13.9.05

Ética e Direito

Este texto pretende lançar alguma luz na sondagem perquerida por muitos sobre a controvertida relação entre a pragmática do Direito e a Ética.

Pergunta-se, com efeito e como questão fundamental, se o Direito, enquanto norma positivamente elaborada e coercitivamente imposta – sendo a técnica e prática legais e procedimentais -, guardaria ou não um substrato fundante e geral de ordem ética.

Para começarmos a responder a esta questão vale registrar, neste ponto, que entendemos a Ética - também a sua co-irmã Estética -, como categorias de caráter superior do pensamento humano e de civilização, portanto construções intelectivas de cunho filosófico que instituem a relação com a noção do Belo: relação política – Ética; relação objetual – Estética.

Dessa lógica, entendemos razoavelmente que não havia Ética, conhecida como esse valor arquetípico considerado acima, antes da Filosofia Ocidental. Cremos que não podemos pensar em Ética, como aqui a colocamos, antes, principalmente, de Platão e Aristóteles. Não havia Ética, e sim uma espécie de moral primária, no ritualismo e na mitologia dos povos primitivos; nos ritos de passagem, iniciação e de poder; nas teogonias, e no animismo que fundamentava a relação deles com as forças da natureza e com seus pretensos deuses ou com o próprio Deus. Seus mitos é que diziam o quê, e como deveriam fazer e agir. Tinham esses povos, sim, arquétipos e estereótipos constituídos, nada obstante, tão-só para instrumentalizar e personalizar essa sua onipresente mitologia. Os mitos governavam assim o imaginário e o inconsciente coletivo das sociedades primitivas, e um deles, o mito do poder de origem divina ou sagrada deu vazão ideológica e embrionária à criação dos Estados teocráticos e autocráticos, e a seus incipientes códigos, primeiramente morais, para depois encontrarmos traços objetivos de jurisdição estatal como modernamente a conhecemos.

Pois bem: com o advento da Filosofia introduziu-se a ruptura com essa prática, e uma tentativa de leitura racional do mundo. No que se refere à Ética, o idealismo socrático ensinava, por exemplo, não valer a pena praticar o mal, inclusive porque o mal não existiria por si mesmo, a não ser como um contraponto ou ausência. Ausência do auto-conhecimento que levaria o homem inexoravelmente ao caminho dos modelos superiores, a caminho do Bem.

Um texto lido coloca essa maiêutica socrática como uma espécie de exercício interior de alteridade, o que nos levaria a sermos dois em um. Somos um que pratica e outro que analisa - e julga. O texto também coloca a possibilidade do mal como sendo a prática do ignorante, e não necessariamente do malfeitor, o que cria um impasse considerável à análise que ora fazemos sobre a possibilidade cognoscível da própria Ética - e de forma ontológica -, sem a qual - sem esse fino discernimento -, não teríamos como considerá-la imanentemente normativa. Pergunta-se, portanto e em suma: o sujeito pensante teria efetivamente, e sempre, consciência de sua eventual "maldade", por exemplo, ou mesmo consciência de que estaria sendo a-ético nesse proceder? Se não, seria moral e humanamente justo puni-lo por sua transgressão, desvendada e descoberta assim como absolutamente involuntária?

Essa questão é bastante complexa e difícil de responder, e pode ser deixada relativamente de lado porque quiçá represente um colapso na noção de Ética. Cumpre-nos então e agora, por razões de objetividade e manutenção de foco analítico, situar o Direito, o ordenamento jurídico, no seio das relações político-culturais das sociedades humanas para entender a eventual conexão que o tempo histórico estabeleceu entre ele e a Ética.

O Estado, do ponto de vista marxista – e como bem sabemos -, organizar-se-ia, dialeticamente, na dependência do modo de produção vigente na sociedade e da ideologia e valores dele decorrentes.

No início da História, com a Revolução do Neolítico, o homem tornou-se sedentário, artesão, agricultor, e daí surgiu, com o acúmulo material, a propriedade privada. Pode-se dizer que também a Arte em suas diversas vertentes teve nesse momento seu desenvolvimento iniciado. Houve a sobra de produção que alavancou, direta e indiretamente, a prosperidade material e espiritual. Formou-se o amálgama para a criação do Estado como o conhecemos: primeiramente, o Estado teocrático, através da proeminência dos sacerdotes, com os clãs e as primeiras tribos; no curso dos acontecimentos, sucedeu o Estado Autocrático, seja de raiz militar ou civil. E quanto ao Direito?

O Direito, também do ponto de vista marxista, o principal elemento da superestrutura da nova sociedade politicamente organizada, nasceria com o verniz que lhe imprimiria o modo de produção vigente, no que concerneria ao estabelecimento das regras de disciplinamento do acesso à produção, distribuição e consumo gerais, e portanto de acesso ao poder, mal disseminado e desigual desde o princípio de sua organização.

O Direito legitimou "o homem é o lobo do homem" através de códigos que favoreciam, seja direta ou através de sua exegese ideológica, elites militares, castas familiares e elites fundiárias e econômicas que marcaram principalmente a Idade Antiga e Média-Alta da nossa História.

O Renascimento, adiante, pôs fim às trevas. O Humanismo ressurgiu, principalmente nas artes plásticas, no urbanismo e na literatura. Cidades floresceram comercialmente com a Revolução Comercial e o Classicismo. Surge a Burguesia e a Ciência Política. Voltaire, Maquiavel, Montesquieu, Bacon. A Revolução Científica, mãe do Iluminismo, está em curso: Copérnico, Kepler, Galileu, Descartes. Há a reforma religiosa de Lutero e Calvino.

O Antropocentrismo substitui o Obscurantismo e o Teocentrismo. Há os Déspotas Esclarecidos, cujo exemplo temporão no Brasil foi o de D. Pedro II. Há uma espécie de euforia em torno da possibilidade de evolução exponencial, material e espiritual da civilização humana. Descartes é preceptor de um monarca, seguindo um antigo exemplo do Helenismo. O Direito, nesse cenário, tenta passar por uma reformulação que o descontamine do absolutismo que sempre o manteve preso às forças das elites. E quanto à Ética? Spinoza colocou seus pensamentos, na "Ética", em oposição a um dos maiores e resistentes poderes: o Cristianismo. E a Ética e o Direito? Ou pelo menos, e o Direito?

Rousseau e os Contratualistas acreditavam na boa e pura índole do homem, e advogavam um contrato social que tivesse por prerrogativa o pretenso Direito Natural, incorporando o entendimento clássico de que de fato pudesse haver uma Ética universal humanista. Hobbes, ao contrario, insistia num Estado forte, que coibisse desvios e paixões. Marx, bem depois, diz que a Burguesia é a expressão sofisticada da exploração, como que se quem "vencera" fora a tese de Hobbes, e que portanto a Ética burguesa não é exatamente aquela Ética, de Platão e Aristóteles – retomando o início do texto -, e sim uma concepção de valores ideologicamente deformados (e deformadores) pela alienação do modo de produção e de pensar capitalistas.

Deixamos de falar, pelo menos nominadamente, do projeto de mundo do Iluminismo.

O Iluminismo, na esteira do Renascimento e da Revolução Científica, prometeu uma prosperidade e um avanço de civilização que em parte não ocorreu. A Revolução Industrial demonstrou o poder da técnica, é verdade. O Positivismo instituiu como corolário o Primado ideológico da técnica. O Capitalismo se aperfeiçoa, mas parece entender o homem como máquina, afirmação que se entende ao se olhar o modus operandi do Taylorismo e do Fordismo. Os Direitos Romano e Anglo-Saxão, basicamente, mudaram para justificar os novos impérios (Inglês, Francês, Alemão e Norte-Americano) e suas relações com as novas colônias. O mundo cresceu, internacionalizou-se, mas a Ética permaneceu distante daquele ideal de relação política com a noção do Belo, porque a vida, o drama da maior parte da população humana continuou muito distante desse paradigma. O Iluminismo fracassou como um humanismo, como diriam os existencialistas. Os humanismos, ou os "ismos", enfim, fracassaram.

Atualmente, então, qual a relação entre Ética e Direito?

No nosso Estado Brasileiro, que cresceu de cima para baixo e mantém essa verticalidade de autoridade e de poder, há uma considerável distância entre esses dois valores. Na nossa sociedade de consumo, da alienação do trabalho e da vida, dessa pós-modernidade coisificada, pasteurizada e massificada, Ética é o que o mercado dita, como tal, na realização técnica do processo de produção e manutenção de sua infra e superestrutura de alienação sistêmica, e que nós, muitas vezes inadvertidamente, reproduzimos na forma dos piores estereótipos, paradigmas e clichês.

O Direito, em suma, nunca conseguiu se desvincular do poder, a não ser como filosofia pura. Pelo contrário, o Direito em si legitima, como conjunto de técnicas jurídicas de administração de normas positivas, o status quo sócio-político-econômico e cultural vigente em dada sociedade. E como o poder (ou poderes) tem apenas uma roupagem (oficialmente vestida pelo aparelho ideológico do Estado) de Democracia, veja, apenas a aparência, porque essencialmente - como disseram Freire, Frei Betto, Milton Santos, Boff e Bobbio -, a Globalização é uma nova e aperfeiçoada colonização, não tem ele um compromisso medular com aquela Ética filosófica e humana superior, mas tão-somente, como já foi falado, com a ética pós-moderna dos mercados globais.

Naquilo que remanescer de ético e ao mesmo tempo interessante à lógica de funcionamento dos mercados, o Direito terá cumprido sua função de promover a equidade; terá sido ético. Caso contrário, estará a norma positiva a promover e oficializar a incongruência e "desigualdade". Às vezes, subliminarmente, e mesmo que sutilmente e ideologicamente camuflada de equanimidade e como uma necessidade do Estado (vide o Stanilismo e o Nazismo). Isso acontece, evidentemente, não por culpa do Direito em si, nem tanto dos seus diversos ideólogos e operadores. Isso decorre, a bem da verdade, como consequência desse modelo secular de civilização e forma de "pensar" de mundo que ainda não conseguiu alçar o homem e o sentimento humano à condição de medida universal de todas as coisas.

Lucas Tenório