Entre a espiral e o quadrado - In Continente Multicultural
Um quadro de Lula Cardoso Ayres na moldura de obras de
Gilberto Freyre e Osman Lins
Por Ana Luiza Andrade
O quadro de Lula Cardoso Ayres “Sinhazinha na janela” contrasta o redondo e o retilíneo, evidenciando respectivamente o massapê associado ao feminino e a geometria seca de formas masculinas de que fala Gilberto Freyre em seu famoso “Nordeste” (1937): a “doçura das terras de massapê contrasta com o ranger de raiva terrível das areias dos sertões”. Exuberante, Freyre preenche a secura do discurso euclidiano ao falar de seu repúdio às curvas, como divisor sexual de uma paisagem patriarcal. As linhas mestras em perfil no quadro, contrastando raso e fundo, dentro e fora, estático e dinâmico, redondo e geométrico, colam figuras à paisagem como no discurso plástico de Freyre: tal leque fechado, de seu perfil desdobram-se outros como em Perfil de Euclydes e Outros Perfis (1944).
Lula Cardoso Ayres contrasta dois planos: o da casa-grande e o da usina com a igrejinha no meio. E seu âmbito se circunscreve à sinhazinha em primeiro plano, evocando o modelo sagrado de dona de casa, com seu vestido azul de santa, o inalcançável de mulheres como em “Quadrinho de Estória” de Guimarães Rosa, o que se estende às mulheres de trabalhadores, também dependentes de um sistema patriarcal. Aparentemente, um modelo de nobreza de casa-grande. Porém, quando se observa com cuidado a cadeira de balanço, percebe-se nela um quê de barroquizante espiralado, mas sugerindo uma tendência geometrizante. De fato, esta espiral, interrogação deitada, sinal de desequilíbrio, parece assinalar para as figuras femininas longilíneas de Lula, inconformadas ao padrão da prole patriarcal, o “gordo” do massapê como exigiria a tradição fertilizante da cana ao se espalhar. Ao invés, as figuras femininas emagrecem com a decadência das casas e a concomitante verticalização dos sobrados, nos inícios da urbanização, figuras cada vez mais fantasmagóricas, de tempos idos. Assim a mulher neste quadro, e em muitos outros do autor, parece residual de uma presença antiga, denotando o declínio social da casa-grande. Não à toa Lula foi o ilustrador (principalmente nos desenhos das sinhazinhas e dos sobrados) de “Sobrados e Mucambos”, de Freyre.
Mas a leitura desta cena da senhora na cadeira de balanço é mais sugestiva quando se pensa o declínio social da casa-grande. O conto “Cadeira de Balanço” (“Os Gestos”,1966), de Osman Lins, ao trazer, coincidentemente, a cena de uma mulher sentada em uma cadeira de balanço, atualiza e complementa a outra. Enfoca o problema social dentro da casa, quando as funções masculinas e femininas entram em conflito com o declínio do poder patriarcal e a ascensão do trabalho assalariado. Aqui os pensamentos de uma grávida oscilam entre dentro e fora, a dificuldade dos afazeres domésticos e o prazer do descanso.
Aí um narrador-pintor também penetra o interior da casa onde está a mulher sentada, desvirginando seu íntimo ao romper o seu segredo de antiga guardiã. Fantasmático, o corpo se cola ao fino contorno da cadeira, desvanescente, residual. Sua infertilidade é substituída pelas montanhas férteis, redondas com a proliferação das canas a engordar as terras de massapê, cuja disseminação, pelo bueiro fálico da usina, centro de produção, coincide com o ponto alto da paisagem vista da janela: “o gordo, o farto, o satisfeito, o mole das formas; seus macios como que de carne; o pegajento da terra; a doçura do massapê” (Freyre, Perfil de Euclydes). Independente da prole do senhor, a usina, sendo agora o centro da casa antiga, desloca a mulher para o sobrado urbano. Embora a oscilação de seus pensamentos possa indicar o contrário, esta figura, substituída, será fantasma do passado que se dobra ao presente capitalista, sem que haja sensível alteração no quadro, do campo (em Lula) para a cidade (em Osman).
Gilberto Freyre parece intermediar o (des)equilíbrio entre o engenho e a usina: as duas linhas correspondentes à da espiral (da cadeira) e à geometrizante (da janela, do bueiro), respectivas tendências patriarcais discursivas de uma paisagem nordestina, ressurgem nas correspondentes linhas mestras das cidades, as gordas e as magras (Sobrados e Mucambos). No entanto, essas linhas mestras, residuais de uma estética barroca, e ao mesmo tempo “enquadrada” na economia industrial de cortes, ressurgem no quadrado mágico do romance Avalovara (1973), convergindo, na plasticidade dos escritos de Osman Lins, para o hibridismo singular entre um construtivismo abstracionista mondrianesco, representativo de uma estética colonizadora européia, e a linha espiralada, barroca e latina, divergente da primeira quanto a seus pontos de fuga. Mais especificamente, esta fuga em espiral é tributária de uma tradição pernambucana que se pode perceber no plástico ensaísmo gilbertiano em seus reflexos fundacionais.
De fato, a montagem do romance de Osman Lins confunde-se à do próprio objeto livro como antiga casa do romance arquitetado num quadrado, ao expor publicamente o que lhe era original: a privacidade. Intrínseca aos valores do antigo ato de leitura, assim como aos da casa, desauratiza-se, perde-se para o espaço consumidor. A imprensa dispensa até o corta-papel, a faca com que se desvirginava o caminho nas páginas, assinalada por Mallarmé como instrumento necessário a um antigo ato de leitura. Automatizados, visíveis no xadrez do Avalovara os fragmentos se opõem à nova matriz industrializada e prostituída do best-seller: pedem cumplicidade no ato de leitura. Mais ainda, a espiral, forma residual de cadeira de balanço ou de portão de ferro forjado, contrastada ao quadrado geometrizante e racional, sem começo ou fim, pode ascender ou descender... Inconclusiva, ela é diferente da repetição do balanço da cadeira: busca um desequilíbrio que acrescenta mais uma volta à história, questiona suas certezas. Como retorno diferido, ela se reencarna novamente na forma de serpentes, cabelos, teresas e tranças de Tunga, este outro artista pernambucano contemporâneo e de renome dentro e fora do Brasil. Retomadas de Osman Lins, as montagens de Tunga (Barroco de Lírios,1997) também se baseiam em quadrados e espirais, como observa Marta Martins Lindote. E tudo sem mencionar Cícero Dias... Mas isso já é uma outra história. (Leia mais na edição 58 - outubro de 2005 - da Revista Continente Multicultural.)
Ana Luiza Andrade é professora da Universidade Federal de Santa Catarina, pesquisadora e autora de Osman Lins: Criação e Crítica, entre outros.
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Copyright © 2003 - Todos os direitos reservados
Textos e imagens são de inteira responsabilidade da
Companhia Editora de Pernambuco
http://www.continentemulticultural.com.br/
Gilberto Freyre e Osman Lins
Por Ana Luiza Andrade
O quadro de Lula Cardoso Ayres “Sinhazinha na janela” contrasta o redondo e o retilíneo, evidenciando respectivamente o massapê associado ao feminino e a geometria seca de formas masculinas de que fala Gilberto Freyre em seu famoso “Nordeste” (1937): a “doçura das terras de massapê contrasta com o ranger de raiva terrível das areias dos sertões”. Exuberante, Freyre preenche a secura do discurso euclidiano ao falar de seu repúdio às curvas, como divisor sexual de uma paisagem patriarcal. As linhas mestras em perfil no quadro, contrastando raso e fundo, dentro e fora, estático e dinâmico, redondo e geométrico, colam figuras à paisagem como no discurso plástico de Freyre: tal leque fechado, de seu perfil desdobram-se outros como em Perfil de Euclydes e Outros Perfis (1944).
Lula Cardoso Ayres contrasta dois planos: o da casa-grande e o da usina com a igrejinha no meio. E seu âmbito se circunscreve à sinhazinha em primeiro plano, evocando o modelo sagrado de dona de casa, com seu vestido azul de santa, o inalcançável de mulheres como em “Quadrinho de Estória” de Guimarães Rosa, o que se estende às mulheres de trabalhadores, também dependentes de um sistema patriarcal. Aparentemente, um modelo de nobreza de casa-grande. Porém, quando se observa com cuidado a cadeira de balanço, percebe-se nela um quê de barroquizante espiralado, mas sugerindo uma tendência geometrizante. De fato, esta espiral, interrogação deitada, sinal de desequilíbrio, parece assinalar para as figuras femininas longilíneas de Lula, inconformadas ao padrão da prole patriarcal, o “gordo” do massapê como exigiria a tradição fertilizante da cana ao se espalhar. Ao invés, as figuras femininas emagrecem com a decadência das casas e a concomitante verticalização dos sobrados, nos inícios da urbanização, figuras cada vez mais fantasmagóricas, de tempos idos. Assim a mulher neste quadro, e em muitos outros do autor, parece residual de uma presença antiga, denotando o declínio social da casa-grande. Não à toa Lula foi o ilustrador (principalmente nos desenhos das sinhazinhas e dos sobrados) de “Sobrados e Mucambos”, de Freyre.
Mas a leitura desta cena da senhora na cadeira de balanço é mais sugestiva quando se pensa o declínio social da casa-grande. O conto “Cadeira de Balanço” (“Os Gestos”,1966), de Osman Lins, ao trazer, coincidentemente, a cena de uma mulher sentada em uma cadeira de balanço, atualiza e complementa a outra. Enfoca o problema social dentro da casa, quando as funções masculinas e femininas entram em conflito com o declínio do poder patriarcal e a ascensão do trabalho assalariado. Aqui os pensamentos de uma grávida oscilam entre dentro e fora, a dificuldade dos afazeres domésticos e o prazer do descanso.
Aí um narrador-pintor também penetra o interior da casa onde está a mulher sentada, desvirginando seu íntimo ao romper o seu segredo de antiga guardiã. Fantasmático, o corpo se cola ao fino contorno da cadeira, desvanescente, residual. Sua infertilidade é substituída pelas montanhas férteis, redondas com a proliferação das canas a engordar as terras de massapê, cuja disseminação, pelo bueiro fálico da usina, centro de produção, coincide com o ponto alto da paisagem vista da janela: “o gordo, o farto, o satisfeito, o mole das formas; seus macios como que de carne; o pegajento da terra; a doçura do massapê” (Freyre, Perfil de Euclydes). Independente da prole do senhor, a usina, sendo agora o centro da casa antiga, desloca a mulher para o sobrado urbano. Embora a oscilação de seus pensamentos possa indicar o contrário, esta figura, substituída, será fantasma do passado que se dobra ao presente capitalista, sem que haja sensível alteração no quadro, do campo (em Lula) para a cidade (em Osman).
Gilberto Freyre parece intermediar o (des)equilíbrio entre o engenho e a usina: as duas linhas correspondentes à da espiral (da cadeira) e à geometrizante (da janela, do bueiro), respectivas tendências patriarcais discursivas de uma paisagem nordestina, ressurgem nas correspondentes linhas mestras das cidades, as gordas e as magras (Sobrados e Mucambos). No entanto, essas linhas mestras, residuais de uma estética barroca, e ao mesmo tempo “enquadrada” na economia industrial de cortes, ressurgem no quadrado mágico do romance Avalovara (1973), convergindo, na plasticidade dos escritos de Osman Lins, para o hibridismo singular entre um construtivismo abstracionista mondrianesco, representativo de uma estética colonizadora européia, e a linha espiralada, barroca e latina, divergente da primeira quanto a seus pontos de fuga. Mais especificamente, esta fuga em espiral é tributária de uma tradição pernambucana que se pode perceber no plástico ensaísmo gilbertiano em seus reflexos fundacionais.
De fato, a montagem do romance de Osman Lins confunde-se à do próprio objeto livro como antiga casa do romance arquitetado num quadrado, ao expor publicamente o que lhe era original: a privacidade. Intrínseca aos valores do antigo ato de leitura, assim como aos da casa, desauratiza-se, perde-se para o espaço consumidor. A imprensa dispensa até o corta-papel, a faca com que se desvirginava o caminho nas páginas, assinalada por Mallarmé como instrumento necessário a um antigo ato de leitura. Automatizados, visíveis no xadrez do Avalovara os fragmentos se opõem à nova matriz industrializada e prostituída do best-seller: pedem cumplicidade no ato de leitura. Mais ainda, a espiral, forma residual de cadeira de balanço ou de portão de ferro forjado, contrastada ao quadrado geometrizante e racional, sem começo ou fim, pode ascender ou descender... Inconclusiva, ela é diferente da repetição do balanço da cadeira: busca um desequilíbrio que acrescenta mais uma volta à história, questiona suas certezas. Como retorno diferido, ela se reencarna novamente na forma de serpentes, cabelos, teresas e tranças de Tunga, este outro artista pernambucano contemporâneo e de renome dentro e fora do Brasil. Retomadas de Osman Lins, as montagens de Tunga (Barroco de Lírios,1997) também se baseiam em quadrados e espirais, como observa Marta Martins Lindote. E tudo sem mencionar Cícero Dias... Mas isso já é uma outra história. (Leia mais na edição 58 - outubro de 2005 - da Revista Continente Multicultural.)
Ana Luiza Andrade é professora da Universidade Federal de Santa Catarina, pesquisadora e autora de Osman Lins: Criação e Crítica, entre outros.
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