenomênica das Formas,
Que, iguais a fogos passageiros, luzem...
E apenas encontrou na idéia gasta,
O horror dessa mecânica nefasta,
A que todas as cousas se reduzem!

E hão de achá-lo, amanhã, bestas agrestes,
Sobre a esteira sarcófaga das pestes
A mostrar, já nos últimos momentos,
Como quem se submete a uma charqueada,
Ao clarão tropical da luz danada,
Espólio dos seus dedos peçonhentos.

Tal a finalidade dos estames!
Mas ele viverá, rotos os liames
Dessa estranguladora lei que aperta
Todos os agregados perecíveis,
Nas eterizações indefiníveis
Da energia intra-atômica liberta!

Será calor, causa úbiqua de gozo,
Raio X, magnetismo misterioso,
Quimiotaxia, ondulação aérea,
Fonte de repulsões e de prazeres,
Sonoridade potencial dos seres,
Estrangulada dentro da matéria!

E o que ele foi: clavículas, abdômen,
O coração, a boca, em síntese, o Homem,
— Engrenagem de vísceras vulgares —
Os dedos carregados de peçonha,
Tudo coube na lógica medonha
Dos apodrecimentos musculares!

A desarrumação dos intestinos Assombra!
Vede-a! Os vermes assassinos
Dentro daquela massa que o húmus come,
Numa glutoneria hedionda, brincam,
Como as cadelas que as dentuças trincam
No espasmo fisiológico da fome.

É uma trágica festa emocionante!
A bacteriologia inventariante
Toma conta do corpo que apodrece ...
E até os membros da família engulham,
Vendo as larvas malignas que se embrulham
No cadáver malsão, fazendo um s.

E foi então para isto que esse doudo
Estragou o vibrátil plasma todo,
À guisa de um faquir, pelos cenóbios?! ...
Num suicídio graduado, consumir-se,
E após tantas vigílias, reduzir-se
A herança miserável de micróbios!

Estoutro agora é o sátiro peralta
Que o sensualismo sodomista exalta,
Nutrindo sua infâmia a leite e a trigo.
Como que, em suas células vilíssimas,
Há estratificações requintadíssimas
De uma animalidade sem castigo.

Brancas bacantes bêbedas o beijam.
Suas artérias hírcicas latejam,
Sentindo o odor das carnações abstêmias,
E à noite, vai gozar, ébrio de vício,
No sombrio bazar do meretrício,
O cuspo afrodisíaco das fêmeas.

No horror de sua anômala nevrose,
Toda a sensualidade da simbiose,
Uivando, à noite, em lúbricos arroubos,
Como no babilônico sansara,
Lembra a fome incoercível que escancara
A mucosa carnívora dos lobos.

Sôfrego, o monstro as vítimas aguarda.
Negra paixão congênita, bastarda,
Do seu zooplasma ofídico resulta...
E explode, igual à luz que o ar acomete,
Com a veemência mavórtica do ariete
E os arremessos de uma catapulta.

Mas muitas vezes, quando a noite avança,
Hirto, observa através a tênue trança
Dos filamentos fluídicos de um halo
A destra descarnada de um duende,
Que, tateando nas tênebras, se estende
Dentro da noite má, para agarrá-lo!

Cresce-lhe a intracefálica tortura,
E de su'alma na caverna escura,
Fazendo ultra-epilépticos esforços,
Acorda, com os candieiros apagados,
Numa coreografia de danados,
A família alarmada dos remorsos.

E o despertar de um povo subterrâneo!
É a fauna cavernícola do crânio
— Macbeths da patológica vigília,
Mostrando, em rembrandtescas telas várias,
As incestuosidades sanguinárias
Que ele tem praticado na família.

As alucinações tácteis pululam.
Sente que megatérios o estrangulam...
A asa negra das moscas o horroriza;
E autopsiando a amaríssirna existência
Encontra um cancro assíduo na consciência
E três manchas de sangue na camisa!

Míngua-se o combustível da lanterna
E a consciência do sátiro se inferna,
Reconhecendo, bêbedo de sono,
Na própria ânsia dionísica do gozo,
Essa necessidade de horroroso,
Que é talvez propriedade do carbono!

Ah! Dentro de toda a alma existe a prova
De que a dor como um dartro se renova,
Quando o prazer barbaramente a ataca...
Assim também, observa a ciência crua,
Dentro da elipse ignívoma da lua
A realidade de uma esfera opaca.

Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa,
Abranda as rochas rígidas, torna água
Todo o fogo telúrico profundo
E reduz, sem que, entanto, a desintegre,
A condição de uma planície alegre,
A aspereza orográfica do mundo!

Provo desta maneira ao mundo odiento
Pelas grandes razões do sentimento,
Sem os métodos da abstrusa ciência fria
E os trovões gritadores da dialética,
Que a mais alta expressão da dor estética
Consiste essencialmente na alegria.

Continua o martírio das criaturas:
— O homicídio nas vielas mais escuras,
— O ferido que a hostil gleba atra escarva,
— O último solilóquio dos suicidas —
E eu sinto a dor de todas essas vidas
Em minha vida anônima de larva!"

Disse isto a Sombra. E, ouvindo estes vocábulos,
Da luz da lua aos pálidos venábulos,
Na ânsia de um nervosíssimo entusiasmo,
julgava ouvir monótonas corujas,
Executando, entre caveiras sujas,
A orquestra arrepiadura do sarcasmo!

Era a elegia panteísta do Universo,
Na podridão do sangue humano imerso,
Prostituído talvez, em suas bases...
Era a canção da Natureza exausta,
Chorando e rindo na ironia infausta
Da incoerência infernal daquelas frases.

E o turbilhão de tais fonemas acres
Trovejando grandíloquos massacres,
Há-de ferir-me as auditivas portas,
Até que minha efêmera cabeça
Reverta à quietação da treva espessa
E à palidez das fotosferas mortas!

http://www.secrel.com.br/jpoesia/augusto08.html#sombra

Malformação congênita - Herculano Alencar

[A propósito de Augusto dos Anjos]

Nascido, que fui, da teratogenia,
sobrevivi na luta embrionária.
Herdei do acaso a verve ordinária,
que bufa no meu peito em poesia.

A minha mente turra e refratária
tem com a morte tal promiscuidade,
que dormem juntas desde tenra idade
na morbidez da vida placentária.

Sou como um filho do amor funesto,
que fez gerar os frutos do incesto
entre a malevolência e a rejeição.

Doei-me, órfão, para a obstetriz,
que me adotou feito uma cicatriz,
que ainda hoje dói em suas mãos.

Desenvolvimento e Subdesenvolvimento - Josué de Castro

"O subdesenvolvimento não é, como muitos pensam equivocadamente, insuficiência ou ausência de desenvolvimento. O subdesenvolvimento é um produto ou um subproduto do desenvolvimento, uma derivação inevitável da exploração econômica colonial ou neocolonial, que continua se exercendo sobre diversas regiões do planeta".


Os países do Terceiro Mundo são subdesenvolvidos, não por razões naturais - pela força das coisas - mas por razões históricas - pela força das circunstâncias. Circunstâncias históricas desfavoráveis, principalmente o colonialismo político e econômico que manteve estas regiões à margem do processo da economia mundial em rápida evolução.7

Na verdade, o subdesenvolvimento não é a ausência de desenvolvimento, mas o produto de um tipo universal de desenvolvimento mal conduzido. É a concentração abusiva de riqueza - sobretudo neste período histórico dominado pelo neocolonialismo capitalista que foi o fator determinante do subdesenvolvimento de uma grande parte do mundo: as regiões dominadas sob a forma de colônias políticas diretas ou de colônias econômicas.8

O subdesenvolvimento é o produto da má utilização dos recursos naturais e humanos realizada de forma a não conduzir à expansão econômica e a impedir as mudanças sociais indispensáveis ao processo da integração dos grupos humanos subdesenvolvidos dentro de um sistema econômico integrado. Só através de uma estratégia global do desenvolvimento, capaz de mobilizar todos os fatores de produção no interesse da coletividade, poderão ser eliminados o subdesenvolvimento e a fome da superfície da terra.4

O maior de todos esses erros foi considerar o processo do desenvolvimento em toda parte como semelhante ao desenvolvimento dos países ricos do Ocidente. Uma espécie de etnocentrismo conduziu os teóricos do desenvolvimento a assentar as suas idéias e estabelecer os seus sistemas de pensamento em concepções de economia clássica que ignoravam quase totalmente a realidade sócio-econômica das regiões de economia ocidental capitalista, uma economia socialista em elaboração acelerada e uma rede de abastecimento e de venda no resto do mundo. Não se ocupavam, pois, das estruturas econômicas desse resto do mundo, abandonado quer aos sociólogos, quer, antes, aos folcloristas.7

Esta tremenda desigualde social entre os povos divide economicamente o mundo em dois mundos diferentes: o mundos dos ricos e o mundo dos pobres, o mundo dos países bem desenvolvidos e industrializados e o mundo dos países proletários e subdesenvolvidos. Este fosso econômico divide hoje a humanidade em dois grupos que se entendem com dificuldade: o grupo dos que não comem, constituído por dois terços da humanidade, e que habitam as áreas subdesenvolvidas do mundo, e o grupo dos que não dormem, que é o terço restante dos países ricos, e que não dormem, com receio da revolta dos que não comem.6

Um dos fatores mais constantes e efetivos das terríveis tensões sociais reinantes é o desequilíbrio econômico do mundo, com as resultantes desigualdades sociais. Constitui um dos maiores perigos para a paz o profundo desnível econômico que existe entre os países economicamente bem desenvolvidos de um lado, e de outro lado os países insuficientemente desenvolvidos. Desnível que se vem acentuando cada vez mais, intensificando as dissensões sociais e gerando a inquietação, intranqüilidade e os conflitos políticos e ideológicos.6

Ora, o problema do subdesenvolvimento não é exclusivo destes países; é antes um problema universal, que só pode ter soluções igualmente em escala universal. Viver na opulência, num mundo em que 2/3 estão mergulhados na miséria, não é apenas perigoso, é um crime. A tensão social na qual se vive hoje é, na maior parte das vezes, o produto desta conhecida injustiça social, uma vez que os povos dominados tomaram consciência da realidade sócio-econômica do mundo, nesta fase da história da humanidade que vivemos, fase de transformações explosivas, caracterizadas essencialmente por explosões diversas: a explosão psicológica dos povos explorados, não menos perigosa do que a explosão atômica com a qual se abriu uma nova era no nosso planeta: a era atômica.8

É urgente restabelecer o equilíbrio econômico do mundo aterrando o largo fosso que separa os países bem desenvolvidos dos países subdesenvolvidos, sem o que é bem difícil que se consiga a verdadeira paz e a tranqüilidade entre os homens. Nenhuma tarefa internacional se apresenta mais árdua, mas ao mesmo tempo mais promissora para o futuro do mundo, do que a do desenvolvimento econômico destas áreas mais atrasadas, onde os recursos naturais e os potenciais geográficos se conservam relativamente inexplorados.6

A paz depende mais do que nunca do equilíbrio econômico do mundo. A segurança social do homem é mais importante do que a segurança nacional baseda nas armas.8

Igualmente falso é o conceito de desenvolvimento avaliado unicamente à base da expansão da riqueza material, do crescimento econômico. O desenvovimento implica mudanças sociais sucessivas e profundas, que acompanham inevitavelmente as transformações tecnológicas do contorno natural. O conceito de desenvovimento não é meramente quantitativo, mas compreende os aspectos qualitativos dos grupos humanos a que concerne. Crescer é uma coisa; desenvolver é outra. Crescer é, em linhas gerais, fácil. Desenvolver equilibradamente, difícil.9

Cada vez se pergunta com mais insistência se desenvolver-se significa desumanizar-se, nesta frenética busca de riqueza, de acordo com a fórmula preconizada pelo Ocidente de maximizar os lucros em vez de maximizar as energias mentais que enriquecem com mais rapidez a vida dos homens e podem dar-lhes muito mais felicidade.8

O problema do desenvolvimento do Terceiro Mundo, e mesmo o do mundo inteiro que ainda se apresenta subdesenvolvido sob certos aspectos, é antes de tudo um problema de formação de homens. Se a revolução industrial dominou o século XIX, é a revolução cultural que deve dominar o século XX, isto é, a criação de uma cultura capaz de encontrar verdadeiras soluções para os grandes problemas da humanidade.8

O subdesenvolvimento é uma forma de subeducação. De subeducação, não apenas do Terceiro Mundo, mas do mundo inteiro. Para acabar com ele, é preciso educar bem e formar o espírito dos homens, que foi deformado por toda parte. Só um novo tipo de homens capazes de ousar pensar, ousar refletir e de ousar passar à ação poderá realizar uma verdadeira economia baseada no desenvolvimento humano e equilibrado.8

As contradições do desenvolvimento são múltiplas. Desenvolvimento significa ao mesmo tempo mutação e disciplina. Mas a disciplina impede muitas vezes a mutação. É o conservantismo das sociedades que alcançaram um auto grau de desenvolvimento, que se tomam como modelo ideal de sociedade e passam a combater o desejo da transformação.8

Encarar aspectos isolados do problema na luta contra o subdesenvolvimento parece-nos algo ultrapassado, pois sabemos que as fórmulas tradicionais, as medidas isoladas e as concessões limitadas não bastam. A gravidade do problema requer urgentemente a adoção de uma estratégia global do desenvolvimento, comportamento e medidas convergentes por parte dos países desenvolvidos, assim como dos países em vias de desenvolvimento.7

Só há um tipo de verdadeiro desenvolvimento: o desenvolvimento do homem. O homem, fator de desenvolvimento, o homem beneficitário do desenvolvimento. É o cérebro do homem a fábrica de desenvolvimento. É a vida do homem que deve desabrochar pela utilização dos produtos postos à sua disposição pelo desenvolvimento.8
__________________________________

4 - A EXPLOSÃO DEMOGRÁFICA E A FOME NO MUNDO
Trabalho publicado na revista Civillitá delle Machine, de julho/agosto de 1968, Roma. Incluído no livro Fome, Um Tema Proibido. Última Edição civilização Brasileira 2003. Organizadora: Anna Maria de Castro.

6 - A CIÊNCIA A SERVIÇO DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Publicado na revista Tiers Monde, vol. V nº 20, outubro-dezembro de 1964, Paris. Incluído no livro Fome, Um Tema Proibido. Última Edição civilização Brasileira 2003. Organizadora: Anna Maria de Castro.

7 - DE BANDUNG A NOVA DELHI: A GRANDE CRISE DO TERCEIRO MUNDO
Publicado na Revue Générale Belge, nº 4, abril de 1968, Bruxelas.Traduzido do francês por Luísa Ducla Soares

8 - ESTRATÉGIA DO DESENVOLVIMENTO
Trabalho apresentado na Conferência Environment and Society in Transition e publicado no Annals of the New York Academy of Sciences, sob o patrocínio da American Geographical Society e da American Division os the World Academy of Art and Science, Nova Iork, 1970. Incluído no livro Fome, Um Tema Proibido.

9 - SUBDESENVOLVIMENTO: CAUSA PRIMEIRA DE POLUIÇÃO
Trabalho apresentado no "Colóquio sobre o Meio", em junho de 1972, em Estocolmo. Publicado na revista O Correio da UNESCO, ano I, nº 3, março de 1973. Incluído no livro Fome, Um Tema Proibido. Última Edição civilização Brasileira 2003. Organizadora: Anna Maria de Castro.

http://www.josuedecastro.com.br/port/index.html

24.10.05

Lições Elementares da Pedra - IV

O ponto ocaso

Pondo à noite o crivo no vaso
e a fenda em orifício permeável
feita a luz o risco do atrito
que do crivo faz um grito.

Se descoberto o vaso em cálice
e em verbo o silêncio interdito
que se diga o motivo presto:
A janela em sol postiço.

E manchado o chão em vinho
e em luz o quarto está sozinho
mas a terra, qual esponja
beberá o sol ao teto.

Dessa lâmpada, leve o inseto
embriagado em éter-nectar
num esquife rebentado
cairá decrépito.

Pondo à noite o crivo na chama
e ao dissipar a voz carbonizada
restará ao sol da vela
a amplidão pedrada.


Lucas Tenório

Poema da Noite Menor - César Leal

Desça a noite suavemente
ao encontro das auroras
movendo remos de sono.

Venha a linguagem das pedras
sangre o peito dos rochedos
à lança dos furacões.

Bandeiras de vento ondulem
na terra oculta dos sonhos
as trevas sepultem luas.

Nuvens caídas repuxem
meu corpo de luz suspenso
pelas cordas do arco-íris.

Nos labirintos da morte
- a espessura do silêncio
e a rota desconhecida.

O Arranha-Céu e outros poemas, César Leal,
Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1994, contracapa.

Luz Azul - Vilma Orzari Piva

Ainda que o sol empreste tua cor
Para dourar minha pele
E a noite me banhe com a luz leitosa da lua
Nada resplandecerá, senão pela luz azul
A varar pelas meninas de teus olhos castanhos
Pondo-me a brincar no jardim do céu
Sob chuvas de flores de São Miguel.

Num leve toque de vento
Girando-me como um cata-vento
Arrepiando minh´ alma comovida
Em brisas de cirandas
Do meu amor à tua vida,
Num campo de força
Nutrindo cantantes sempre-vivas.

Anuncias meu corpo esvoaçante
Presa no teu manto cintilante
De encantos e ternuras
De malícias e tonturas
De instintos e bravuras
Entre os cílios que desnudam o teu rosto
Instalas toda plenitude do nosso amor
Na mais linda das quimeras
Ao transpor o teu azul
Em regas na minha primavera.

velho script - Edimo Ginot

o dia

sempre insiste

em mostrar a mesma cara

como se alguma coisa mudasse


a bem da verdade

que sempre se repete

nós também nos repetimos

rezando sempre a mesma prece


não sei o que quero da vida

nem sei o que ela quer de mim

só sei que fico olhando pro dia

e ele olhando pra mim


13/07/2005

20.10.05

O amálgama cultural de Antonio Nóbrega

Multiartista, o pernambucano Antonio Nóbrega vai além da arte fronteiriça entre erudito e popular, mergulha na cultura do povo, envereda pela pesquisa e já quer conceber instrumentos musicais e uma linguagem brasileira de dança (D.O. Leitura / Agosto 2001)












www.francebrazil.com/

Foto de Fernanda Levy
http://www.fernandalevy.com/parisiando/anodobrasilnafranca/

Descampada, vasta e absoluta a praça surgiu à frente do músico, compositor, cantor, ator e dançarino pernambucano Antonio Nóbrega como um verdadeiro palco de prazeres. Das 11 horas da manhã às dez da noite, ali se exibem em apresentações seqüenciais ou concomitantes, um pouco de tudo aquilo que costuma fascinar esse artista de 48 anos, espécie rara entre nós, há três décadas dedicada a fazer a ponte entre o clássico e o popular sem jamais confundir-se com o folclore ou ser cooptado pelo eruditismo.

Contadores de histórias, encantadores de serpentes, percussionistas, dançarinos e tocadores de rebabe mostravam uma vez mais, e como o fazem todos os dias e há séculos, sua arte visceral nessa praça em pleno coração de Marrakesh, no Marrocos. Revelam-na ali para o mundo, como bem o sabem, já que o público habitual do local provém mesmo dos quatro cantos do globo.

Estávamos em março de 2001 e Nóbrega passou por ali a passeio, mas não por acaso. Dias antes, apresentara-se em Paris, de onde seguiu para Rabat, capital marroquina, onde novamente mostrou seu espetáculo Sol a Pino um misto de exibição e aula, no qual desvenda a procedência de sua arte popular.

Chegou à praça de Marrakesh e encantou-se com um velho que relatava contos idílicos à audiência. Sentiu-se como se escutasse alguém contando As Mil e Uma Noites.

No fundo, porém, seu interesse profissional - foi até ali aprofundar pesquisa que há tempos desenvolve sobre a rabeca. Uma rabeca pode ser ouvida no interior de Pernambuco, embora cada vez menos freqüentemente. De longe, há quem a julgue prima da viola - o que, de fato, é. Mas ela é mesmo muito mais parecida com o violino, de quem é quase filha. Por excelência, é cria da cultura popular nordestina. De onde vêm todos esses instrumentos? Dos árabes. Ou melhor, do rebabe, o instrumento que Nóbrega foi apreciar no Marrocos semanas depois, dedilhava com o carinho e o vigor de um mestre na Praça Tiradentes, centro do Rio, onde lotou casa por dez apresentações em dois fins de semana de abril, fazendo a festa da garotada e alegria de crianças bem crescidas que foram ver seu espetáculo O Marco do Meio-Dia, no Teatro Carlos Gomes.

Trata-se de um bom exemplo da arte que Nóbrega faz hoje. Em O Marco o mote é os cinco séculos do Brasil. Um espelho e um radar servem de ponto de partida para percorrer os marcos históricos do país. Porém, o rol é daqueles que construíram a resistência popular no período: O Quilombo dos Palmares e o Arraial de Canudos, evocados pelo instrumento refratário, essencial à orientação em tempos antigos e terrenos inóspitos.

Mestre do folguedo

Já o radar serve para trazer o público para perto das forças vitais da cultura ao longo do tempo e se exprime por meio de três grandes artistas do povo brasileiro através de"

Pois Recife - e Pernambuco - é onde sempre está o artista. "Meu espírito está sempre por lá", diz pai de dois adolescentes e chefe de uma família integralmente dedicada à arte que, há nove anos, desenvolve na Vila Madalena, em São Paulo, um projeto teatral, musical e de danças populares sugestivamente batizado de "brincante", termo corriqueiro na terra natal de Nóbrega para dizer algo semelhante a folgazão.

Viagens freqüentes, de um ponto a outro do planeta ou de um domínio a outro da arte, ele traça há três décadas em trajetória quase missionária pela cultura popular brasileira - e particularmente, a pernambucana. Sempre em busca do essencial. Ao encontrá-lo, como bom artista inova na criação - e nem sempre sobre o palco. Também em outros campos menos cotados da arte.

Vejamos, por exemplo, o que Nóbrega quer fazer com seus estudos sobre o rebabe - ou a rabeca. Ele explica que o rebabe é tocado sobre a perna. Não e de madeira, mas sim de couro, material que aloja a caixa de ressonância. São pastores nômades, afinal, seus originais inventores, gente que não dispunha em seu hábitat de árvores e madeiras e menos ainda, davam alguma bola para isso.

Seu som foi alimentado pela arte dos berberes, em uma rica cultura popular, tão farta quanto a nordestina.

Do rebabe árabe, nasceu a viola, no norte da Europa, criou a arte da luteria, aquela que constrói. Mas foi pela passagem do rebabe pela península ibérica, onde não existiram violas, é que se chegou á rabeca enfim aportada no Brasil. Ela chega aqui tocada no ombro com pequena ajuda do queixo, o que acabava sendo um apoio inteligente para o canto.

Por assim disser, o rebarbe ressurge no Nordeste brasileiro com formas variadas de rabeca. A cada hora assume ume feição diversa, em um festival de estilos de confecção. Desde que o violino virou o que é hoje, sua madeira é o abato, no tampo superior, e o ácaro, no inferior. Nossa versão popular é rebelde, tem som mais áspero e em geral é feita de mulungu, a árvore que esta ao alcance do sertanejo nordestino. É ela, porém, que toca o mais agudo da sensibilidade de um ouvinte quando se escuta a produção sertaneja mais típica.

Em uma sala do teatro Brincante o lutier Saulo Dantas Barreto, formado na escola Internacional de Luteria em Carmona, na Itália, desenvolve um projeto ousado, valendo-se da diversidade de madeiras encontradas no Brasil e concebido com Nóbrega. Ele parte da barra harmônica da rabeca, que propaga o som pelo tampo, enquanto a de baixo estende a vibração pôr todo o corpo de madeira. A idéia é obter uma madeira cônica, que interligue os tampos de cima e de baixo, de modo que ambos vibrem em conjunto.São técnicas desconhecidas de rabequeiro popular nordestino, que pouco sabe do que se passa no instrumento. De modo que varia a maneira de toca-las no Nordeste, assim como o sotaque que emitem, bem como seu exemplares variam em relação ao rebabe dedilhado em Marrakesh. Nóbrega quer escutar a distancia entre os sotaques.

Pesquisa, assim, o que chama hoje um possível violino brasileiro, um instrumento intermediário, que poderá ser construído, pôr exemplo, de jenipapo ou praúba, todas elas mais porosas que as madeiras usadas para fabricar, pôr exemplo, um legítimo Stradivarius. Mas cuja construção mais rude resultaria em um som apenas ligeiramente mais áspero.

A busca de um possível violino brasileiro é empreitada que casa como luva com outra, para cuja criação Nóbrega pretende contribuir de modo- e que tem tudo a ver com seu perfil de artista empenhado na arte popular em seu relacionamento mais íntimo do que se parece com o erudito. Nóbrega quer ver criada uma linguagem brasileira de dança.

Sim, porque a dança no Brasil reflete no corpo e nas mentes as mesmas linhas divisórias entre o refinado e o popular, o culto e o inculto. A despeito da riqueza de nossas manifestações populares, elas estão longe de ser observadas em uma linguagem de dança.

Um exemplo? No Recife, sempre nele, mas presente no interior do Nordeste também, há até hoje um personagem popular, conhecido como o dançador de caboclinho. É alguém que puxa o cordão e descreve hábil coreografia para uma dança de origem indígena com bailado e coral de trinta a cinqüenta jovens de ambos os sexos. Um deles exerce a arte a 28 anos e se chama Paulinho. Nóbrega o acompanha desde de criança, de olho no universo de seus passos.

Paulinho desconhece dança. Jamais a estudou. Nóbrega, bailarino, formou-se em dança contemporânea e foi aluno de um dos ícones do ramo da Paulicéia, o alemão já falecido, Klauss Viana. Diz que a arte de Paulinho segue critérios intuitivos de movimento, mas sua vitalidade a leva a um alfabeto de passos pôr traz do qual há princípios universais e a lei geral do movimento. Enfim, aquilo que ele sabe por estudo, Paulinho atinge na pratica. E o pesquisador quer chegar à essência dessa arte para começar a criar a tal linguagem brasileira de dança.

Espetáculos - aulas

A despeito dos 23 anos de contato e estudo sobre a dança do caboclinho, Nóbrega diz que seu corpo ainda não assimilou tudo o que quer. Com o que persegue, propõe uma espécie de terceira via para a dança no Brasil, um código que permita de fato expressar seu país. Seriam os códigos disponíveis, extraídos de danças clássicas ou contemporânea de outras culturas, insuficiente para tal? Ele esta convencido de que sim. Pôr isso mesmo, ultimamente seus espetáculos são aulas.

Há muito que aprender. Mas o bailarino brasileiro é uma espécie de ser refratário a tudo o que não faz parte do mundo em que vive, restrito e pouco aberto ao mundo das idéias ou do intelecto inclusive. Alias, tal comportamento não é exatamente uma característica tupiniquim. Deriva daí a dificuldade de Nóbrega em contar com a participação do povo da dança a sua proposta de linguagem.

Ele porem parece movido pela força da tenacidade na vida, desde que em 1963, primogênito entre os quatro filhos do médico João Barros de Almeida, um inveterado seresteiro pernambucano, começou a estudar violino no Recife e, mais tarde, em João Pessoa. Logo formou em casa um conjuntinho de violino, violão e piano com os irmãos. O repertório era composto de hits da época, como Noites de Moscou. Alguém se lembra? Pois incluía ainda música popular brasileira e sucessos da falecida Jovem Guarda. Como convinha, alias, a um jovem típico da classe media alta pernambucana.Logo Nóbrega saltou para orquestras de câmara e cordas. Universitário do primeiro ano de Direito da Universidade Federal de Pernambuco, fez ainda um ano de Letras, como bom apaixonado pôr Literatura. Mas foi por meio de um colega que sua vida tomaria rumo. Antônio José Madureira também estudava na Escola de Belas - Artes. Seu instrumento porem, não era o violino - era o violão. Ao mesmo tempo, cursava aulas de Estética e História da arte na Federal, onde um dos seus mestres era o dramaturgo e escritor paraibano Ariano Suassuna, sobre quem o quase adolescente Nóbrega tinha referencia pôr Ter assistido ao filme Auto da Compadecida, dirigido por Jonas Mello e música do por Capiba, com figurinos de Francisco Brennand.Pois, empenhados em divulgar a arte popular da rabeca, Suassuna e Brennand acabaram cruzando com Nóbrega, que se exibia em seu conjuntinho doméstico. Madureira aproximou os dois. A idéia do escritor e compositor pernambucano era encontrar alguém que tocasse violino e fosse capaz de sair fora do erudito. E, a partir daí, mergulhar, por exemplo, nos sons da rabeca. Queria criar um grupo musical com referencias do povo brasileiro, de canto ou instrumental, que transitasse no terreno fronteiriço com a produção erudita.

Nasceu assim a Orquestra Armorial, ou Quinteto Armorial. "Éramos eruditos enquanto técnica de criação e populares porque podíamos ser reconhecidos pelo publico mais popular do sertão", recorda-se Nóbrega.

Com Madureira na viola, Edilson no violão, Barbosa no marimbau (uma espécie de berimbau), Fernando Farias na flauta (o último flautista que integrou o grupo), e Nóbrega no violino ou na rabeca, o Armorial durou uma década. Os dois colegas ainda se revezavam na percussão de tambores e ganzás, quando fosse o caso.

Eram os anos 70, durante os quais quatro discos foram gravados pelo Armorial, revelando ao público externo a música rural nordestina. Uma música que tinha seu perfil de algum modo parente daquele do choro, na medida em que dentro de si continha a maneira sofisticada de ser executada, mas sua sonoridade mantinha-se popular. A diferença entre ambos está na geografia: o primeiro, une a harmonia européia ao violino, violão, flauta e cavaquinho no cenário urbano. O som do Armorial era eminentemente rural, extraído da rabeca, da viola, do violão e do marimbau.

Arte sem limites

Já a diferença em relação a um outro conjunto, contemporâneo do Armorial e igualmente pernambucano, o Violado, estava na proposta propriamente dita. Este se propunha erudito, o de Nóbrega, popular. O primeiro cantava, o segundo só tocava.

Assim, mergulhando no universo sonoro da música popular nordestina, o Armorial vai se urbanizando e se depara com o frevo e a marcação dos blocos, sem deixar de encontrar uma bachiana pelo caminho que o artista em um cavaquinho. No último dos discos, o conjunto foi mais longe cantou. No caso, entrou um poema de Suassuna, cujo título é sugestivo: Martelo Agalopado.

Pelo menos de seis das peças interpretadas pelo Armorial, Nóbrega estava presente na composição. No restante do repertório, Capiba e Suassuna eram freqüentes assinaturas. O registro fonográfico, feito pela falecida gravadora de Marcus Pereira, se rendeu dinheiro, Nóbrega já não sabe o quanto.

Sabe, sim, que a experiência o revelou uma pessoa dominada pelo espírito da música, mas que não vê limites para sua arte. Foi logo dali se fascinar pelo teatro, onde concebeu inclusive Tonheta, um personagem que o perseguiu por muitas peças, ao longo de 16 anos e a partir de 1980. É um herói que o próprio Nóbrega já descreveu como próximo de Carlitos, Dom Quixote e Pedro Malasartes, expressão da alma nordestina.

Não é preciso dizer que a empreitada acabou revelando mais que o ator, um cantor e um dançarino na carreira de Nóbrega que, com Madureira, formou, logo em seguida, ao fim do Armorial, o Quarteto Romançal. O novo conjunto foi uma espécie de etapa seguinte formulada a partir da gestação de Suassuna. Sucedeu ao Armorial na medida em que, com uma década de vida do pioneiro, era como se a fase de criação de uma linguagem erudita baseada na cultura popular do Nordeste já tivesse sido realizada e ultrapassada.

Assim, expandido limites e fronteiras, Nóbrega mergulhou cada vez mais fundo no popular. Não deixou se incorporar o mamulengo, um teatro de bonecos que hoje quase não tem seguidores. Mesmo quando o artista deixou Recife, há um par de décadas, só cinco craques dessa arte sobreviviam na capital pernambucana. Pois os espetáculos do artista, que desde 1996 enveredou por carreira-solo, não prescindiram desse tipo de exibição.

Lúcido sobre todas as coisas, seus espetáculos encantam várias gerações e freqüentemente contagiam a platéia, do mesmo modo que o carnaval pernambucano arrebata o artista. Desviando do folclore como o diabo da cruz, Nóbrega se devota a uma cultura viva e constantemente recuperada e recriada. Em fevereiro, foi beber dessa cultura onde se apresentou para 10 mil pessoas entre batuques, maracatus e integrantes de Cavalo-Marinho, uma espécie de bumba-meu-boi pernambucano. Embriagou-se de alegria e vitalidade, sentindo os influxos do frevo no bloco, bem ao lado do caixeiro - o tocador de caixa Adelson, de 60 anos de idade. O que tem o caixeiro que arrebata o artista: "É o vai-não-vai, a freada, a parada... tudo excelente."Para o novo milênio, Nóbrega, revigorado por todas as experiências recém-vividas do Recife a Marrakesh, tem pelo menos três projetos. No primeiro, vai realizar uma exposição de instrumentos, da rabeca ao violino e a viola. Uma mostra multidisciplinar, promete.

No segundo, quer dar mais um passo na direção da tal linguagem brasileira de dança, por meio de duetos que pretende exibir com a esposa, bailarina sobre todas as coisas. Vai se chamar "Com Quem É Que Eu Danço Hoje", um painel de todas as danças populares brasileiras.

Já o terceiro projeto é o de uma "cantoria de romances", um show com seis músicos. No meio disso tudo, ainda pretende consolidar uma jovem orquestra de percussão com doze a quinze componentes e gravar um disco de canções para crianças.

Não é pouca coisa. O piano, por si, fala do ecletismo desse artista que ama a essência do popular. Vale a pena acompanhá-lo.

http://www.antonionobrega.com.br/indexbr.htm

Entre a espiral e o quadrado - In Continente Multicultural

Um quadro de Lula Cardoso Ayres na moldura de obras de
Gilberto Freyre e Osman Lins












Por Ana Luiza Andrade

O quadro de Lula Cardoso Ayres “Sinhazinha na janela” contrasta o redondo e o retilíneo, evidenciando respectivamente o massapê associado ao feminino e a geometria seca de formas masculinas de que fala Gilberto Freyre em seu famoso “Nordeste” (1937): a “doçura das terras de massapê contrasta com o ranger de raiva terrível das areias dos sertões”. Exuberante, Freyre preenche a secura do discurso euclidiano ao falar de seu repúdio às curvas, como divisor sexual de uma paisagem patriarcal. As linhas mestras em perfil no quadro, contrastando raso e fundo, dentro e fora, estático e dinâmico, redondo e geométrico, colam figuras à paisagem como no discurso plástico de Freyre: tal leque fechado, de seu perfil desdobram-se outros como em Perfil de Euclydes e Outros Perfis (1944).

Lula Cardoso Ayres contrasta dois planos: o da casa-grande e o da usina com a igrejinha no meio. E seu âmbito se circunscreve à sinhazinha em primeiro plano, evocando o modelo sagrado de dona de casa, com seu vestido azul de santa, o inalcançável de mulheres como em “Quadrinho de Estória” de Guimarães Rosa, o que se estende às mulheres de trabalhadores, também dependentes de um sistema patriarcal. Aparentemente, um modelo de nobreza de casa-grande. Porém, quando se observa com cuidado a cadeira de balanço, percebe-se nela um quê de barroquizante espiralado, mas sugerindo uma tendência geometrizante. De fato, esta espiral, interrogação deitada, sinal de desequilíbrio, parece assinalar para as figuras femininas longilíneas de Lula, inconformadas ao padrão da prole patriarcal, o “gordo” do massapê como exigiria a tradição fertilizante da cana ao se espalhar. Ao invés, as figuras femininas emagrecem com a decadência das casas e a concomitante verticalização dos sobrados, nos inícios da urbanização, figuras cada vez mais fantasmagóricas, de tempos idos. Assim a mulher neste quadro, e em muitos outros do autor, parece residual de uma presença antiga, denotando o declínio social da casa-grande. Não à toa Lula foi o ilustrador (principalmente nos desenhos das sinhazinhas e dos sobrados) de “Sobrados e Mucambos”, de Freyre.

Mas a leitura desta cena da senhora na cadeira de balanço é mais sugestiva quando se pensa o declínio social da casa-grande. O conto “Cadeira de Balanço” (“Os Gestos”,1966), de Osman Lins, ao trazer, coincidentemente, a cena de uma mulher sentada em uma cadeira de balanço, atualiza e complementa a outra. Enfoca o problema social dentro da casa, quando as funções masculinas e femininas entram em conflito com o declínio do poder patriarcal e a ascensão do trabalho assalariado. Aqui os pensamentos de uma grávida oscilam entre dentro e fora, a dificuldade dos afazeres domésticos e o prazer do descanso.

Aí um narrador-pintor também penetra o interior da casa onde está a mulher sentada, desvirginando seu íntimo ao romper o seu segredo de antiga guardiã. Fantasmático, o corpo se cola ao fino contorno da cadeira, desvanescente, residual. Sua infertilidade é substituída pelas montanhas férteis, redondas com a proliferação das canas a engordar as terras de massapê, cuja disseminação, pelo bueiro fálico da usina, centro de produção, coincide com o ponto alto da paisagem vista da janela: “o gordo, o farto, o satisfeito, o mole das formas; seus macios como que de carne; o pegajento da terra; a doçura do massapê” (Freyre, Perfil de Euclydes). Independente da prole do senhor, a usina, sendo agora o centro da casa antiga, desloca a mulher para o sobrado urbano. Embora a oscilação de seus pensamentos possa indicar o contrário, esta figura, substituída, será fantasma do passado que se dobra ao presente capitalista, sem que haja sensível alteração no quadro, do campo (em Lula) para a cidade (em Osman).

Gilberto Freyre parece intermediar o (des)equilíbrio entre o engenho e a usina: as duas linhas correspondentes à da espiral (da cadeira) e à geometrizante (da janela, do bueiro), respectivas tendências patriarcais discursivas de uma paisagem nordestina, ressurgem nas correspondentes linhas mestras das cidades, as gordas e as magras (Sobrados e Mucambos). No entanto, essas linhas mestras, residuais de uma estética barroca, e ao mesmo tempo “enquadrada” na economia industrial de cortes, ressurgem no quadrado mágico do romance Avalovara (1973), convergindo, na plasticidade dos escritos de Osman Lins, para o hibridismo singular entre um construtivismo abstracionista mondrianesco, representativo de uma estética colonizadora européia, e a linha espiralada, barroca e latina, divergente da primeira quanto a seus pontos de fuga. Mais especificamente, esta fuga em espiral é tributária de uma tradição pernambucana que se pode perceber no plástico ensaísmo gilbertiano em seus reflexos fundacionais.

De fato, a montagem do romance de Osman Lins confunde-se à do próprio objeto livro como antiga casa do romance arquitetado num quadrado, ao expor publicamente o que lhe era original: a privacidade. Intrínseca aos valores do antigo ato de leitura, assim como aos da casa, desauratiza-se, perde-se para o espaço consumidor. A imprensa dispensa até o corta-papel, a faca com que se desvirginava o caminho nas páginas, assinalada por Mallarmé como instrumento necessário a um antigo ato de leitura. Automatizados, visíveis no xadrez do Avalovara os fragmentos se opõem à nova matriz industrializada e prostituída do best-seller: pedem cumplicidade no ato de leitura. Mais ainda, a espiral, forma residual de cadeira de balanço ou de portão de ferro forjado, contrastada ao quadrado geometrizante e racional, sem começo ou fim, pode ascender ou descender... Inconclusiva, ela é diferente da repetição do balanço da cadeira: busca um desequilíbrio que acrescenta mais uma volta à história, questiona suas certezas. Como retorno diferido, ela se reencarna novamente na forma de serpentes, cabelos, teresas e tranças de Tunga, este outro artista pernambucano contemporâneo e de renome dentro e fora do Brasil. Retomadas de Osman Lins, as montagens de Tunga (Barroco de Lírios,1997) também se baseiam em quadrados e espirais, como observa Marta Martins Lindote. E tudo sem mencionar Cícero Dias... Mas isso já é uma outra história. (Leia mais na edição 58 - outubro de 2005 - da Revista Continente Multicultural.)









Ana Luiza Andrade é professora da Universidade Federal de Santa Catarina, pesquisadora e autora de Osman Lins: Criação e Crítica, entre outros.
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Leão do Norte - Lenine

Sou o coração do folclore nordestino
Eu sou Mateus e Bastião do Boi Bumbá
Sou o boneco do Mestre Vitalino
Dançando uma ciranda em Itamaracá
Eu sou um verso de Carlos Pena Filho
Num frevo de Capiba
Ao som da orquestra armorial
Sou Capibaribe
Num livro de João Cabral
Sou mamulengo de São Bento do Una
Vindo no baque solto de Maracatu
Eu sou um auto de Ariano Suassuna
No meio da Feira de Caruaru
Sou Frei Caneca do Pastoril do Faceta
Levando a flor da lira
Pra nova Jerusalém
Sou Luis Gonzaga
E eu sou mangue também

Eu sou mameluco, sou de Casa Forte
Sou de Pernambuco, sou o Leão do Norte

Sou Macambira de Joaquim Cardozo
Banda de Pifo no meio do Carnaval
Na noite dos tambores silenciosos
Sou a calunga revelando o Carnaval
Sou a folia que desce lá de Olinda
O homem da meia-noite puxando esse cordão
Sou jangadeiro na festa de Jaboatão

Eu sou mameluco, sou de Casa Forte
Sou de Pernambuco, sou o Leão do Norte

Lenine e Paulo César Pinheiro - Olho de Peixe (1992)

http://www.lenine.com.br/

19.10.05

Habitat

Que habite no meu poema.
Seja ele casa
com as paredes ortogonais.
Sei que não a casa de Vinícius,
sem chão,
o largo dos pacifistas.

O meu modesto poema requer
um mocambo freyreano.
Sei que não o mocambo alagoano
do guerreiro das senzalas,
da tribo dos Palmares,
nova Tupinambá.

O meu verso de taipa e argila,
a sala do sertanejo Lampião.
Sei que não a casa do Conselheiro,
o de lá,
com seu lajedo que ainda hoje cintila
ao sol de Belo Monte.
(a casa do desmonte dos generais)
Reerguida atrás do front,
bem aqui atrás,
na ante-sala-gleba do testamenteiro.

O meu poema requer uma casa,
um monumento ao séquito brasileiro.
Sei que não ao séquito modernista,
regionalista, concreto ou pós-moderno.

O meu poema só neste caderno.
No sêmen dessas poucas palavras.


Lucas Tenório

18.10.05

Lua de Março - Soares Feitosa

Marquei território
numa lua de março:
Butim de guerra,
butim de suusto:
trint'anos,
quero outros trinta!
Sim, eu quero! -
ela disse.

Era uma lua de dezembro, a última:
vertigem e vertical,
o centauro-de-mim
apeou-se e gentilmente perguntou ao vento,
às palmeiras, às tanajuras, às avoantes:

— Quem a jovem, de ar tão calmo,
que fizera o potro estacar,
corcovear, empinar?

Então, as palmeiras,
o Vento, as avoantese
as tanajuras foram voz:

«É uma serrana,
que também se assustou
com o teu estranho ginete.

«E fica sabendo, forasteiro,
aquela que quase te matou de susto
é a mais bela dentre todas as serranas,
desta Serra que chamam Grande,
dita também Ibiapaba:

«A mais bela.
Ela.
Cuidado!» — Disseram.

E numa lua bem próxima,
o mesmo potro, ainda mais selvagem,
risca às porteiras, escarva o chão,
e mais uma vez
as palmeiras, as avoantes
as formigas voadoras,
quando também o Vento frio são chamado
se confirmam:

«Ela
—— que não te esquece.

«Vê, forasteiro,
não chove há meses nesta serra,
mesmo assim, os regatos murmurejam,
o chão está ensopado
de tanta lágrima:

«Dela...
de só.

«Vieste roubá-la, temerário,
neste estranho animal,
que também é tuas costas,
teus pés, tuas mãos?

«Ficaremos sozinhos?
Tens mesmo a coragem de levá-la?
Achas, aventureiro, que deixaremos?»

O potro-centauro não se intimidou
e explodiu resoluto:

«Vim buscá-la!
Li nos olhos dela,
ela disse que vai.»

Ao que a tanajura,
que sempre cria asas a se perder, disse:

«Sinto que você vai roubá-la;
não posso dar jeito.

«Trabalho a terra, trabalho o céu:
sou mais que pássaro,
se ela vai, vou com vocês»

Foi a vez da avoante:

«A tanajura sabe pouco do mundo,
nunca vai muito longe,
voa só um pouquinho,
se enterra outra vez.

«Sou de arribar, arribaçã,
groteio tudo, meu giro é amplo.
Se a moça vai, quer'ir também.»

A palmeira, puro ouro, puro verde, falou:

«Não dou fé em bicho que avoa.
Prefiro o chão, profundo, para enfiar,
prefiro o céu, vazio, para subir!
Donde raiz e céu contemplo tudo:
estou!

«No mesmo canto,
todos os dias, todas as horas,
tenho pacto com o Sol,
que sabe e precisa de mim:
por dentre o leque de minha copa,
os bichos suavizam os olhos
e contemplam, fulgente, o Sol,
de levante e ocidente:
é quando marco sombra vasta.

«Quando não instalo sombra nenhuma,
estou dividindo,
ao meio,
o dia!

«Compadre Sol sabe disto

«O Sol se aproveita do mim
para irisdescer o vale:
sem a franja da minha copa,
o clarão do Sol seria um luzeiro sem matiz.
Ele sabe!

«O tamanho e a direção da minha sombra
bendizem a aurora, abençoam o crepúsculo!

«Mesmo assim,
se a moça vai contigo, forasteiro,
sigo também...

«Onde chegarmos, deito raiz,
raízes que serão tuas,
raízes de céu, raízes de terra,
pois de vasta descendência.»

Eis que o Vento até então calado:

«Não estou gostando desta conversa!

«Já viste, forasteiro,
o perfume da moça, senão quando do meu soprar?

«A brisa, somente a brisa
consegue trazer-te a fragrância da rosa.

«Minhas:
a brisa, a fragrância;
talvez a rosa:
minhas!

«Lavro, para ti, os sons,
as palavras murmuradas,
quand'ela fala sozinha
e diz teu nome.

«Seriam a fugaz arribaçã,
a louca tanajura
que te levam recados?

«Quantos segredos já foi-te contar
a acomodada palmeira?

«Confias, forasteiro, em asa de formiga?

« Que a palmeira arrogante
se retrate da fábula que inventou do Sol!
Posso arrancá-la pela raiz!

«Levo e trago os murmúrios do regato.
Só eu sei peneirar a neblina:
quando mestre Sol timidamente
fabrica o Arco-íris, verdade mesmo,
o Artista sou eu —
tanjo as nuvens!

«Quem sustenta as aventuras da arribaçã?

«Vê se ela atreve um vôo contra mim?!

«Quem dá asas à tanajura
senão este velho Vento?

«E fica sabendo, forasteiro:
para o conforto da moça,
mando soprar ameno;
porém, intrépido e tórrido aos corações,
é assim que estremeço o assobio da noite
às biqueiras da saudade
quando a ausência
é medo.

«É assim que sei soprar,
e assopro. — Disse o Vento

E decidido, compadre Vento finalizou:

«De uma vez por todas,
fica sabendo:
se ela resolveu te seguir,
também vou.

Salvador, madrugada alta, 30.04.1995

Luanda Beira Bahia - Tradição (Africanidade) Colonização

Em Luanda Beira Bahia, de Adonias Filho (Editora Bertrand Brasil S.A., 13ª edição, 1991), temos um romance de ficção, se não de costumes, muito mais de anseios, inquietações e pulsões existenciais. No intertexto de realidades africanas ou africanizadas (afrodescendentes) da obra, as personagens projetam-se em perspectivas histórico-vivenciais de "terra", em projetos e movimentos telúricos de manutenção e superação – talvez – de tradições e (con)tradições. Vem disso a multiplicidade? pergunta-se. Ou seria o próprio livro o monumento a uma grande, celebrada e hegemônica Tradição?

Percebi na fala de Adonias Filho a reescritura redimensionada, e (relativamente) reposicionada – refundada -, da saga da colonização portuguesa em terras "lusodescendentes": brasileiras (Bahia), angolanas (Luanda) e moçambicanas (Beira) – nesta última de forma dedutiva. Observamos no arranjo da narrativa, na constituição ideológica do entrecho do livro e das personagens, uma linha mestra, talvez também psicanalítica, de sobrevalorização do "português", não muito sutilmente diluída na prevalência do traço étnico, disseminador, luso. Uma lembrança/associação metonímica relativamente esmaecida e repintada do acento "valente", civilizado, universal, superior (europeu), incorporador e desbravador do "homem" colonizador, não especificamente da "cultura" (lato sensu) colonizadora em si, coisa que o autor não põe materialmente em relevo, a não ser quando do reconhecimento sub-reptício da confrontada inferioridade das culturas mestiças dos três estados colonizados, verbis:

"O mar levava os homens para muito longe. Voltavam alguns, quando voltavam, e outros desapareciam como se morressem.(...) Tinham que ir e iam como enfeitiçados. O resto do sangue português, talvez, cedo fervendo nas areias de Pontal [próximo a Ilhéus, Bahia] e dentro das cabanas dos pescadores (...) O Sardento, agora, era um deles." (p. 7) (Grifos meus.)

"Jamais esqueceria o que ouvira sobre o pai, a quem não conhecera, menos de um ano tendo vivido no Quibala [Luanda, Angola]. Um homem de passagem, oito ou dez meses, tempo bastante para engravidar a mãe e sumir nas funduras da selva. Caçador de crocodilos, o pai, negociava as peles. Metia-se na selva cinco ou nove dias, a barba nos peitos, o rifle e o machado nas mãos, a lata de querosene e a mochila nas costas. Esperava a treva para acender o facho, encadear o bicho, matava a machado. Filho de Portugal, forte e valente, [Iuta] não entendia o que ele, o pai, encontrara em sua mãe" (p. 44) (Grifos meus.)

Veja-se mais da caracterização do "brasileiro" Sardento, o marinheiro João Joanes, um dos personagens principais do romance, ao lado do seu filho, Caúla (a seguir o destino do pai), que alegoricamente reproduzem, respectivamente, espaços de colonizador e colonizado; dominador e dominado:

"A cara sardenta e vermelha de galo de briga, a cabelaça alourada, azulão nos olhos. Alto não era, mas forte, de peitos largos. Parecia um gringo" (p. 10) (Grifos meus.)

"- O mar, filho, é ruim – ela [a mãe] sempre dizia.
A jindiba falasse e não diria o mesmo. A árvore, que Caúla já aceitava como um pedaço de si próprio, conhecia o mar. As raízes na areia penetravam. Salgado o vento que movia as folhas." (p. 16) (Grifos meus.)

E, nesse contexto, ainda (e mais) dessa Jindiba:

"E ali já estava, alta e forte, quando se fez a casa (...) O silêncio, apesar das ondas e dos pássaros, era próprio desse campo tão próximo do mar. (...) E foi esse silêncio, pondo ouvidos na árvore, que lhe permitiu escutasse as vozes da casa. Em primeiro, durante certo tempo, vozes de homem e de mulher. Choro de criança a seguir, invadindo o ar carregado de maresia." (pp. 3 e 7) (Grifos meus.)

O autor me parece dar visivelmente à arvore, ao lado do mar, o estatuto da imanência da Tradição colonizadora; mas a tradição, como se percebe, tanto originária quanto incorporada. O mito genealógico: "árvore" que ouve o silêncio (onisciência e onipresença); "árvore", portanto, que gera, enquanto sêmen e ventre: [cria e mantém] vozes de homem e mulher; choro de criança invadindo o ar carregado de maresia. De Mar, de tradição – a expressão não-continental da Tradição portuguesa. A jindiba estava lá (e na simbologia da obra sempre esteve), com suas raízes no Pontal, tudo vendo e regendo magicamente: eis de fato a Tradição incorporada e incorporadora; a viga mestra, e dialética, da Colonização.

Em retomada necessária, um pouco mais do porquê, portanto, de se falar em superioridade, incorporação e dominação. Valhamo-nos de mais alguns trechos do livro no mister desse esclarecimento:

" – Mãe [fala Caúla], é a professora Maria da Hora – avisara."
"A mulher [a professora] , acurvada de tão alta e magra, grossas as lentes dos óculos para vencer a miopia, a saia abaixo dos joelhos, a blusa caindo reta que não havia seios, os cabelos de carrapicho, comeu o doce de caju com o queixo se movendo no rosto parado. Negra, as unhas sem pintura, os dedos sem anéis, o calor de contas no pescoço." (pp. 16-17) (Grifos meus.)

" – Roberto Pé-de-Vento chegou com a grande notícia. Sujeito alto e magro, negro de invejar o carvão, o maior amigo de Sardento. Pescador de saber onde os ninhos dos robalos e vermelhos, capaz de escorar sozinho um saveiro pequeno em alto mar, era um pertence do Pontal como a própria jindiba." (pp. 20-21) (Grifos meus.)

"E Caúla [em Ilhéus], erguendo a cabeça, não mais sentiu os próprios olhos. Uma imagem enchia-os. A moça de louros cabelos, olhos azuis, pele de leite e seios pequenos na blusa de renda. Não era a criatura mais linda que já vira porque havia o mar." (p. 26) (Grifos meus.)

"Mãe Filomena se deteve, muito espantada, com as mãos nas ancas. Acreditava [que Caúla era o filho de João Joanes], porque mestre Vitorino dizia. E se aquela femeazinha, Conceição do Carmo, sua neta, aparecesse? Rebolando, atraindo os homens, a vagabunda. Mulatinha de olhos verdes, cabelos corridos, seios grandes e coxas grossas, uma cachorra sempre no cio. Aparecia quase todos os dias, no almoço, caçando os marinheiros [em Salvador]. Seria inevitável o encontro com o grumete de mestre Vitorino." (p. 58) (Grifos meus.)

"Marinheiro que chega, antes que agradeça a viagem ao Senhor dos Navegantes, pensa nas quiandas. Moram nas águas de Luanda, são as sereias, transfiguram-se em peixes, mulheres e palmeiras. Não se pode olhar em torno – as prais e as ilhas – sem que se admita seja uma quianda o coqueiro ou a própria areia cor-de-leite." (p. 40) (Grifos meus.)

A relativa presença da tradição-alienação (aqui mais incorporada) leva o autor a assinalar as semelhanças materiais - algumas outras de cunho predominantemente ideológico foram já demonstradas -, entre as afro-colonizadas Bahia e Luanda - principalmente (e Beira):

"Ali, na coberta [do navio], Caúla via as manchas cinzas [de Angola], muito distantes, e sabia que grande era o mundo dos africanos. Selvas por dentro, feras em liberdade, tribos dançando. Pedaços vivos desse mundo estavam na Bahia, as gordas velhas sentadas frente aos tabuleiros e panelas de acarajé, negras de Angola, a própria Conceição tinha muito daquele sangue." (p. 117) (Grifos meus.)

"As praças velhas [em Luanda] de séculos, cercadas pelos sobradinhos magros e os casarões pesados, tão iguais às de Salvador da Bahia que até o calçamento é o mesmo. Ver os mercados, sobretudo aquele dos pobres, é voltar à Bahia. É andar de novo com os negros, comer as mesmas frutas, pegar no ar o cheiro do dendê fervendo." (p. 40) (Grifos meus.)

É nesse cenário, no cenário da identidade da "terra" (ou terras) colonizada - a que Caúla, contrariamente ao pai, é mais "apegado", apesar do "sangue" - e nessa altura pode-se dizer, sangue mesmo português -, que o filho do marinheiro João Joanes, depois de "navegar", encontra o resgate de sua própria identidade, e tenta estabelecê-la relativamente fora do domínio determinista da tradição. Apaixona-se pela também mestiça Iuta, neta de português e angolana, mas não só isso: sua irmã paterna. Brasil e Angola, num grito de liberdade, unem-se num traço de identidade dos mais fortes: de amor, mas de tradição incorporada. Mas também tragicamente de sangue, tragicamente porque, como dito, sangue do pai português.

Caúla fora sapateiro em Ilhéus, e depois de uma desilusão amorosa com Conceição do Carmo resolvera correr o mundo a navio, mas nunca fora, como se percebe das notas do texto, marinheiro inveterado como o pai Sardento: daí a costura dialética de uma espécie de neo-tradição, resultado da Tradição incorporada ou revista/repensada. Encontra Iuta, alma gêmea, que quase que misticamente compartilha da mesma concepção de mundo de Caúla, e que depois de um acidente em Angola resolve, por iniciativa do amante, voltar com ele para o Brasil, para a casa do Pontal, ao lado da velha jindiba, que do ponto de vista marxista estaria ao mesmo tempo na base e na superestrutura ideológicas do enredo; e voltando Caúla ao velho ofício de sapateiro, deixando o mar, num sentido simbólico de conciliação plena com a tradição revista/incorporada.

Como elemento de ruptura e reafirmação, resgate, da velha, monolítica e hegemônica tradição, surge (novamente e ressurgirá sempre que for necessário) o sangue, o sêmen de João Joanes aos dois filhos: os dois reconhecem, na chegada a casa, o pai como pai de ambos (Iuta é filha do Sardento quando de uma passagem dele por Luanda), e o pior: como avô do futuro filho deles, já que Iuta tragicamente estava grávida do irmão, Caúla. A identidade (ressignificada) torna-se banida, na violação da interdição.

Angola e Brasil, numa relação incestuosa, como "Prometeus" pegos em pecado com um fogo novo, um novo uso, um novo costume, uma nova práxis, ou Adão e Eva na sua ingenuidade e inocência, são devidamente punidos pela Tradição: João Joanes mata os filhos na casa do Pontal, logo após o reconhecimento e a maldição do filho: "Pai dos infernos!" Suicida-se logo após.

Fica clara, em seguida, a reconciliação proposta por Adonias Filho na recomposição do equilíbrio ideológico do enredo, do imperativo do tradicional, "com a Jindiba":

"- Vamos! – exclamou um dos pescadores.
Mulheres surgiram, não muitas, flores dos quintais nas mãos. Debruçaram-se sobre o caixão de jindiba e, dentro, viram o Sardento sozinho, em frente. Abaixo, lado a lado, Caúla e Iuta. (...) Pé-de-Vento [negro pescador do Pontal, amigo de Sardento] atrás, a seguir sem pressa, a pensar que deviam pôr um velame. Um velame de saveiro pequeno na canoa que era o caixão, largá-lo em mar alto, João Joanes e Caúla gostariam daquela viagem como bons marinheiros. O negro, pensando, a andar.
E, com o velame aberto, fariam novamente a viagem por Luanda, Beira e Bahia." (pp. 138-139) (Grifos meus.)

Vale dizer que o autor de Luanda Beira Bahia também nos dá a sua visão – sutil - de acomodação da tradição com a modernidade, sem no entanto, subliminarmente não abrir mão da proeminência do tradicional como elo por excelência de fundação e refundação, re-situação de categorias, estados e valores:

"Muito para se olhar em Ilhéus, muito mesmo, a estrada de ferro e a feira, sobretudo o centro com a lojas, as ruas calçadas e os postes de iluminação. Dia-a-dia, aos poucos, foi descobrindo a cidade. Apertada pelo mar, quase uma ilha, pequeno labirinto de ruas estreitas que chegavam até ao pé dos morros. (...)
"Quando retornava, para encontrar a mãe sempre debruçada na janela, Caúla não via a jindiba. Passava rápido, quase correndo, já não sentindo a presença da árvore que era, agora, um objeto como as pedras amontoadas no oitão da casa. Ela, a jindiba, sabia que o menino não tardaria a empregar-se. (p. 20) (Grifos meus.)

Lucas Tenório

13.10.05

Cantiga do Estradar - Elomar

Tá fechando sete tempo qui miã vida é camiá
Pulas istrada do mundo dia e noite sem pará
Já visitei os sete rêno adonde eu tiã qui cantá
Sete didal di veneno traguei sem pestanejá
Mais duras penas só eu vêno ôtro cristão pra suportá
Só irirmão do sufrimento de pauta véa c'a dô
Ajuntei no isquicimento o qui o baldono guardô
Meus meste na istrada e o vento quem na vida mi insinô
Vô me alembrano na viage das pinura qui passei
Daquelas duras passage nos lugari adonde andei
Só de pensá me dá friage nos sucesso que assentei
Na miã lembrança ligião de condenados nos grilhão acorrentados
Nas trevas da inguinorânça sem a luz do grande Rei
Tudo isso eu vi nas miã andança nos tempo que eu bascuiava o trecho alei
Tô de volta já faiz tempo qui dexei o meu lugá
Isso si deu cuano moço qui eu sai a percurá
Nas inlusão que hai no mundo nas bramura qui hai pru lá
Saltei pur prefundos poço qui o tinhoso tem pru lá
Jesus livrô derna d'eu môço do raivoso me panhá
Já passei pur tantas prova inda tem prova a infrentá
Vô cantano miã trovas qui ajuntei no caminhá
Lá no céu vejo a luã nova cumpaniã do istradá
Ele insinô qui nóis vivesse a vida aqui só pru passá
Nóis intonce invitasse o mau disejo e o coração
Nóis prufiasse pra sê branco inda mais puro
Qui o capucho do algodão
Qui num juntasse dividisse nem negasse a quem pidisse
Nosso amô o nosso bem nosso terém nosso perdão
Só assim nóis vê a face ogusta do qui habita os altos céus
O piedoso o manso o justo o fiel e cumpassivo
Siõ de mortos e vivos nosso pai e nosso deus
Disse qui haverá de voltá cuano essa terra pecadora
Marguiada im transgressão tivesse chêa de violença
De rapina de mintira e de ladrão

Cartas Catingueiras (1983) - Um grande registro do cancioneiro, e onde surgiu a oportunidade de ser mostrado ao público algumas peças de violão-solo compostas a partir da quadra dos dezessete.

http://www.geocities.com/Broadway/Stage/3901/elomar1.htm

11.10.05

SONETO 760 DA BOLSA ESCROTAL - Glauco Mattoso

Estranho monstro informe, esse Mercado!
A mídia já cunhou-lhe cada termo
que indica quando é são e quando enfermo,
se vai ter um chilique ou sente enfado.

"Eufórico" se diz se está agitado.
"Nervoso" se acha a Bolsa um local ermo.
Jamais tal exagero há de fazer-mo
simpático ou, no mínimo, chegado.

Estou cagando e andando se ele oscila
no "humor", se anda "otimista" ou se "reage"
ao peido dum magnata ou se outro estrila!

Que foda-se o monstrengo e alguém se engaje
a sério contra o bicho e que repila
seu jogo, mais sacana que um Bocage!

http://glaucomattoso.sites.uol.com.br/sonetariosan.htm

Cataplaft - Lau Siqueira

com seus tacapes digitais
e tangas pierre cardin
os cariris contemporâneos
invadem o shopping
e jantam champignons
com xerém
no self-service

ajustando as penas
desajustam os cocares
da cultura pagã

cultuam o corpo
em academias
e investem fortunas
da floresta tropical
nas delícias
da nova moda verão

já sem matas
matam-se nas guerras
da pós-modernidade

disputas sangrentas
por hectares de asfalto
ou pontos de venda
de coca
(ou pepsi)

e dançam o rap
da globalização

com as mãos enfiadas
nas algemas ideológicas
do terceiro milênio

http://www.secrel.com.br/jpoesia/lsiqueira.html#cata

ecce homo

Passo
na expectativa
em luz de poste

A sombra
tripartida
em holofote

Chega à janela
do cachorro.

Eu babo
e há chuva.

O cachorro lambe
a janela
e projeta seu reflexo
na minha retina.

Fúria canina.

Lucas Tenório

big end

Carcomido um caco de vidro ao
vesgo
Cá comigo uns óculos de hastes
de azeredo
Luz no umbigo de uma estrela
Cá comido um feixe de mortadela.

Uma bela e sepulta estrela
Cá conosco num aterro orgânico.
O globo ocular e o cristalino
supurando de vulcanismo
e lusco-fusco.

Na Lua uma rua desolada.
Uma alcatéia regurgitando
em quarto minguante
e a névoa de poeira
acasalada no limiar do big bang.

Cá com eles esse cio dos continentes
fê-los gozar
No início ou “in the end”?

Lucas Tenório

6.10.05

Lições Elementares da Pedra - III

Se nada se diz da pedrada
Da pedra dada se diz macia
De degustada, assim se enuncia:
Ao paladar com sal temperada.

Aos olhos rubros da litosfera
Opõe-se o dedo verde de venda
Que ao tronco faz com que penda e fenda
Em escuridão seminal de terra.

E assim no peso, que é pedra cega
Que não é areia, cascalho e pó
Encontra a pedra, que é pedra trave
A pedra nave da pedra sol.

E nessa pedra, que é pedra lenha
Que é pedra dada não sei por quem
Vê-se no rosto que a pedra tenha
Que a pedra clara essa pedra tem.

Que é pedra leve, é pedra clara
Onde da pedra se tem visão:
Que dessa pedra se avista o chão
De terra pedra que é pedra rara.

E se a pedra clara é a pedra vasta
E se a pedra rara é a pedra chão
Tem-se que o tronco que se desgasta
É a sobra pedra da ebulição.

E dessa sobra pedra, nessa navalha
Se a liquefeita pedra é uma pedra ar
Tem-se do tronco que se fornalha
Que nessa pedra terra tem-se a pedra mar.

E se a pedra terra é a mesma pedra barro
E se essa pedra clara é fecundação
No que houver de pedra nesse meu escarro
Haverá de pedra na enunciação.


Lucas Tenório

5.10.05

A condenação do poeta

Senhora poeta
eu sou-te o juiz
não canto agonias
não sei o que diz

Senhora poeta,
eu sou veredicto.
Não te tenho escrito,
não sou-te infeliz.

Senhora poeta,
de vida alfabeta,
um lápis nas rugas,
marca, cicatriz?

Senhora poeta
a casa monetária
empenou com a queda,
uma avaria vária...

Senhora poeta,
por isto pintaste
tua nota de encanto
na face escarlate?

Senhora poeta
não te dou azul
preferes desterro
no norte ou no sul?

Senhora poeta,
que cilada a alguém
apanhaste na quadra
que preparaste tão bem

Senhora poeta,
varões os cobardes
Se assim teus Titãs
te inscrevem na testa?

Senhora poeta,
falaste em maçãs,
em parques de infantes
de elefantes falantes

Senhora poeta,
sem nem cerimônia
acordaste da insônia
uma porção de amanhãs

Senhora poeta
que passos tão largos
ajuizaste dar
nesses doidos embargos

Senhora poeta:
garganta gangorra
corrente masmorra
papel e caneta.

Lucas Tenório

Inspirado pelo

A Defesa do Poeta - Natália Correia

Senhores juízes sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.

Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes.

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição.

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis.

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além.

Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs por ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa.

Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de paixão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão.

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.

http://www.lumiarte.com/luardeoutono/nataliacorreia.html

4.10.05

A moça do sonho - Chico Buarque

Súbito me encantou
A moça em contraluz
Arrisquei perguntar: quem és?
Mas fraquejou a voz
Sem jeito eu lhe pegava as mãos
Como quem desatasse um nó
Soprei seu rosto sem pensar
E o rosto se desfez em pó

Por encanto voltou
Cantando a meia voz
Súbito perguntei: quem és?
Mas oscilou a luz
Fugia devagar de mim
E quando a segurei, gemeu
O seu vestido se partiu
E o rosto já não era o seu

Há de haver algum lugar
Um confuso casarão
Onde os sonhos serão reais
E a vida não
Por ali reinaria meu bem
Com seus risos, seus ais, sua tez
E uma cama onde à noite
Sonhasse comigo
Talvez

Um lugar deve existir
Uma espécie de bazar
Onde os sonhos extraviados
Vão parar
Entre escadas que fogem dos pés
E relógios que rodam pra trás
Se eu pudesse encontrar meu amor
Não voltava
Jamais

Edu Lobo/Chico Buarque

2001 © - Marola Edições Musicais Ltda.

http://www.chicobuarque.com.br/construcao/index.html

3.10.05

Relampiano - Lenine

Tá relampiano, cadê neném?
Tá vendendo drops no sinal pra alguém.
Tá relampiano, cadê neném?
Tá vendendo drops no sinal pra alguém.
Tá vendendo drops, e no sinal ninguém.

Todo dia é dia, toda hora é hora
Neném não demora pra se levanter.
Mãe lavando roupa, pai já foi embora,
E o caçula chora pra se acostumar
Com a vida lá de fora do barraco,
Hai que endurecer um coração tão fraco,
Pra vencer o medo de trovão,
Sua vida aponta a contra-mão.

Tá relampiano, cadê neném?
Tá vendendo drops no sinal pra alguém.
Tá relampiano, cadê neném?
Tá vendendo drops no sinal pra alguém.
Tá vendendo drops, e no sinal ninguém.

Tudo é tão normal, todo tal e qual,
Neném não tem hora pra ir se deitar.
Mãe passando roupa do pai agora,
De um outro caçula que já vai chegar,
É mais uma boca dentro do barraco,
Mais um kilo de farinha do mesmo saco,
Pra alimentar um novo João ninguém,
E a cidade cresce junto com neném.

Tá relampiano, cadê neném?
Tá vendendo drops no sinal pra alguém.
Tá relampiano, cadê neném?
Tá vendendo drops no sinal pra alguém.
Tá vendendo drops, e no sinal ninguém.

Lenine/ Paulinho Moska - In Cité (2004)

http://www.lenine.com.br/

Programa - Adriana Calcanhotto

Vá a Zona Sul
Às nove
Se quiser comer
o seu sushi com cólera;
Meia noite e dez
Descole
Mais um digestivo
No Ilusão de Ótica;
Passe pela Lapa, pelos
Arco-íris dos
Seus arcos
Mais explícitos
Pelo claro-escuro,
Pelo som impuro, obscuros becos,
Claros dígitos
Uma e meia aperte um broto e
Com precisão pra lá de
Matemática
Saia às três e arroche a prima moto
Pra Bangu
E à segurança máxima

Adriana Calcanhotto / Waly Salomão / Antonio Cícero
(Cantada 2002 - BMG)

http://www.adrianacalcanhotto.com.br/discografia/index.php

eu sem nada

Vastas sombras, desfolhadas de agonia
Vastos olhos, desfocados, baços
Vastas faces, esquecidas nos terraços
Muitas flores, sob o sol do meio-dia.

Vastos sonhos, e a tessitura de suas teias
Vastas almas, em seus guetos infinitos
Várias danças, vários cantos, vários gritos
Muitos risos, ao clarão da lua cheia.

Um convite a deitar em plena rua
Vários corpos, numa mesma pele nua
Vastos uivos e gemidos de prazer.

Vasto silêncio, sem pergunta que fazer
Vastos beijos, no azul desse oceano
E eu tão só, tão sem ninguém, eu tão insano.

Lucas Tenório

1.10.05

Antinome - Chico César

A noite aguda
Ouvi um deus me acuda
Como se aqui fosse a croácia
E era um assalto na farmácia
Alguém necessitava
Gaze e merthiolate
Ob e chá mate

Chamo-te pelo antinome, pai
Quando o invisível
Some e se esvai
Em vinho que não bebo
Em pão que não comerei jamais

No dia longo
Sol nascendo e sol se pondo
Como se aqui fosse o saara
É ceará e mais deus não dera
Oásis quase nem
Ninguém sequer espera
Resseca gente-fera

A noite morre
Ouço um quem me socorre
Como se grozni aqui fora
E era alguém que ia embora
E o outro que ficava
Implorava companhia
Perdão, misericórdia

(Em dueto com Chico Buarque)

Respeitem Meus Cabelos, Brancos - 2002 Abril Music

http://www2.uol.com.br/chicocesar/musica/discorespeitem.htm