29.12.05

Circuito da Poesia é lançado no Recife - Diário de Pernambuco

A Prefeitura do Recife lançou, na tarde desta terça-feira [27/12/2005], o Circuito da Poesia. Trata-se de um roteiro composto por quatro pontos da cidade onde foram instaladas esculturas dos poetas Capiba, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Clarice Lispector e Carlos Pena Filho.

O prefeito João Paulo e uma comitiva formada por secretários municipais, políticos, trade turístico e familiares dos homenageados, visitaram os locais para ver de perto o resultado do projeto municipal.

O circuito tem o objetivo de promover aos turistas e ao povo do Recife um encontro com personalidades da cultura, através de esculturas em tamanho natural, instaladas em diferentes pontos da cidade.

As obras foram confeccionadas pelo artista plástico Demétrio Albuquerque. Na Rua do Sol está a escultura de Capiba; na Rua da Aurora fica a de João Cabral de Melo Neto; ainda na Aurora, Manuel Bandeira; na Praça Maciel Pinheiro fica a imagem de Clarice Lispector, e na Praça da Independência a estátua de Carlos Pena Filho.

Da Redação do PERNAMBUCO.COM

http://www.pernambuco.com/

28.12.05

Gilberto Freyre - por Lêda Rivas

A MÍSTICA DO MESTRE:
Oito anos após sua morte, Gilberto Freyre ainda provoca polêmica

Lêda Rivas

Imundo. Infame. Obsceno. Os adjetivos com os quais a intelectualidade ultrareacionária pernambucana saudou, em 1933, o lançamento de Casa-Grande & Senzala, vaticinaram o destino polêmico do seu autor, Gilberto Freyre, incensando à época já como um renovador da Sociologia brasileira, traçaria seu caminho de cientista social, sob o signo da discussão. Os extremistas de direita que pontificiaram à sombra da Revolução de 30 e prepararam o País para o Estado Novo, foram implacáveis no julgamento da obra, cujo, autor recém-chegado do exílio, amargava o empastelamento do jornal que dirigia. A Província, e passava a escrever na Folha do Povo, diário do Partido Comunista Brasileiro. Como se não bastasse, Freyre havia sido um dos organizadores do I Congresso Afro-Brasileiro, organização definida por Afonso Arinos de Melo Franco, em artigo publicado na Imprensa do Rio, como "demagógica e revolucionária, que estimula a luta de raças, preparatória para a luta de classes".

A vocação transgressora de Gilberto Freyre iria mais longe. Em agosto de 35, terminaria despertando a ira dos opositores ao utilizar, possivelmente de forma pioneira no Brasil, a palavra ecologia, num longo texto em que defendia a floresta amazônica e condenava, violentamente, a devastação do meio ambiente. Tais crimes não ficariam impunes. A ousadia custou ao sociólogo-antropólogo um processo no Departamento de Ordem Política e Social, o famigerado Dops, além de enquadramento da Lei de Segurança Nacional. O mensário Fronteiras, revista simpática ao movimento patriovinista, que tinha como slogan "Ordem: Autoridade: Nação" e era dirigida pelo escritor Manoel Lubambo e o artista plástico Vicente do Rego Monteiro, foi contundente. "Ele fala em ecologia, pois os leitores brasileiros gostam de palavras pomposas e o autor sabe cortejar esse apetite", vociferou Lubambo.

A revista voltaria à carga em várias edições, chegando a pregar a proibição da venda de Casa-Grande & Senzala, livro que, então, começava a seduzir os jovens estudantes. Como as alunas da Escola Normal, às quais sua leitura fora recomendada pelo professor Estevão Pinto. Editorial de Fronteiras, em primeira página, de autoria de Rego Monteiro, faria o alerta: "Os pais das normalistas precisam ler essa obra da mais descabelada pornografia para saberem o que Pinto ensina às suas alunas da Escola Normal. O caso, pela extrema gravidade de que se reveste, está a exigir severas providências do diretor da Escola e do secretário da Educação".

Escândalo na província – Quando, em 36, Gilberto Freyre lançou Nordeste, a revista exacerbou os ataques. O livro não passava de uma "Sociologia dos detalhes. Sociologia dos morcegos, da cobra, do gato, da raposa, do guará e até do carrapato e do lacrau e do bicho-de-pé. Não tem nada de novo. Depois dos pitus do rio Una, nada mais pode ser descoberto neste País".

Veio Sobrados e Mucambos, recebido pelos conservadores como mais um trabalho subversivo, de incentivo "à luta de classes entre as cozinheiras e as donas de casa no Nordeste Brasileiro".

Embora Gilberto considerasse a sua obra "pró-católica", foi no Congresso Eucarístico Nacional de 1939, que se viu praticamente exposto à excreção pública, num apelo do professor José Cavalcanti de Sá Barreto, que em discurso apontava Casa-Grande & Senzala como "aquele vasto arsenal de pornografia, salpicado cá e lá de blasfêmias próprias e alheias, blasfêmias religiosas e científicas". Quase que paralelamente, Manoel Lubambo voltava a investir em Fronteiras: "Considero esse livro como um ensaio dos mais perniciosos de sedução comunista no Brasil. Seu intuito é predispor, de criar ambiente propício, fazendo do brasileiro nato o resultado democrático da miscigenação, reduzindo a uma proporção mínima a participação ariana. Para ele, o brasileiro é um produto afro-índio escravizado por uma minoria branca. Considero Casa-Grande & Senzala um livro pernicioso, dissolvente, antinacional, anticatólico, anárquico e comunista".

Fronteiras circulou até 1940. Sem dar tréguas a Gilberto Freyre, cuja obra ganhava então dimensão e reconhecimento internacionais.

Esquerda, volver – Se, durante tanto tempo, os ideólogos da direita desdenharam a obra gilbertiana, as esquerdas não foram menos intolerantes. Alijado dos currículos universitários, banido das considerações supostamente eruditas, Freyre foi inscrito no index das discussões acadêmicas. O primeiro intelectual de esquerda a reconhecer a verdadeira importância do estudioso foi o antropólogo Darcy Ribeiro, ao prefaciar e elogiar a primeira edição de Casa-Grande & Senzala, em Espanhol. Mais tarde, referindo-se ao livro, Darcy sintetizou: "O trivial é que o importante, a vida é feita do trivial, Gilberto assumiu isso maravilhosamente". E terminou decodificando a maldição de Freyre. "O gôsto pela literatura fez com que ele transformasse um ensaio científico num livro legível".

Um dos fundadores do Partido Comunista do Brasil, Astrojildo Pereira, viu em Casa-Grande & Senzala "um livro de ciências escrito numa linguagem literária de timbre inusitado, numa linguagem atrevidamente nova mas muito nossa; um livro que dava categoria a muita palavra vulgar; e sobretudo um livro que tomava como protagonista central não os heróis oficiais, mas a massa anônima". A grande maioria dos pensadores esquerdistas, entretanto, não partilhava das considerações do primeiro secretário do PC do B.

Supõe-se que as divergências ideológicas começaram quando Freyre fez críticas a Marx. E recrudesceram quando o sociólogo defendeu o AI-5 como salvaguarda necessária para proteger o Brasil de "forças estrangeiras interessadas em desagregá-lo". Um dos primeiros intelectuais a apoiar o golpe de 64, Gilberto chegou a participar da elaboração do programa da extinta Arena. Aos que o criticavam então, reagia: "É curioso que eles se intitulem liberais, democratas avançados, quando defendem e servem ao mais totalitarismo que existe. Combati o nazi-facismo com o mesmo ânimo com que repudio o totalitarismo soviético. Este age no Brasil através do patrulhismo ideológico, distribuindo pechas de reacionário aos verdadeiros revolucionários".

Já no fim da vida, proclamavam um "conservador revolucionário", que pregava uma revelação que conservasse algumas tradições essenciais da comunidade. Definia-se: "Sou um homem de matizes. Sou, antes de tudo, um homem dos paradoxos. Acho que quase todas as verdades tem paradoxos. Tenho a tendência de escandalizar os bem-pensantes. Os paradoxos chocam os bem-pensantes e chocam também os matemáticos que pensam em linha reta".

Narcisista, auto-referente, atrevido, já havia dito antes: "Sou o único gênio vivo". A direita riu. A esquerda também. Cada uma à sua maneira.

O mestre revisitado – Gilberto Freyre morreu em 17 de julho de 1987 vendo sua obra reconciliada com muitos dos seus contestadores. Sua morte não promoveu nenhuma revolução nos velhos clichês ideológicos, mas já se pode discutir o seu pensamento sem medo de se incorrer em nenhum pecado. Dos muitos que fizeram restrições ao estilo gilbertiano podemos registrar agora se não adesão total, pelo menos, respeito e admiração. Os exemplos são vários.

O próprio Afonso Arinos de Melo Franco, tão crítico de Gilberto nos anos 30, fez-se amigo do "mestre de Apipucos" e rendeu-se ao seu talento. Como conferencista e debatedor, participou algumas vezes no Recife do Seminário de Tropicologia, criado por Freyre. Presidente da Comissão de Sistematização, proferiu um longo discurso na tribuna da Assembléia Nacional Constituinte, dias após a morte do sociólogo, destacando a respeito de Casa-Grande & Senzala: "O livro tem aquele estilo desmanchado, às vezes malicioso, às vezes imprevisto, tocando pontos que eram considerados pouco razoáveis numa literatura científica, trouxe uma inovação formidável na forma e conseguiu, então, trazer também para o século XX a maneira de pensar e maneira de dizer o pensamento científico".

Para o economista Celso Furtado, então ministro da Cultura à época do falecimento do escritor, o papel liberador de Freyre se deve ao fato de que o escritor "nunca foi um revolucionário convencional, amarrado por uma ideologia. Foi muito mais profundo, chegando às raízes da formação da sociedade brasileira. Por isso chocou tanto. Acompanhei Gilberto Freyre desde o começo de sua obra e considero que foi o pensador brasileiro que mais contribuiu para liberar os preconceitos de nosso povo. Não só com respeito à raça, mas com relação a outros tabus de nossa cultura". Opinião referendada por Jorge Amado, que, apesar de velho amigo de Gilberto, tinha com ele muitas divergências políticas: "Ele nos fez mais brasileiro, revelou o que nós somos e o que é a nação brasileira".

Membro da "escola sociológica paulista", apegada ao rigor científico e que tinha Florestan Fernandes como o maitre a penser, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso escreveu em 1973 na revista Senhor-Vogue um artigo em que reconsiderava suas idéias sobre Casa-Grande & Senzala. Foi uma espécie de "ato de contrição", disse, depois, o então senador do PMDB: "Freyre me capturou. Não por sua "ciência", mas por ter sido capaz de propor um mito-fundador. Casa-Grande & Senzala e o próprio Gilberto Freyre são partes constitutivas do Brasil: falsos ou verdadeiros, a obra e o criador, pela força macunaímica que têm, expressam o que nós somos".

O sociólogo petista Florestan Fernandes, por sua vez, reconhece: "Os sociólogos de esquerda deram mais importância à luta de classes. Gilberto Freyre via muito as coisas do ponto de vista da casa-grande e os que vieram depois estavam mais preocupados com a senzala. O fato de existirem estas duas correntes só enriquece nosso conhecimento".

Instigador de idéias

O professor e jurista Gláucio Veiga, que advoga para si a autoria da primeira "análise sistemática" da obra de Gilberto Freyre publicada no início dos anos 50 na Imprensa recifense, foi também, o primeiro a sugerir a introdução na Universidade Federal de Pernambuco, de uma cátedra Gilberto Freyre. Justificava sua proposta com dois objetivos. Primeiro, "reverter tanto quanto possível a acentuação flutuante da nossa Universidade em direção a um ditongo mais sonoro: a regionalização, tanto quanto possível, da Universidade". E segundo: "Alterar a habitual, porém, com todas as vênias, não eficaz metodologia de acesso à obra de Freyre. A maior parte dos analistas do pensamento de Freyre, principalmente os geracionados em Pernambuco, não distingue a admiração pessoal de amizade de uma objetiva crítica".

Embora a introdução de uma disciplina especial dedicada a Gilberto Freyre nos nossos cursos de terceiro grau ainda não seja uma realidade, a recente criação de um Núcleo de Estudos sobre o escritor, na Fundação Joaquim Nabuco, com respaldo de instituições de ensino superior, poderá estimular a discussão da obra e da personalidade de Gilberto Freyre em outros campi. O interesse que o pensamento gilbertiano tem despertado nos cursos de pós-graduação vem se acentuando nos últimos anos, com a defesa de teses e dissertações que tratam de mostrar uma visão incomum do sociólogo-antropólogo pernambucano. Esse conhecimento tardio é explicado pelo sociólogo Roberto Da Matta: "O preconceito com que Gilberto Freyre e sua obra ainda são vistos em meios acadêmicos prejudicou a correta avaliação de seu legado". Para Da Matta, existe uma leitura errônea e limitada, uma crítica esquerdizante da obra de Freyre. "A vida pessoal dele pode ter levado a essa leitura negativa, mas é importante ressaltar que ele é um autor muito mais complexo do que supõe nossa vã Sociologia. Não podemos simplesmente enquadrá-lo numa única gaveta".

Em tese de doutorado em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – Guerra e Paz - Casa-Grande & Senzala e a Obra de Gilberto Freyre – o antropólogo Ricardo Benzaquen desfaz alguns clichês sobre o pensamento de Freyre. O ensaio, lançado pela Editora 34, agitou os meios intelectuais ainda resistentes às idéias gilbertianas. Da mesma forma que suscitou reações a recente defesa de dissertação de Mestrado em história pela UFPE, do jornalista Mário Hélio, Gilberto Historiador, na qual sustenta ter sido o próprio Freyre que escreveu a sua primeira biografia, e não seu primo Diogo de Mello Menezes.

Afinal, qual é a mística do mestre? Oito anos após sua morte, Gilberto Freyre continua surpreendendo, indignando, fascinando e, sobretudo, polemizando. O etnólogo carioca Raul Lody, gilbertólogo convicto, revela: "Encontrei na Tropicologia caminhos sensíveis e de fortes fundamentos científicos. Percebi que a ciência não precisa ser triste para ser séria". E conclui: "Gilberto é pura emoção".

O mestre, se vivo fosse, adoraria.


http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/

Fonte: RIVAS, Lêda. A mística do mestre: oito anos após a sua morte, Gilberto Freyre ainda provoca polêmica. Diário de Pernambuco. Recife, 22 fev. 1999.

27.12.05

A face oculta da sombra

Falar de sombra em pedra
é dizer-lhe da pluma
no dizer que arremeda
lamparina nenhuma.

Na réstia do intestino
de pedra a sombra brilha
na íris do inquilino
estilhaçada em quilhas.

Na íris sombra-marca
de fractais dormentes
em antiincandescentes
soalhos de barcaças.

Ancoradas a fio
de ouro e de barbante
cordames de extravio
em treva naufragante

Engolfada em um sol
de feito estomacal
espelhos de um atol
de lava gutural.

Em luz que é haurida
em sua opaca cama
matéria preferida
do leito de sua chama

E a luz e sombra dobram
o mesmo e ambíguo sino
no ferro em que se forjam
os vãos do cristalino

de transparência muda.
Dos olhos palpebrados
a sombra-luz exsuda
o grito imatizado.

Lucas Tenório

23.12.05

Lira dos trinta e seis

Temo ter passado da era da assonância
entre o fúnebre e o trago
do jazigo
da abundância.

Teimo pelo estrago
entre utopia e nada
mal acabada
da infância.

Um agora aos trinta e seis
em que a morbidez
remansa

Num copo azedo
de que só bebo
água salgada

Temo que o sol maldito
nunca mais seja escrito
de madrugada.

Lucas Tenório

22.12.05

Papel de parede

Entre o avesso recortado, entre a serra
Maquinalmente empregada
A palavra cresta escrita, nela berra
A celulose decepada.

Berra o gemido chiado
O ranger dos dentes incisivos
E em todos os prados
O laminar lascivo.

Lascivo na palavra
Víscera, ferro, ventre
Que o corte de por dentro, entre
Escalavra.

Abre-se-lhe um duto, um traço
De caligrafia erótica
Numa balaustrada gótica
De braço a terraço.

Dos morfemas, antes células
O adorno do corpóreo espaço.
Num bailado de libélulas
De anca a espinhaço.

E se a casa verbal é língua
E a casa da casa monumento
Escrita em sua dor, à míngua
No antigo testamento,

Dói a dor do corte, em Adão
Do pênis que agora é falo
Dói o corte do papel, cambão
Num verbete em que não falo.

Lucas Tenório

21.12.05

Abelardo da Hora - por Marco Polo

A vida de um mestre de muitas obras

Biografia de Abelardo da Hora revela que, além da vasta produção artística, o pernambucano idealizou inúmeras atividades visando à popularização das artes e à educação do povo













Por Marco Polo

Mestre de mestres. Este é pelo menos um dos títulos que podem ser atribuídos ao artista plástico Abelardo da Hora. Entre tantos outros, pelo menos quatro grandes artistas de Pernambuco estudaram com ele: Francisco Brennand, Gilvan Samico, José Cláudio e Wellington Virgolino. Escultor – atividade pela qual é mais conhecido –, é também desenhista, gravador, ceramista, tapeceiro e poeta, além de ser o idealizador e fundador de alguns marcos das artes no Estado, como a Sociedade de Arte Moderna, o lendário Atelier Coletivo, o Clube da Gravura (cujos trabalhos correram mundo, chegando à Europa, Ásia, África, América do Norte e América Latina) e o Movimento de Cultura Popular. Militante comunista, chegou a pegar em armas contra a polícia e foi preso diversas vezes. Mas sua atividade mais importante na vida pública se deu no campo educacional e artístico. Desde criança, Abelardo sempre foi cheio de idéias e iniciativas. Fazendo os cursos de Desenho e Pintura na Escola de Belas Artes, sugeriu aos professores que fossem feitas excursões a diversos pontos da cidade, a fim de retratar paisagens e lugares diferentes, proposta que não só foi aceita como adotada com entusiasmo.

No Rio de Janeiro, ao trabalhar numa fábrica de confecções, escutou do patrão que as freguesas reclamavam do excesso de visitas das costureiras, a fim de provar e ajustar os vestidos. Sugeriu então que as costureiras fizessem uma única visita à cliente, criando um molde de gesso dos seus corpos, a partir do qual seriam feitos manequins específicos para cada uma, para que neles fossem provadas as roupas. Mais uma vez uma idéia original de Abelardo faria sucesso.

Foi Abelardo da Hora o idealizador do Sítio da Trindade, como espaço para atividades artísticas voltadas para o povo, e onde funcionou uma das “praças de arte” do Movimento de Cultura Popular, que integrava artes plásticas, teatro, música e alfabetização para crianças e adultos, reunindo nomes de peso como o educador Paulo Freire, o teatrólogo Luiz Mendonça, o maestro Geraldo Menucchi e o administrador Germano Coelho. Também de sua cartola mágica saiu o projeto da Galeria Flutuante, uma caixa de cimento e vidro construída sobre o leito do Rio Capibaribe, próximo à Agência Central dos Correios, que atraía, pelo inusitado, a visita da população curiosa que em outra circunstância talvez não se interessasse em visitar exposições de quadros.

Outro fato da rica biografia do artista é que foi ele quem descobriu, na Chapada do Araripe, uma jazida de gesso que se tornaria a maior do Estado, sendo até hoje um pólo de atividades em torno do gesso. Foi também o autor de um projeto de lei que obrigava a instalação de uma obra de arte em construções particulares com mais de mil metros de área construída e em edifícios públicos, quaisquer que sejam as áreas de construção, projeto aprovado por unanimidade na Câmara dos Vereadores, tornando-se lei a partir de 1961. Líder nato, Abelardo organizou diversas exposições coletivas para divulgar a arte pernambucana em outros Estados. E, naturalmente, ao lado de todas essas atividades, construiu uma obra poderosa, na qual se destaca a famosíssima série de 22 desenhos em bico de pena “Meninos do Recife”, em que retrata a infância dos desvalidos da cidade, com pernas e braços finos em contraste com as cabeça grandes, as barrigas inchadas e os olhos imensos de espanto diante de tanta miséria. Aliás, a arte de cunho social é uma das vigas do seu trabalho, tanto em gravuras e desenhos, como em esculturas.

O amor pelo povo e suas atividades também se reflete em uma série de desenhos coloridos retratando os folguedos populares, e nas esculturas de trabalhadores. A outra vertente está nas grandes esculturas de mulheres de corpos e poses sensuais, mostrando um outro lado da personalidade deste artista tão múltiplo e fértil.

Todas estas informações, e muitas outras mais, estão no livro Ensaio com Abelardo da Hora, escrito pelo poeta e ensaísta Weydson Barros Leal, com ampla e completa documentação fotográfica das várias fases e técnicas na obra do artista pernambucano, nascido no município de São Lourenço da Mata, em 31 de julho de 1924. Livro que a gente lê como um romance, espantados com a atividade incessante deste homem pequeno e magro, de onde jorrou um imenso rio de criatividade e realização.
Hoje, simples, Abelardo diz: “Continuo o mesmo rapaz que estudou com o velho Cassimiro Correia e trabalhou montado num andaime, na avenida Guararapes, como operário de construção”. “Rapaz operário” de 81 anos que, lépido e disposto, ainda sobe no alto da casa onde mora com Margarida, companheira desde a década de 40, para consertar alguma telha fora do lugar.










Marco Polo é poeta e editor da Revista Continente Multicultural

http://www.continentemulticultural.com.br/ - Edição Nº 60 - Dezembro de 2005

15.12.05

Similaridades entre Regionalismo e Antropofagia - Luciana Mascaro

Mneme – Revista Virtual de Humanidades, n. 10, v. 5, abr./jun.2004
Dossiê História Cultural
ISSN 1518-3394
Disponível em
http://www.seol.com.br/mneme

Similaridades entre Regionalismo e Antropofagia: nacionalismo - internacionalismo – regionalismo

Luciana Pelaes Mascaro
Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos
Universidade de São Paulo
mascaro@sc.usp.br

Resumo

Analisa dois manifestos brasileiros surgidos na década de 1920: o Manifesto Regionalista (1926), de Gilberto Freyre, e o Manifesto Antropófago (1928), de Oswald de Andrade, verificando aspectos em comum e algumas diferenças e, com base nos seus conteúdos, discute os conceitos de "nacionalismo", "internacionalismo" e "regionalismo", mostrando que, por caminhos diferentes, ambos atingiram os mesmos pontos: o questionamento da produção cultural brasileira – principalmente quanto às influências estrangeiras às quais estava sujeita e quanto às suas próprias raízes - e o lançamento de novas possibilidades para o desenvolvimento da mesma.

Palavras-chave

Manifesto Regionalista - Manifesto Antropófago - nacionalismo - internacionalismo - regionalismo

Abstract

This paper presents a comparison between two Brazilian manifestations that occurred in the decade of 1920: the Manifesto Regionalista (1926), written by Gilberto Freyre and the Manifesto Antropófago (1928), written by Oswald de Andrade, analysing the aspects that the two manifestations have in common, although, it considers that there are some differences and, based on their contents, it discusses the concepts of "nationalism", "internationalism" and "regionalism", showing that, by different ways, they reached the same points: the questioning about Brazilian cultural production – mainly regarding the foreign influences it was subjected to and its own roots – and the new possibilities for its development.

Key words

Brazilian Manifest - Manifesto Regionalista - Manifesto Antropófago – nationalism - internationalism

Introdução

Do esforço de estabelecer similaridades entre dois manifestos brasileiros, o Manifesto Antropófago (MA) e o Manifesto Regionalista (MR), - ambos surgidos na década de 20 -, bastante diversos tanto no conteúdo quanto na forma, resulta que, afinal, possuíam vários aspectos em comum.

Durante as últimas décadas do século XIX e as primeiras do XX, enquanto a produção cultural
européia estava em pleno processo de reavaliação de si mesma através dos movimentos de
vanguarda, no Brasil, o reflexo das agitações na Europa e o centenário da Independência, entre
outras circunstâncias, inspiraram as primeiras atitudes de rompimento com aceitação acrítica de
valores estrangeiros. Surgem, portanto, envoltos na mesma atmosfera de renovação, os dois
manifestos citados: independentes, provenientes de pontos distantes do país e que tratam, de fato,
de temáticas diversas. Porém, como será mostrado, levantam questionamentos semelhantes por vias diferentes. "E se encontra também [Gilberto Freyre] com os intelectuais de São Paulo, que
paralelamente vêm com êle lutando por um Brasil autêntico e novo, desde 22"
. Foram palavras de
Oswald de Andrade, numa saudação dele a Gilberto Freyre (Freyre, 1946, p.41). Pode-se dizer que o primeiro vai, predominantemente, pela via filosófica/literária, tendo, assim, maior repercussão nas artes em geral e na literatura; o segundo vai pela via sociológica/antropológica, ecoando mais na transformação do olhar sobre os valores da sociedade. Segundo Gilberto Freyre, "talvez se possa sugerir que a Semana de Arte Moderna foi um fato histórico de singular importância para as artes e para as letras brasileiras, sem ter se projetado – como o Movimento do Recife se projetou desde o seu início – sobre os estudos sociais." (Freyre, 1976, p.47). Claro, essas são as nuanças mais acentuadas em um e outro movimentos, o que não significa que, por exemplo, Gilberto Freyre não tenha produzido transformações na literatura brasileira. Ou ainda, pode-se dizer que a via seguida pelo MA foi a do "internacionalismo"; a seguida pelo MR foi, como diz o próprio nome, a do
"regionalismo". Esses aspectos também serão abordados neste estudo para mostrar como ambos se opõem à idéia de "nacionalismo" e revelam, assim, mais uma afinidade entre eles.

Para direcionar a análise comparativa dos manifestos, foram tomados, de ambos, os aspectos que explicitam suas afinidades ou divergências e foram incluídas, também, observações sobre alguns detalhes. As obras dos autores Nunes (1979) e Schwartz (1995) foram utilizadas como apoio, a fim de melhor compreender o MA, já que sua linguagem é bastante hermética.

Comparando

Antes de iniciar a identificação de qualquer afinidade no conteúdo das idéias presentes nas
obras que foram analisadas neste estudo, é preciso fazer um resumo sobre as condições gerais em que elas apareceram, a fim de explicitar o pano de fundo comum a ambas, e traçar algumas
considerações sobre seus autores.

O MA surge em maio de 1928, no bojo do Movimento Moderno, o qual agitava a intelectualidade paulista (principalmente) desde o início do século. Obra escrita por Oswald de Andrade, o MA é caracterizado por fortes traços revolucionários, rebeldes e utópicos, tal como a própria personalidade de seu idealizador. Desse manifesto derivaram um movimento e uma "filosofia" desenvolvida por ele, completada por outra obra sua, de 1950: "A Crise da Filosofia Messiânica". É importante ressaltar que o MA é uma obra literária e que explora um formato de expressão novo – e, neste caso, bastante hermético – fatores que dão margem a diversas interpretações, algumas, equivocadas. Assim, optou-se por abordá-la com o apoio de Schwartz (1995) e Nunes (1979), principalmente. Num contexto mais amplo, de acordo com os autores acima, fica evidente a complexidade da obra de Oswald de Andrade. Ela pode ser encarada simplesmente como expressão da influência das vanguardas européias ou, além disso, também como expressão de uma originalidade resultante do contato dessas vanguardas com o Brasil, através da ótica do seu autor. Certamente, este último é o aspecto de maior interesse a ser considerado. Nunes (1979, p. 27) coloca da seguinte forma: "Parece-nos, pois, que o estudo das influências no Modernismo brasileiro não pode ser orientado segundo uma perspectiva unilateral, que atribua ao nosso movimento a posição de receptor passivo de empréstimos de fora. Quando os receptores também são agentes, quando a obra que realizam atesta um índice de originalidade irredutível, é que o empréstimo gerou uma relação bilateral mais profunda, por obra da qual o devedor também se torna credor." A complexidade se manifesta também na forma de expressão de Oswald de Andrade, especialmente no MA. A ligação deste manifesto com as vanguardas européias se manifesta pelos traços dadaísta, futurista, surrealista e cubista que apresenta. Pode-se dizer que do cubismo veio o "fragmentarismo de sua prosa" e que a síntese, substituta do detalhe naturalista, foi inspiração do futurismo (Nunes, op.cit., p.30 e 31). Somando-se tais características a elementos como o primitivismo (a ser explorado como o diferencial da cultura brasileira em relação à cultura do Velho Mundo), o canibalismo e a antropofagia, resultou uma linguagem literária, pulsante, inventiva, surpreendente, sucinta, de acabamento técnico rigoroso e, finalmente, difícil. Embora esta pequena análise esteja distante de abarcar a totalidade do MA, pretende esclarecer os pontos relevantes para este estudo:

a) faz parte do Movimento Moderno e da atmosfera intelectual do início do século XX (na qual é
necessário considerar a emergência do sentimento nacionalista);

b) consiste numa obra literária cujo formato e conteúdo rompem com os padrões estabelecidos;

c) indica valores legítimos a serem integrados à produção cultural brasileira.

Pode-se dizer que tais pontos fazem parte da interseção com o universo de Gilberto Freyre e sua obra aqui analisada – o Manifesto Regionalista. Surgido em outra região do país – o Nordeste - e em outro campo de atuação - não a literatura, mas a sociologia - tem em comum com o MA os aspectos citados e, possivelmente, mais alguns. É dentro desta interseção que se desenvolve este trabalho de aproximação entre MA e MR.

O MR, surgido em fevereiro de 1926, no Recife, é obra de caráter sociológico, escrita por Gilberto Freyre. Embora tenha tomado as proporções de um movimento que se desdobrou em influências sobre as mais diversas formas de expressão, conforme as palavras de seu autor, foi "Regionalismo (...) a seu modo modernista: mas de todo independente do ‘Modernismo’ Rio-SãoPaulo, do qual tanto se fala, às vezes esquecendo-se esse outro movimento da mesma época, saído do Recife (...)" (Freyre, 1976, p.15). Autor considerado polêmico em alguns momentos, inaugura, com a relevância de sua produção, uma nova visão sobre a cultura e a sociedade brasileiras. Tendo por referência um mundo diverso daquele que despontava como "sede do desenvolvimento" e "produtor intelectual" – a região Sudeste, mais especificamente São Paulo – e "trazendo grande influência das teses sociológicas norte-americanas, principalmente da Escola de Chicago" (Léon, 2000), vem à tona trazendo um conhecimento sobre o Brasil calcado nas observações dos modos de vida, dos hábitos, das tradições e das relações com o meio. Assim, se distingue por duas características básicas, de onde advieram a polêmica que o envolveu e, ao mesmo tempo, a rica contribuição de seu trabalho: esteve mais ligado ao pensamento norte-americano que ao europeu, numa época em que os pensamentos de vanguarda pareciam só poder emanar da Europa, e fazia parte, vivia e falava do Nordeste, quando o progresso e a agitação intelectual estavam situados no Sudeste. Contudo, há décadas o grande valor de sua obra foi reconhecido, como mostra a declaração: "Considero Gilberto Freyre o marco mais significativo no longo esfôrço de introspecção que vimos fazendo para tomar consciência de nosso país, de nossa história, de nossa cultura. Ficamos todos mais brasileiros com sua obra. Em outra época, seria o pensador de sua geração; neste século vinte, é seu maior sociólogo" (Teixeira, 1963, p.29). É no emaranhado de tais circunstâncias que surge o MR, mostrando mais da identidade brasileira e apontando novos caminhos para a produção de uma cultura genuína. Quanto a sua prosa ou seu estilo de escrever, é simples, claro, acessível e apetitoso, conforme atesta Melo (1954, p.26): "Se eu estivesse faminto numa ilha deserta, inteiramente coberta de pedra, sem um pássaro, sem uma árvore, e encontrasse por acaso um exemplar de um dos livros de Gilberto Freyre, ninguém pense que eu iria ler a obra, de perna cruzada, meditando e anotando os melhores trechos. Nada disso. Eu escolheria aquela página mais gostosa do escritor de Apipucos e as devoraria imediatamente, guardando para os domingos aqueles estudos sobre doces e pratos regionais pernambucanos, que os leio e releio sempre com a bôca cheia dágua ..."

Se o objetivo destas páginas fosse definir os contrastes entre um e outro manifesto, é bem provável que fossem mais numerosas. Contudo, pretende-se captar, da aproximação entre as duas
obras, os pontos de vista e as idéias semelhantes. Afinal, tanto o MA quanto o MR foram vozes pioneiras que se levantaram a favor das distinções brasileiras, num período em que os parâmetros
culturais estavam ligados a condições externas.

O Espírito de Reação e os Conceitos de Internacionalismo, Nacionalismo e
Regionalismo no MA

O tom de crítica, de oposição e até de ironia exala de cada frase do MA. Trata-se de uma postura tomada em relação à condição estabelecida para a produção cultural brasileira, uma condição de submissão. O manifesto está imbuído da intenção de apontar para as facetas da dominação, opondo a tradição do Velho Mundo à realidade do Novo e, dessa maneira, escancarando o inadequado.

Uma imagem recorrente no MA e que exemplifica bem a questão da inadequação é a imagem relativa às roupas. Sempre que aparece, tem uma conotação negativa. No parágrafo 23(1), por exemplo, a frase faz referência à obra de José de Alencar, na qual os índios teriam "atitudes civilizadas que imitavam os grandes senhores portugueses" (Schwartz, 1995, p.144), mostrando uma figura que nada tem de européia, submetida ao gosto europeu sob trajes inconvenientes, que não têm sentido para sua realidade. Nos parágrafos 7(2) e 49(3), as idéias de atrapalhar, oprimir e barrar são associadas à vestimenta. Em todos os casos, a roupa é retratada mais como um artifício, uma fantasia que cai mal e a ninguém convence, mas que pretende escamotear a verdadeira personalidade debaixo dela. Dessa maneira, usa a roupa como metáfora para expor o ridículo da imposição de valores estrangeiros e, ao mesmo tempo, levar o leitor a associar ao nu, à cultura indígena e, em última análise, aos elementos próprios do lugar, uma conotação positiva.

O espírito de reação do manifesto também pode ser percebido na forma como o autor situa sua obra: é, sem dúvida, uma obra "contra". Vigorosamente contra a importação de valores, a cultura acadêmica, o peso de uma história que não pertence ao Brasil, a carência de senso crítico, a visão distorcida que queria meter o brasileiro na forma do europeu, o desprezo pela existência de princípios morais e religiosos diversos, enfim, contra a "peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos." (Oswald de Andrade, MA). A força da postura combativa do manifesto se expressa, inclusive, no modo como Oswald de Andrade escreve. Usando de sua habilidade para condensar a prosa, coloca sempre, junto da palavra "contra" – vocábulo forte –, complementos repletos de significados. Esse recurso causa um efeito inusitado e desperta o interesse do leitor para desvendar o "algo mais" por trás das palavras; além disso, o choque provocado pela justaposição das idéias marca, com ênfase, uma posição contra a situação estabelecida.

O tom crítico se percebe também na colocação de "emblemas ao lado de símbolos míticos opostos" (Nunes, 1984, apud Schwartz, 1995, p.142). Esses emblemas, tomados da cultura européia, requerem uma leitura de entrelinhas, bem como os símbolos, retirados da mitologia indígena. Ao se desvendarem os significados, aflora um dos principais sentidos do manifesto que é o de avaliação do quadro cultural brasileiro. Aparecem "Cobra Grande", "Jabuti", "Guaraci" e "Jaci" com os seus conteúdos mitológicos a fazer frente com a "mãe dos Gracos", a "Corte de D. João VI", a "Moral da Cegonha" e vários outros. Os significados dos elementos indígenas continuam fazendo sentido no contexto do manifesto, por exemplo, segundo nota explicativa de Nunes (1984, apud Schwartz, 1995, p.145), o "jabuti... aqui é o símbolo da astúcia, da paciência e da resistência física". Todo esse conteúdo da palavra "jabuti" inserido no parágrafo 31(4) toma um sentido ainda mais amplo. Além disso, existe a relação mais evidente que é a do resgate de elementos nativos. Com os emblemas ocorre fenômeno semelhante, já que, a "Corte de D. João VI é o arquétipo da dominação estrangeira" (Nunes,1984, apud Schwartz, 1995, p.147) e a "mãe dos Gracos" é a "figura da austeridade moral e da reverência prestada à virtude como emblema de uma fixação psicológica da cultura intelectual brasileira" (Nunes,1984, apud Schwartz, 1995, p.143). Deixando de analisar o manifesto frase a frase para desvendar cada significado, mas notando a maneira como seu autor o constrói – composição das imagens, contraste de mitos e emblemas, resgate de valores indígenas, ironia – torna-se mais acessível o seu sentido geral e o seu tom enfático.

No MA, Oswald de Andrade volta a sua forma violenta de ataque, inclusive contra os valores adotados pela classe elitizada brasileira. Dessa forma, sua crítica não se limita ao âmbito cultural e literário, mas alcança a própria sociedade, como bem ilustra o parágrafo 22: "Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo." Segundo nota de rodapé, "essas ‘elites vegetais’ designam, ao mesmo tempo, os intelectuais que ‘vegetam’ copiando modelos estrangeiros e os senhores rurais, proprietários de terra" (Nunes,1984, apud Schwartz, 1995, p.144). Enfim, no que se refere ao espírito de reação e à crítica, parece que poucos aspectos escaparam a esse manifesto e ao seu autor, que nem a si próprio poupava, como mostra Freyre (1946, p.15): "o admirável mestre de modernidade (...), com o seu incessante ardor experimental e a sua também incessante vigilância, não só crítica como auto-crítica". Dessa forma, pode-se entender que Oswald de Andrade coloca tudo, até mesmo ele, dentro de um processo, de um redemoinho que esmaga, digere e transforma: antropofagia. É a saída que mostra, a nova postura a ser tomada, que está continuamente se movimentando, em oposição à antiga que é estática e não reage ao que chega(5).

Na seqüência, algumas análises e comparações sobre o MA procuram verificar quais conotações dos conceitos de "nacionalismo", "internacionalismo" e "nacionalismo" estão presentes nele. De início, para atestar que tal manifesto, e o movimento desenvolvido a partir dele (a Revista de Antropofagia), negou a vertente obscura do sentimento nacional, é de grande ajuda recordar que esse papel coube a outro grupo paulista formado na mesma época (1929): o do Verdeamarelismo ou da Escola da Anta, que se opôs diretamente à "antropofagia". Conforme Schwartz (op. cit., p. 487 e 488), "se a antropofagia incorpora ao seu sistema Freud, o surrealismo e o humor como retórica, a escola da Anta coloca-se exatamente contra todos estes valores. Como bem observa Gilberto Vasconcelos, "Festa" e "Verdeamarelismo" são a "versão reacionária do movimento de 22". Esse grupo sim abraçou de bom grado aquele sentido negativo do nacionalismo, transformando-se, como definiu Schwartz (op. cit., p. 487), num "movimento que também busca definir a identidade nacional brasileira e que recusa todo elemento estrangeiro, especialmente o europeu, defendendo, (...), "todas as instituições conservadoras". Começam assim a se delinear os contornos de uma ideologia nacional-conservadora que, posteriormente, sob a liderança de Plínio Salgado, iria desembocar no movimento integralista, de inspiração fascista". Muita polêmica se levantou entre "canibais" e "antas", sendo que alguns episódios daqueles ataques recíprocos chegaram a ficar notórios, como "Uma adesão que não nos interessa" e "Antologia", textos de Oswald de Andrade em resposta aos desafios lançados pelos "verdeamarelistas", que indicam o quanto eram divergentes as suas idéias, inclusive quanto aos conceitos de "nacional" e "nacionalismo". Vale a pena, para ilustrar o clima das contendas, reproduzir o "poema piada Combinação de Cores: Verdamarelo Dá azul? Não: dá azar" (Schwartz, op. cit., p.239).

Pode-se dizer que o "regionalismo" do MA está no resgate do elemento primitivo, uma de suas características fundamentais. Toda a obra é pontuada por referências primitivistas que têm um significado profundo. Um dos pontos que estruturam o pensamento antropofágico é a idealização de uma organização social livre de recalques gerados pela repressão dos instintos do homem (Nunes, 1979). "Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade" (MA, parágrafo 38). A partir dessa frase é possível supor que um exemplo concreto daquela sociedade ideal seria qualquer das sociedades indígenas existentes no Brasil. Então, aos símbolos representantes da sociedade européia (civilizada e recalcada) que começa a se transferir para o Brasil, a partir do momento do descobrimento, Oswald confronta os símbolos mitológicos indígenas, primitivos. A própria antropofagia é uma atividade primitiva, através da qual os recalques seriam superados na sociedade utópica que propõe, após a deglutição do europeu pelo índio. "A transfiguração do Tabu em Totem. Antropofagia" (MA, parágrafo 35). Como extensão dessa metáfora, o autor sugere a assimilação criteriosa das influências estrangeiras, pois o índio só comeria o prisioneiro de bons valores, para se apoderar de suas qualidades. Aqui também se encaixa a "reação": não aceita a idéia de copiar para passar a ser igual (pois, assim, se partiria do pressuposto de que aquele que tenta copiar está numa situação de inferioridade); propõe assimilar o que o estrangeiro ou o prisioneiro tem de bom, para tornar-se ainda melhor (dessa forma, o pressuposto seria que aquele que assimila também tem suas virtudes – primitivas que sejam – às quais pretende somar as virtudes alheias). Portanto, pode-se dizer que a busca do "primitivo" se identifica com a busca do "regional", no MA, pois o homem anterior à civilização é possível de ser encontrado dentro da região delimitada pelas fronteiras do Brasil. Além disso, a valorização de certos aspectos especificamente brasileiros ressalta o sentido nacionalista do manifesto. De uma forma mais geral, quando se lê o MA, nota-se que todo o seu conteúdo está voltado para a valorização das características originais do lugar, ao que Nunes (op. cit., p.33) dá o seguinte esclarecimento: para "Oswald, a originalidade nativa compreendia os elementos populares e etnográficos da cultura brasileira, outrora marginalizados pelo idealismo doutoresco da intelligentsia nacional do século XIX (...). Seria preciso liberar a originalidade nativa das camadas idealizantes e ideológicas que a recobrem e recalcam, para encontrá-la já, em estado de pureza, nos fatos significativos da vida social e cultural." Então, assim, vê-se que o manifesto também é regionalista quando se volta para as coisas da terra, acrescentando-lhe o sentido de ser regional pelo viés do primitivismo, que pretende transformar o tabu em totem.

Embutida na busca da primitividade e das raízes profundas está presente a idéia de "descida". Pode-se aproximar um trecho do MA(6) a um do texto "Porque Como"(7), também de Oswald de Andrade, sobre o qual explica Schwartz (op. cit., p.503): "Originalmente, as entradas dos bandeirantes no sertão eram denominadas "descidas". A terminologia foi aproveitada pelo grupo modernista, que mencionava a "descida antropofágica"." Assim, a "descida" tem um caráter de redenção dos elementos que estavam ocultos, enterrados ou estragados: mais uma vez, a transformação do tabu em totem.

Embora o MA tenha essa relação profunda de revelação dos aspectos nativos da cultura, não seria adequado encará-lo como radical, regionalista radical ou nacionalista radical. O tempo todo ele sugere a fusão, a deglutição e o relacionamento com as idéias e produtos estrangeiros. O parágrafo 12(8), por exemplo, assim como o 43(9) indicam a assimilação do elemento primitivo ("bárbaro", "estrelas") e do civilizado ("tecnizado", "instrumentos") no mesmo nível, sem predominância de nenhum deles. Dessa forma, o problema da devastação da cultura nativa pela estrangeira estaria neutralizada pela associação de duas polaridades, num processo contínuo que geraria uma cultura própria. Todo o MA, como já foi visto, rechaça a dominação da influência estrangeira, embora aceite "deglutir" elementos exóticos para melhorar a si mesma. Talvez nenhum trecho explicite melhor esse espírito do que o parágrafo 5 do manifesto: "Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago". Nesse sentido, portanto, pode-se dizer que a obra seja "internacionalista". Considerando-se que esse termo também pode apresentar um sentido positivo e um negativo, cabe um esclarecimento: é bom afastar a idéia de que Oswald de Andrade, por ter sido um modernista atualizado com as "revolucionárias técnicas da vanguarda européia" (Schwartz, op. cit., p. 140), não se comportou como um veículo, simplesmente, a transpor as novidades de lá para cá pois, se fosse, estaria esvaziado o próprio conteúdo do pensamento que desenvolveu (Nunes, op. cit., p.14). Ao contrário, atuou como "antropófago", assimilando a "linguagem moderna" para "reafirmar os valores nacionais" (Schwartz, op.cit., p.140). Na idéia de "assimilação" está presente uma das maneiras pelas quais esse manifesto foi "internacionalista": mais que permitir influências estrangeiras, assimilava o que nelas havia de revolucionário ("o que não é meu") e utilizava para renovar a cultura brasileira. Oswald ainda declara que "não será por termos feito essa descoberta [da antropofagia], que vamos renunciar a qualquer conquista material do planeta como o caviar e a vitrola, o gás asfixiante e a metafísica" (Schwartz, op.cit., p.502), chamando a atenção, com essas palavras, para o fato de não ser por estar em busca do primitivo que vai negar as conquistas da sociedade civilizada. "Comi-o". Como afirma Nunes (op.cit., p.15,19), Oswald adota a imagem do canibal e ela "(...) que a nenhum autor pertenceu, fez parte do repertório comum a todos, e a todos serviu, de acordo com as intenções específicas de cada qual. (...) Por que não admitirmos que Oswald de Andrade pudesse se aproximar dessa fonte de que todos bebiam, e retirar, com igual direito, o seu quinhão, que assentaria o compromisso do Modernismo brasileiro com uma propriedade comum da época moderna?" Adota uma imagem internacional, mas dá a ela um significado novo, diferente dos significados europeus; então, não existe a imitação. A utopia "do matriarcado de Pindorama", proposto no MA, também tem caráter "universalista", posto que não se aplicaria restritivamente ao Brasil, mas a qualquer lugar em que, através de um ritual primitivo – "a transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia" (Oswald de Andrade, MA) -, o sistema social civilizado fosse transformado, donde resultaria "um sistema socialplanetário" (Oswald de Andrade, MA) e internacional.

O Espírito de Reação e os Conceitos de Internacionalismo, Nacionalismo e Regionalismo no MR

No manifesto de Gilberto Freyre também é flagrante a presença do espírito inquieto, insatisfeito quanto a um certo estado de coisas. Essa reação, no entanto, não é constituída por golpes duros que causam desconforto e mal-estar, ao contrário, brota continuamente, de maneira sedutora e gostosa, sem deixar de ser incisiva por isso. Descrevendo vários modos de expressão e vários produtos da atuação do homem – seja do homem do Recife ou outros, de outros lugares e outros tempos – o autor faz comparações e enaltece certos traços da cultura, como a arquitetura, a relação com a fauna e com a flora, os hábitos tradicionais, a indumentária e, principalmente, a culinária. Em todos, aponta para os aspectos positivos e negativos das influências estrangeiras.
Por exemplo, como Oswald de Andrade, no MA, Gilberto Freyre recorre à vestimenta para expor impropriedades às quais a cultura brasileira estava atada. Logo no início do MR, aparece um trecho(10) que critica, no sentido metafórico, o uso de peles numa terra tropical. Mais precisamente, está direcionada e atinge a adesão das elites aos modismos europeus, mesmo que totalmente absurdos. Em seguida, o autor sugere uma vestimenta simples, feita aqui, de acordo com as necessidades próprias do local, valorizando a idéia de que seria mais acertado abandonar os requintes estrangeiros em favor de uma simplicidade adequada. E, ainda na seqüência, faz um alerta para que não se misture sua sugestão com o equívoco de tentar camuflar aquilo que não pertence ao local (trajo norteeuropeu) com os símbolos do local (penas, índios, tucanos, entre tantos outros), pois resultaria num arremedo ainda mais ridículo. No mesmo sentido, rechaça o "carnavalesco Papai Noel"(11), cuja figura é estranha à cultura brasileira. Suas roupas e botas não são para altas temperaturas e, assim, aqui, seu trajo se transforma numa fantasia sobreposta ao que poderia ser uma expressão natalina autêntica, impedindo-a de ser. Em detrimento do Papai Noel, sugere personagens próprios das histórias folclóricas: o "Cabeleira", a "Cabra Cabriola", o "Bicho Carrapatu"(12). Promove as vestes e os adornos das baianas(13), das mulheres do povo, dos sertanejos e dos matutos(14), descrevendo-lhes os detalhes e mostrando o quanto estão integrados às condições culturais e do meio; cita várias vezes a renda, como produto de um trabalho tradicional, que mereceria ser estudado e registrado. Em contraste, censura as brancas, que descreve como "escravas dos figurinos franceses"(15), pois ainda não se libertaram das amarras da moda estrangeira para gozar do conforto da roupa criada de acordo com experiências ancestrais do clima quente.

O espírito de reação, no MR, se desenvolve, ainda, em outras frentes. Pode-se entender que uma delas seja a desaprovação da adesão cega ao progresso. O autor trata de variados temas e, em quase todos, mostra os prejuízos aos quais estão expostas as culturas locais quando novidades estranhas aportam sem terem passado por um processo de assimilação e adaptação. Por exemplo, de dentro do tema privilegiado no MR, que é a culinária, Gilberto Freyre escolhe o doce para criar a seguinte metáfora: "Nunca repudiar tradições tão preciosas para substituí-las por comidas incaracterísticas de conserva e de lata (...) O doce de lata domina. A conserva impera. O pastel afrancesado reina". Assim, chama atenção para o fato de que não basta ser novo, industrializado, para ser bom e que é preciso, sempre, avaliar quais das novas idéias podem ter bom aproveitamento e boa adaptação, sob o risco de colocar em perigo a identidade quando tal avaliação não é feita. O tema da arquitetura e o da aceitação generalizada de produtos e idéias novos são abordados no mesmo sentido, com o detalhe de que o autor nunca se coloca radicalmente contra a "modernização"(16). A linha crítica não se restringe à onda progressista: o MR está pontilhado de passagens que revelam, segundo seu autor, como uma influência estrangeira pode ser boa ou má. Utilizando o recurso da justaposição de idéias opostas, encontra-se, por exemplo, uma bela descrição dos mucambos - na qual suas qualidades são apresentadas de tal forma que, ao leitor, cabe se render aos argumentos - seguida de uma descrição, rápida e clara, de um tipo de equívoco que se pode cometer em arquitetura, quando, em sua constituição, predomina a imitação de soluções estrangeiras e não a atenção às necessidades do meio(17). Mais um exemplo é o trecho em que começa com a reivindicação dos símbolos brasileiros para os museus e as praças brasileiras e termina com a negação dos símbolos da elite e dos estrangeiros(18). Em geral, considera como boas influências estrangeiras as reminiscências dos troncos culturais diversos que se reuniram no Brasil. Dentre essas contribuições positivas, o autor informa com sutileza que as raízes médio-orientais estão, desde há muito tempo, de acordo com as exigências do meio, posto que o meio de origem é semelhante ao brasileiro em vários aspectos. Trata-se de conhecimentos e sabedorias que remontam há séculos e que chegaram através do português e do africano, basicamente(19). Mergulha fundo na busca das procedências, ao mesmo tempo em que, nesse sentido, denota negação do elemento europeu representante da imposição pesada de sua cultura industrial e de sua história, apesar de que, no que diz respeito à culinária, que também pode ser considerada uma metáfora(20), considera como bons os acentos regionais que muito devem às várias ondas de imigração européias. Dessa forma, nota-se que o MR não deve ser lido de um ponto de vista fixo, pois apresenta nuanças sobre um mesmo aspecto. Então, aí está mais uma de suas características: apesar de se intitular "regionalista", aprova que as diferentes culturas sejam permeadas umas pelas outras, excetuando-se a relação de servidão, o que lhe dá um aspecto de "internacionalismo" e evita que debande para a xenofobia.

Em seguida, há algumas considerações sobre os conceitos de "regionalismo", "internacionalismo" e "nacionalismo" no manifesto de Gilberto Freyre. Talvez seja fácil, sobre um manifesto que se intitula regionalista, tomá-lo simplesmente como defensor de idiossincrasias de um lugar específico. De fato, o MR é isso, mas é muito mais também. Logo no início, uma detalhada ressalva afasta quaisquer idéias equivocadas de um possível leitor distraído. Não se fecha nos limites do território e do tempo, mas procura abrir-se, relacionar-se com o mundo: não pretende ser separatista, bairrista, anti-internacionalista, anti-universalista, anti-nacionalista nem antiprogressista(21).

Pode-se dizer que o regionalismo desse manifesto tem um caráter mesológico pois encara as mais variadas formas de expressão – desde a culinária até a arquitetura – como produtos do meio. O mucambo, por exemplo, é um tipo de arquitetura um tanto rústica, mas espontânea e bem adaptada, concomitantemente, às necessidades do morador e às exigências do ambiente e, portanto, carrega dados culturais dignos, mesmo que primitivos. Aliás, há que se fazer considerações acerca do "primitivo" no MR. Sem dúvida, ele pode ser encarado como a valorização da simplicidade, das coisas despojadas de requintes e refinamentos e, de forma mais abrangente, como dos elementos periféricos ao mundo "europeizado", elitizado ou mesmo burguês. Mas é, inclusive, à procura do cerne inicial, "primitivo", que está esse manifesto. No seu desenrolar, sempre vêm à tona as origens distantes dos hábitos, sejam da própria terra ou de outras. Resgata a contribuição indígena na cozinha do Norte e da região central do Brasil – a tartaruga, a castanha, o açaí, a caça e a pesca(22). Cita também a aproximação entre homens, plantas e animais, ressaltando ser esta uma aproximação muito íntima, na qual a diferença entre as espécies se dilui. Árvores e cavalos são "quase gente" e vice-versa; todos "falam" a mesma língua e, através desse rico canal de comunicação, chegam os segredos das ervas medicinais e vão os dos anseios humanos. É um mundo em fusão(23). A primitividade característica de cada local dá o tom de cada regionalismo. Dessa maneira, considerando-se que o cerne, a raiz é o que pode existir de mais profundo e oculto, e que o MR está em busca dessas qualidades, é coerente que seu autor se refira à "descida". Para ele, é preciso descer à cozinha, ao mercado, ao povo, à terra e à água, pois é lá que estão as "fontes de vida"(24). Os elementos primitivos e profundos do meio estão disponíveis e o homem aprende a reagir com eles harmoniosamente, resultando numa cultura única.

É válido lembrar, inclusive, que esse homem, ou melhor, esses diferentes homens trazem suas próprias bagagens culturais, com exceção do índio, que já estava aqui, fato encarado de forma positiva. Por esse viés é possível abordar o aspecto "internacionalista" do MR. Nele são aceitas e até incentivadas as influências estrangeiras(25), desde que tragam contribuição enriquecedora à cultura do lugar e estejam adaptadas ao meio. Como obra impregnada de mesologia, nela ocorrem várias vezes a aprovação de influências trazidas pelos povos orientais e norte-africanos, em detrimento das influências européias, como já foi citado. A adaptação da arquitetura e da indumentária ao clima tropical e total miscigenação das diversas culinárias significam uma grande e inteligente abertura ao mundo. O manifesto defende que o relacionamento com o exótico é bom, na medida em que contribui para a vida da cultura regional, e nunca toma posição radical de isolamento, o que evita de tornar-se "regionalista" ou "nacionalista" no aspecto mais negativo dos conceitos. Nesse sentido, o manifesto é um processo dinâmico. Não pretende que uma cultura regional seja imutável e hermética.

Nacionalismo, palavra de definição ambígua, é outra que também pode conter em si um sentido positivo e um negativo. Gilberto Freyre define a linha divisória entre os sentidos mostrando que dá mais crédito à espontaneidade das tradições e dos costumes como constituintes básicos da cultura, do que a certas manifestações artificiais realizadas com o intuito de serem nacionais(26). Dessa forma, explicita que a opção de não compactuar com o nacionalismo exacerbado era consciente. Na sua visão, dentro dos limites do Brasil, várias regiões eram configuradas de acordo com suas respectivas especificidades, que não coincidiam necessariamente com as divisões rígidas e separatistas dos Estados. Aliás, divisões herdadas da transferência da predominante influência européia para a norteamericana, portanto, mais uma má influência estrangeira. Defendia que o todo deveria ser formado por várias partes, preservando-se a diversidade. O nacionalismo sugerido por Gilberto Freyre respeitava as alteridades de si mesmo, não era balizador(27).

Outro detalhe que interessa para esta análise está presente no prefácio à 6a. edição do MR, onde se lê sobre a "vária cor (...) que correspondesse à vária cor de uma população panbrasileira crescentemente miscigenada (...). Morena em vários graus conforme as misturas de sangue (...). Tendência que, (...) acentuando-se formaria no Brasil uma democracia sem privilégios raciais." (Freyre, 1976, p.35). Também esse trecho denota o respeito à predominância e à heterogeneidade dentro das fronteiras de um mesmo país. Nesses termos é que o sentido positivo da palavra "nacionalismo" surge no MR: defesa da unidade nacional com respeito pelas diferenças regionais, mais a aceitação das boas influências estrangeiras.

Conclusões

A partir do que foi mostrado no decorrer das análises dos manifestos Antropófago e Regionalista, pode-se considerar que apresentam vários pontos de vista em comum, apesar de suas naturezas diferentes. Devido a vários fatores, seria previsível que os conteúdos das obras fossem diversos, o que é verdade, sob certo aspecto. Afinal, é preciso considerar que cada autor foi procedente de uma região, que participou de grupos intelectuais diferentes e que deixou obras em diferentes áreas: literatura e sociologia. Mesmo assim, a análise mostrou que, por vias diferentes, eles atingiram alguns mesmos pontos, o que também não é nenhuma surpresa, pois o momento histórico que os envolvia era o mesmo. A própria iniciativa de lançarem manifestos denota a necessidade em comum de estabelecer e divulgar, cada qual, suas idéias. Talvez as semelhanças mais imediatas que se possa detectar sejam a de negação das tirânicas influências culturais européias (francesas, principalmente) e a expressão do sentimento de maturidade nacional nos âmbitos social e cultural. Nesse sentido, ambos os manifestos apresentam esse aspecto inerente de exercer uma avaliação severa dos valores que conduziam a produção cultural brasileira, até então, através do desenvolvimento e valorização de parâmetros novos. Diga-se, inclusive, que essa postura crítica chegou a ser revolucionária nos dois manifestos. O próprio Gilberto Freyre (1976, p.15) afirmou que seu escrito foi "(...) para a época, escandaloso, (...)". E, segundo NUNES (1979, p.51) "(...) os nossos antropófagos foram críticos da sociedade, da cultura e da história brasileira". Não é difícil flagrar o "espírito de reação" contido no MA e no MR, pois, podem-se observar algumas coincidências na maneira de expressar esse sentimento.

Uma é o fato de que ambos os autores empregam a imagem da indumentária para inserir nos manifestos metáforas de caráter crítico. Nos trechos analisados e em outros pontos dos manifestos, os autores recorrem à roupa ora para explicitar como o ridículo se manifesta quando valores estrangeiros são copiados, ora para incentivar a valorização dos modos locais de ser. Principalmente quando mencionam as roupas é que fica clara a noção de inadequação. Outra é que tanto um como o outro utilizam símbolos europeus e da elite local europeizada para repelir os valores alienígenas, ao mesmo tempo em que buscam resgatar e valorizar símbolos próprios brasileiros. Como se vê, em vários pontos dos manifestos encontram-se semelhanças relacionadas ao sentido de "reação" à subordinação exercida pela cultura européia no Brasil. Claro, os manifestos não se limitam a esse significado: a "reação" representa apenas um dos pontos em que as obras se identificam.

De alguma forma, os outros aspectos em que o MA e o MR apresentam similaridades estão entrelaçadas aos conceitos de "nacionalismo", "internacionalismo" e "regionalismo". Considerou-se, neste trabalho, a dificuldade em definir qualquer um dos conceitos, portanto seus atributos foram discutidos uns em relação aos outros. Facilmente se pode verificar que as obras querem valorizar os elementos originais, nativos, próprios do Brasil e, mais do que disso, elas procuram com muito afinco aquilo que pode estar oculto, mas representa a raiz que define os principais traços culturais. As duas se lançam na busca dos elementos "primitivos" e da "primitividade" e as duas, também, usam a idéia da "descida", tanto para tentar uma aproximação com o que há de mais autêntico, quanto para resgatar a autenticidade encoberta. Pode-se entender que "descem" à procura do que estava mais escondido ou distante, para reorientar o que estava se perdendo ou para curar o que estava estragado. Oswald voltou-se para o elemento indígena, para a sociedade primitiva e para o ritual arcaico da antropofagia, ou seja, enalteceu os atributos característicos da terra que, com a chegada do europeu, passam a ser esquecidos, estragados, deliberadamente disfarçados. Gilberto Freyre procurou o homem e as tradições populares forjados pelas condições do meio, valorizou a carga cultural dos homens de diversas nacionalidades que se encontraram no Brasil e contribuíram para criar, aqui, uma cultura legítima, e propôs que se desse mais atenção às coisas da terra em detrimento dos valores estrangeiros impostos e impróprios. Nesse sentido, então, pode-se afirmar que as obras são "regionalistas". Esse "regionalismo" identificado no MA e no MR apresenta uma faceta que os torna ainda mais próximos. Ele pode ser encarado como uma espécie de resistência frente à onda de "cosmopolitismo" ou "progressismo" desenfreados que havia se transformado em moda no início do século XX, devido ao desenvolvimento e à expansão dos meios de comunicação e transportes, da indústria e da tecnologia em geral, nas nações mais desenvolvidas da Europa, principalmente. Dizer-se "cosmopolita" e desejar o progresso, portanto, significava estar atualizado. Dessa corrente predominante levantaram-se os dois manifestos, alertando para o risco da perda de identidade e funcionando como resistência benéfica à devastação do progresso.

O fato de que nem MA nem MR caíram no equívoco de se tornar "fanaticamente modernos" não significa, por outro lado, que foram contaminados pela xenofobia. Eles não se lançam na defesa radical das características nacionais ou regionais, eles não se fecham ao mundo. Foi observado no MR que as boas influências estrangeiras são aceitas e recomendáveis, entendendo-se por "boas influências", por exemplo, o conhecimento secular de como viver debaixo do sol tropical, de como elaborar a culinária, de como utilizar materiais, fauna e flora disponíveis, relações todas muito adequadas ao meio. No MA, surgem indicações de que não é bom renunciar aos avanços tecnológicos que, afinal, podem trazer benefícios à humanidade; é preciso que a cultura brasileira se aproprie desses avanços. Nos dois casos, o que está sendo sugerido e incentivado é que a cultura local não se feche, mas se relacione de maneira dinâmica com as influências estrangeiras, assimilando e transformando o que for positivo, rejeitando o que não for e, assim, se renovando constantemente, mas preservando a identidade. Uma sutileza presente nos dois manifestos – mais uma pequena semelhança – é que, apesar de estarem numa posição contra a subordinação cultural exercida pela Europa, não acreditam que valores possam simplesmente ser transferidos de um lugar para outro sem sofrer alterações, independentemente do sentido em que se dão. Acreditam que também a cultura estrangeira pode ter sido influenciada pelo contato com o Brasil(28). Assim, demonstram que aceitavam as mútuas relações entre as culturas, como uma via de duas mãos na qual se desenrola um processo complexo que pode enriquecer todos os envolvidos. Dessa forma, os manifestos podem ser considerados "internacionalistas", no seu sentido positivo, pois aceitam que diferentes culturas sejam permeadas umas pelas outras, excetuando-se a relação de servidão (que seria o sentido negativo do termo). A essa altura, também se pode afirmar que nenhum dos manifestos analisados pretende ser "nacionalista", no sentido negativo do termo, ou seja, no sentido que engloba o significado de hermético, avesso ao estrangeiro e, por último, político. Sucintamente, pode-se concluir que o MA e o MR foram "regionalistas" e "internacionalistas", mas não foram "nacionalistas", considerando as distinções acerca dos significados desses termos.

Pode-se concluir, também, que, além de terem delineado o perfil da "cultura brasileira" – o que era bom e o que não era, o que merecia ser considerado e o que não merecia – naquele cenário dominado pela influência estrangeira, ambos os manifestos conseguiram soprar novo alento em diversas áreas, como a dos estudos sociais e das artes. Seu legado é vasto e importante, sem o qual seria difícil imaginar o curso da produção cultural brasileira até a atualidade. Para finalizar, é válido lembrar também que, durante as duas primeiras décadas do século XX, não apenas o Brasil, mas toda a América Latina passava por uma fase nacionalista, motivada pelas comemorações dos centenários de independências, entre outros fatores. Foi, por excelência, um momento de reflexão sobre identidade e dominação cultural, no qual o aparecimento dos manifestos analisados neste trabalho está totalmente coerente, e está contido num contexto mais amplo e profundo: MA e MR são frutos de condições históricas, ideológicas e culturais de sua época.

Referências

ANDRADE, O. (1995). "Manifesto Antropófago". In: SCHWARTZ, J. . Vanguardas Latino-Americanas:
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TEIXEIRA, A. (1963). Gilberto Freyre, mestre e criador da Sociologia. "Revista Brasileira de Estudos
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REVISTAS RE-VISTAS: Os Antropófagos. (1976). Edição Fac-similar da "Revista de Antropofagia".
São Paulo.

Notas

1 "O índio vestido de Senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos
portugueses." (MA, §23).
2 "O que atrapalhava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o
homem vestido." (MA, §7).
3 "Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud...." (MA, §49).
4 "Mas não foram os cruzados que vieram. Foram os fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e
vingativos como o Jabuti" (MA, §31).
5 "Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico." (MA, §18).
6 "A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato." (MA, §46).
7 "...tudo ficou estragado. (...). Agora é que está pior. Então chegou a vez da descida antropofágica." Schwartz (op. cit., p.503):
8 "bárbaro tecnizado de Keyserling" (MA, §12).
9 "acreditar nos instrumentos e nas estrelas" (MA, §43).
10 "Nosso movimento não pretende senão inspirar uma nova organização do Brasil. Uma nova organização em que as vestes
em que anda metida a República – roupas feitas, roupagens exóticas, veludos para frios, peles para gelos que não existem por
aqui – sejam substituídas não por outras roupas feitas por modista estrangeira mas por vestido ou simplesmente túnica
costurada pachorrentamente em casa: aos poucos e toda sob medida. (...) para a reorganização nacional parece ser o de darse,
antes de tudo, atenção, ao corpo do Brasil, vítima, desde que é nação, das estrangeirices que lhe têm sido impostas, sem
nenhum respeito pelas peculiaridades e desigualdades da sua configuração física e social; e com uma outra pena de índio ou
um ou outro papo de tucano a disfarçar o exotismo norte-europeu do trajo." (MR, §5).
11 "... o que o Rio ou São Paulo consagram como "elegante" e como "moderno": inclusive esse carnavalesco Papai Noel que,
esmagando com suas botas de andar em trenó e pisar em neve, as velhas lapinhas brasileiras, verdes, cheirosas, de tempo de
verão, está dando uma nota de ridículo aos nossos natais de família, também enfeitados agora com arvorezinhas estrangeiras
mandadas vir da Europa ou dos Estados Unidos pelos burgueses mais cheios de requififes e de dinheiro." (MR, §10).
12 "Nem mesmo em que houvesse uma "casa de horrores", onde os horrores em vez de ser os europeus, como nos parques de
diversão comum, fossem o Cabeleira, a Cabra Cabriola, o Bicho Carrapatu apresentados de tal modo que não perturbassem a
digestão de ninguém mas divertissem grandes e pequenos." (MR, §58).
13 "Outras ainda, pelos seus cabeções picados de rendas, pelos seus panos da Costa, pelas suas chinelas, pelos seus
balangandãs, pelos seus turbantes, pelas suas tetéias, pelo seu ar de princesas ou de rainhas não de maracatus, mas de
verdade" (MR, §60).
14 "Mestras de higiene tropical são também as mulheres do povo que andam pelas ruas e estradas ao sol do meio-dia
protegidas contra esse sol excessivo por xales, mantilhas, panos da Costa elegante e liturgicamente sobre a cabeça e os
ombros de dez ou vinte formas diversas que merecem um estudo, tanto é o que podem revelar sobre as culturas orientais e
africanas que se transferiram para o Brasil com esses xales, mantilhas e panos e os diferentes modos, maometanos ou não,
das mulheres o usarem. (...) Mestres de higiene regional do trajo são os sertanejos e os matutos que andam com camisas
leves por fora das calças também leves, chapéus de palha, alpercatas. Mestras de adorno pessoal de acordo com o clima e a
paisagem da região são as morenas, as mulatas e caboclas, cujo cabelo brilha à luz da lua amaciado pelo mais puro óleo de
coco, perfumado pelos mais cheirosos jasmins." (MR, §60).
15 "Mestras são, ainda, algumas delas, pelas lições que dão às brancas – escravas dos figurinos franceses – vestindo-se
segundo sábias tradições árabes: turbante, cabeção picado de rendas, pano largo e de cores vistosas que as protege sábia e
graciosamente do sol." (MR, §60).
16 "O mesmo poderia alguém dizer das velhas ruas estreitas do Nordeste. Bem situadas, são entre nós, superiores não só em
pitoresco como em higiene às largas. As ruas largas são necessárias – ninguém diz que não, desde que exigidas pelo tráfego
moderno; mas não devem excluir as estreitas." (MR, §17).
"Procuramos defender esses valores e essas tradições, isto sim, do perigo de serem de todo abandonadas, tal o furor neófilo
de dirigentes que, entre nós, passam por adiantados e "progressistas" pelo fato de imitarem cega e desbragadamente a
novidade estrangeira." (MR, §10).
17 "Ainda há pouco um estrangeiro viajadíssimo era com se encantava no Rio de Janeiro: com as velhas ruas estreitas. E não
com as largas. Não com avenidas incaracterísticas. Não com as nossas imitações às vezes ridículas de "boulevards" e de
"broadways", por onde a gente que anda a pé só falta derreter-se sob o sol forte com que o bom Deus ora nos favorece, ora
nos castiga." (MR, §18).
18 "Querer museus com panelas de barro, facas de ponta, (...). Querer os grandes edifícios públicos e as praças decoradas com
figuras de homens de trabalho, (...), jangadeiros, vaqueiros, mulheres fazendo renda – e não com as imagens convencionais e
cor-de-rosa de deusas européias da Fortuna e da Liberdade, de deuses romanos disto e daquilo, de figuras simbólicas das
Quatro Estações." (MR, §22).
19 Ver nota 09, por exemplo, ou "O português com seu gênio de assimilação trouxera para a sua mesa alimentos, temperos,
doces, aromas, cores, adornos de pratos, costumes e ritos de alimentação das mais requintadas civilizações do Oriente e do
Norte da África." (MR, §36).
20 Todas as considerações sobre a culinária encontradas no MR podem ser estendidas para outros segmentos da sociedade,
como afirma o autor do manifesto: "E uma cozinha em crise significa uma civilização inteira em perigo: o perigo de
descaracterizar-se." (MR, §53).
21 "A maior injustiça que se poderia fazer a um regionalismo como o nosso seria confundi-lo com separatismo ou com
bairrismo. Com anti-internacionalismo, anti-universalismo ou anti-nacionalismo. Ele é tão contrário a qualquer espécie de
separatismo que, mais unionista que o atual e precário unionismo brasileiro, visa a superação do estadualismo,
lamentavelmente desenvolvido aqui pela República – este sim, separatista – para substituí-lo por novo e flexível sistema em
que as regiões, mais importantes que os Estados, se completem e se integrem ativa e criadoramente numa verdadeira
organização nacional." (MR, §4).
22 "Outras tradições culinárias (...) poderiam ser acrescentadas (...): a região do extremo Norte, com a predominância de
influência indígena (...); a região fluminense e norte-paulista (...); e, nas florestas do centro do País, pela utilização da caça e do
peixe de rio – tudo ascética e rusticamente preparado." (MR, §32).
23 "Pois o Brasil é isto: combinação, fusão, mistura". (MR, parágrafo 63).
24 "De modo que, no Nordeste, quem se aproxima do povo desce a raízes e fontes de vida de cultura e de arte regionais. Quem
se chega ao povo está entre mestres e torna aprendiz, por mais bacharel em artes que seja ou por mais doutor em medicina."
(MR, §61).
25 Como, por exemplo, no trecho: "Os romancistas, contistas e escritores atuais têm medo de parecer regionais, esquecidos de
que regional é o romance de Hardy, regional é a poesia de Mistral, regional é o melhor ensaio espanhol:o de Gavinet, o ed
Unamuno, o de Azorin." (MR, §50).
26 "Quando aos domingos saio de manhã pelo Recife (...) sinto vir ainda de dentro de muita casa o cheiro de munguzá e das
igrejas o cheiro de incenso, vou almoçar tranqüilo o meu cozido ou o meu peixe de coco com pirão. Mais cheio de confiança no
futuro do Brasil do que depois de ter ouvido o Hino Nacional executado ruidosamente por banda de música ou o "Porque me
ufano de meu país", evocado por orador convencionalmente patriótico." (MR, §55).
27 Ver nota 21.
28 Segundo Oswald, "sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem" (MA, §11). E,
segundo Freyre, "de regionalistas, a seu modo modernistas, do Recife, foi pioneira e revolucionária a interrelação de métodos
(...), tendo o crítico e pensador existencialista francês Jean Pouillon destacado essa contribuição brasileira para os modernos
estudos sociais como inovador "pluralismo metodológico". (...) Registre-se que recentemente o escritor inglês Gilbert Phelps
considerou ter sido a antecipação brasileira nesse sentido de pelo menos vinte anos com relação à Europa e aos Estados
Unido" (Freyre, 1946, p.24).