O amálgama cultural de Antonio Nóbrega
Multiartista, o pernambucano Antonio Nóbrega vai além da arte fronteiriça entre erudito e popular, mergulha na cultura do povo, envereda pela pesquisa e já quer conceber instrumentos musicais e uma linguagem brasileira de dança (D.O. Leitura / Agosto 2001)
www.francebrazil.com/
Foto de Fernanda Levy
http://www.fernandalevy.com/parisiando/anodobrasilnafranca/
Descampada, vasta e absoluta a praça surgiu à frente do músico, compositor, cantor, ator e dançarino pernambucano Antonio Nóbrega como um verdadeiro palco de prazeres. Das 11 horas da manhã às dez da noite, ali se exibem em apresentações seqüenciais ou concomitantes, um pouco de tudo aquilo que costuma fascinar esse artista de 48 anos, espécie rara entre nós, há três décadas dedicada a fazer a ponte entre o clássico e o popular sem jamais confundir-se com o folclore ou ser cooptado pelo eruditismo.
Contadores de histórias, encantadores de serpentes, percussionistas, dançarinos e tocadores de rebabe mostravam uma vez mais, e como o fazem todos os dias e há séculos, sua arte visceral nessa praça em pleno coração de Marrakesh, no Marrocos. Revelam-na ali para o mundo, como bem o sabem, já que o público habitual do local provém mesmo dos quatro cantos do globo.
Estávamos em março de 2001 e Nóbrega passou por ali a passeio, mas não por acaso. Dias antes, apresentara-se em Paris, de onde seguiu para Rabat, capital marroquina, onde novamente mostrou seu espetáculo Sol a Pino um misto de exibição e aula, no qual desvenda a procedência de sua arte popular.
Chegou à praça de Marrakesh e encantou-se com um velho que relatava contos idílicos à audiência. Sentiu-se como se escutasse alguém contando As Mil e Uma Noites.
No fundo, porém, seu interesse profissional - foi até ali aprofundar pesquisa que há tempos desenvolve sobre a rabeca. Uma rabeca pode ser ouvida no interior de Pernambuco, embora cada vez menos freqüentemente. De longe, há quem a julgue prima da viola - o que, de fato, é. Mas ela é mesmo muito mais parecida com o violino, de quem é quase filha. Por excelência, é cria da cultura popular nordestina. De onde vêm todos esses instrumentos? Dos árabes. Ou melhor, do rebabe, o instrumento que Nóbrega foi apreciar no Marrocos semanas depois, dedilhava com o carinho e o vigor de um mestre na Praça Tiradentes, centro do Rio, onde lotou casa por dez apresentações em dois fins de semana de abril, fazendo a festa da garotada e alegria de crianças bem crescidas que foram ver seu espetáculo O Marco do Meio-Dia, no Teatro Carlos Gomes.
Trata-se de um bom exemplo da arte que Nóbrega faz hoje. Em O Marco o mote é os cinco séculos do Brasil. Um espelho e um radar servem de ponto de partida para percorrer os marcos históricos do país. Porém, o rol é daqueles que construíram a resistência popular no período: O Quilombo dos Palmares e o Arraial de Canudos, evocados pelo instrumento refratário, essencial à orientação em tempos antigos e terrenos inóspitos.
Mestre do folguedo
Já o radar serve para trazer o público para perto das forças vitais da cultura ao longo do tempo e se exprime por meio de três grandes artistas do povo brasileiro através de"
Pois Recife - e Pernambuco - é onde sempre está o artista. "Meu espírito está sempre por lá", diz pai de dois adolescentes e chefe de uma família integralmente dedicada à arte que, há nove anos, desenvolve na Vila Madalena, em São Paulo, um projeto teatral, musical e de danças populares sugestivamente batizado de "brincante", termo corriqueiro na terra natal de Nóbrega para dizer algo semelhante a folgazão.
Viagens freqüentes, de um ponto a outro do planeta ou de um domínio a outro da arte, ele traça há três décadas em trajetória quase missionária pela cultura popular brasileira - e particularmente, a pernambucana. Sempre em busca do essencial. Ao encontrá-lo, como bom artista inova na criação - e nem sempre sobre o palco. Também em outros campos menos cotados da arte.
Vejamos, por exemplo, o que Nóbrega quer fazer com seus estudos sobre o rebabe - ou a rabeca. Ele explica que o rebabe é tocado sobre a perna. Não e de madeira, mas sim de couro, material que aloja a caixa de ressonância. São pastores nômades, afinal, seus originais inventores, gente que não dispunha em seu hábitat de árvores e madeiras e menos ainda, davam alguma bola para isso.
Seu som foi alimentado pela arte dos berberes, em uma rica cultura popular, tão farta quanto a nordestina.
Do rebabe árabe, nasceu a viola, no norte da Europa, criou a arte da luteria, aquela que constrói. Mas foi pela passagem do rebabe pela península ibérica, onde não existiram violas, é que se chegou á rabeca enfim aportada no Brasil. Ela chega aqui tocada no ombro com pequena ajuda do queixo, o que acabava sendo um apoio inteligente para o canto.
Por assim disser, o rebarbe ressurge no Nordeste brasileiro com formas variadas de rabeca. A cada hora assume ume feição diversa, em um festival de estilos de confecção. Desde que o violino virou o que é hoje, sua madeira é o abato, no tampo superior, e o ácaro, no inferior. Nossa versão popular é rebelde, tem som mais áspero e em geral é feita de mulungu, a árvore que esta ao alcance do sertanejo nordestino. É ela, porém, que toca o mais agudo da sensibilidade de um ouvinte quando se escuta a produção sertaneja mais típica.
Em uma sala do teatro Brincante o lutier Saulo Dantas Barreto, formado na escola Internacional de Luteria em Carmona, na Itália, desenvolve um projeto ousado, valendo-se da diversidade de madeiras encontradas no Brasil e concebido com Nóbrega. Ele parte da barra harmônica da rabeca, que propaga o som pelo tampo, enquanto a de baixo estende a vibração pôr todo o corpo de madeira. A idéia é obter uma madeira cônica, que interligue os tampos de cima e de baixo, de modo que ambos vibrem em conjunto.São técnicas desconhecidas de rabequeiro popular nordestino, que pouco sabe do que se passa no instrumento. De modo que varia a maneira de toca-las no Nordeste, assim como o sotaque que emitem, bem como seu exemplares variam em relação ao rebabe dedilhado em Marrakesh. Nóbrega quer escutar a distancia entre os sotaques.
Pesquisa, assim, o que chama hoje um possível violino brasileiro, um instrumento intermediário, que poderá ser construído, pôr exemplo, de jenipapo ou praúba, todas elas mais porosas que as madeiras usadas para fabricar, pôr exemplo, um legítimo Stradivarius. Mas cuja construção mais rude resultaria em um som apenas ligeiramente mais áspero.
A busca de um possível violino brasileiro é empreitada que casa como luva com outra, para cuja criação Nóbrega pretende contribuir de modo- e que tem tudo a ver com seu perfil de artista empenhado na arte popular em seu relacionamento mais íntimo do que se parece com o erudito. Nóbrega quer ver criada uma linguagem brasileira de dança.
Sim, porque a dança no Brasil reflete no corpo e nas mentes as mesmas linhas divisórias entre o refinado e o popular, o culto e o inculto. A despeito da riqueza de nossas manifestações populares, elas estão longe de ser observadas em uma linguagem de dança.
Um exemplo? No Recife, sempre nele, mas presente no interior do Nordeste também, há até hoje um personagem popular, conhecido como o dançador de caboclinho. É alguém que puxa o cordão e descreve hábil coreografia para uma dança de origem indígena com bailado e coral de trinta a cinqüenta jovens de ambos os sexos. Um deles exerce a arte a 28 anos e se chama Paulinho. Nóbrega o acompanha desde de criança, de olho no universo de seus passos.
Paulinho desconhece dança. Jamais a estudou. Nóbrega, bailarino, formou-se em dança contemporânea e foi aluno de um dos ícones do ramo da Paulicéia, o alemão já falecido, Klauss Viana. Diz que a arte de Paulinho segue critérios intuitivos de movimento, mas sua vitalidade a leva a um alfabeto de passos pôr traz do qual há princípios universais e a lei geral do movimento. Enfim, aquilo que ele sabe por estudo, Paulinho atinge na pratica. E o pesquisador quer chegar à essência dessa arte para começar a criar a tal linguagem brasileira de dança.
Espetáculos - aulas
A despeito dos 23 anos de contato e estudo sobre a dança do caboclinho, Nóbrega diz que seu corpo ainda não assimilou tudo o que quer. Com o que persegue, propõe uma espécie de terceira via para a dança no Brasil, um código que permita de fato expressar seu país. Seriam os códigos disponíveis, extraídos de danças clássicas ou contemporânea de outras culturas, insuficiente para tal? Ele esta convencido de que sim. Pôr isso mesmo, ultimamente seus espetáculos são aulas.
Há muito que aprender. Mas o bailarino brasileiro é uma espécie de ser refratário a tudo o que não faz parte do mundo em que vive, restrito e pouco aberto ao mundo das idéias ou do intelecto inclusive. Alias, tal comportamento não é exatamente uma característica tupiniquim. Deriva daí a dificuldade de Nóbrega em contar com a participação do povo da dança a sua proposta de linguagem.
Ele porem parece movido pela força da tenacidade na vida, desde que em 1963, primogênito entre os quatro filhos do médico João Barros de Almeida, um inveterado seresteiro pernambucano, começou a estudar violino no Recife e, mais tarde, em João Pessoa. Logo formou em casa um conjuntinho de violino, violão e piano com os irmãos. O repertório era composto de hits da época, como Noites de Moscou. Alguém se lembra? Pois incluía ainda música popular brasileira e sucessos da falecida Jovem Guarda. Como convinha, alias, a um jovem típico da classe media alta pernambucana.Logo Nóbrega saltou para orquestras de câmara e cordas. Universitário do primeiro ano de Direito da Universidade Federal de Pernambuco, fez ainda um ano de Letras, como bom apaixonado pôr Literatura. Mas foi por meio de um colega que sua vida tomaria rumo. Antônio José Madureira também estudava na Escola de Belas - Artes. Seu instrumento porem, não era o violino - era o violão. Ao mesmo tempo, cursava aulas de Estética e História da arte na Federal, onde um dos seus mestres era o dramaturgo e escritor paraibano Ariano Suassuna, sobre quem o quase adolescente Nóbrega tinha referencia pôr Ter assistido ao filme Auto da Compadecida, dirigido por Jonas Mello e música do por Capiba, com figurinos de Francisco Brennand.Pois, empenhados em divulgar a arte popular da rabeca, Suassuna e Brennand acabaram cruzando com Nóbrega, que se exibia em seu conjuntinho doméstico. Madureira aproximou os dois. A idéia do escritor e compositor pernambucano era encontrar alguém que tocasse violino e fosse capaz de sair fora do erudito. E, a partir daí, mergulhar, por exemplo, nos sons da rabeca. Queria criar um grupo musical com referencias do povo brasileiro, de canto ou instrumental, que transitasse no terreno fronteiriço com a produção erudita.
Nasceu assim a Orquestra Armorial, ou Quinteto Armorial. "Éramos eruditos enquanto técnica de criação e populares porque podíamos ser reconhecidos pelo publico mais popular do sertão", recorda-se Nóbrega.
Com Madureira na viola, Edilson no violão, Barbosa no marimbau (uma espécie de berimbau), Fernando Farias na flauta (o último flautista que integrou o grupo), e Nóbrega no violino ou na rabeca, o Armorial durou uma década. Os dois colegas ainda se revezavam na percussão de tambores e ganzás, quando fosse o caso.
Eram os anos 70, durante os quais quatro discos foram gravados pelo Armorial, revelando ao público externo a música rural nordestina. Uma música que tinha seu perfil de algum modo parente daquele do choro, na medida em que dentro de si continha a maneira sofisticada de ser executada, mas sua sonoridade mantinha-se popular. A diferença entre ambos está na geografia: o primeiro, une a harmonia européia ao violino, violão, flauta e cavaquinho no cenário urbano. O som do Armorial era eminentemente rural, extraído da rabeca, da viola, do violão e do marimbau.
Arte sem limites
Já a diferença em relação a um outro conjunto, contemporâneo do Armorial e igualmente pernambucano, o Violado, estava na proposta propriamente dita. Este se propunha erudito, o de Nóbrega, popular. O primeiro cantava, o segundo só tocava.
Assim, mergulhando no universo sonoro da música popular nordestina, o Armorial vai se urbanizando e se depara com o frevo e a marcação dos blocos, sem deixar de encontrar uma bachiana pelo caminho que o artista em um cavaquinho. No último dos discos, o conjunto foi mais longe cantou. No caso, entrou um poema de Suassuna, cujo título é sugestivo: Martelo Agalopado.
Pelo menos de seis das peças interpretadas pelo Armorial, Nóbrega estava presente na composição. No restante do repertório, Capiba e Suassuna eram freqüentes assinaturas. O registro fonográfico, feito pela falecida gravadora de Marcus Pereira, se rendeu dinheiro, Nóbrega já não sabe o quanto.
Sabe, sim, que a experiência o revelou uma pessoa dominada pelo espírito da música, mas que não vê limites para sua arte. Foi logo dali se fascinar pelo teatro, onde concebeu inclusive Tonheta, um personagem que o perseguiu por muitas peças, ao longo de 16 anos e a partir de 1980. É um herói que o próprio Nóbrega já descreveu como próximo de Carlitos, Dom Quixote e Pedro Malasartes, expressão da alma nordestina.
Não é preciso dizer que a empreitada acabou revelando mais que o ator, um cantor e um dançarino na carreira de Nóbrega que, com Madureira, formou, logo em seguida, ao fim do Armorial, o Quarteto Romançal. O novo conjunto foi uma espécie de etapa seguinte formulada a partir da gestação de Suassuna. Sucedeu ao Armorial na medida em que, com uma década de vida do pioneiro, era como se a fase de criação de uma linguagem erudita baseada na cultura popular do Nordeste já tivesse sido realizada e ultrapassada.
Assim, expandido limites e fronteiras, Nóbrega mergulhou cada vez mais fundo no popular. Não deixou se incorporar o mamulengo, um teatro de bonecos que hoje quase não tem seguidores. Mesmo quando o artista deixou Recife, há um par de décadas, só cinco craques dessa arte sobreviviam na capital pernambucana. Pois os espetáculos do artista, que desde 1996 enveredou por carreira-solo, não prescindiram desse tipo de exibição.
Lúcido sobre todas as coisas, seus espetáculos encantam várias gerações e freqüentemente contagiam a platéia, do mesmo modo que o carnaval pernambucano arrebata o artista. Desviando do folclore como o diabo da cruz, Nóbrega se devota a uma cultura viva e constantemente recuperada e recriada. Em fevereiro, foi beber dessa cultura onde se apresentou para 10 mil pessoas entre batuques, maracatus e integrantes de Cavalo-Marinho, uma espécie de bumba-meu-boi pernambucano. Embriagou-se de alegria e vitalidade, sentindo os influxos do frevo no bloco, bem ao lado do caixeiro - o tocador de caixa Adelson, de 60 anos de idade. O que tem o caixeiro que arrebata o artista: "É o vai-não-vai, a freada, a parada... tudo excelente."Para o novo milênio, Nóbrega, revigorado por todas as experiências recém-vividas do Recife a Marrakesh, tem pelo menos três projetos. No primeiro, vai realizar uma exposição de instrumentos, da rabeca ao violino e a viola. Uma mostra multidisciplinar, promete.
No segundo, quer dar mais um passo na direção da tal linguagem brasileira de dança, por meio de duetos que pretende exibir com a esposa, bailarina sobre todas as coisas. Vai se chamar "Com Quem É Que Eu Danço Hoje", um painel de todas as danças populares brasileiras.
Já o terceiro projeto é o de uma "cantoria de romances", um show com seis músicos. No meio disso tudo, ainda pretende consolidar uma jovem orquestra de percussão com doze a quinze componentes e gravar um disco de canções para crianças.
Não é pouca coisa. O piano, por si, fala do ecletismo desse artista que ama a essência do popular. Vale a pena acompanhá-lo.
http://www.antonionobrega.com.br/indexbr.htm
www.francebrazil.com/
Foto de Fernanda Levy
http://www.fernandalevy.com/parisiando/anodobrasilnafranca/
Descampada, vasta e absoluta a praça surgiu à frente do músico, compositor, cantor, ator e dançarino pernambucano Antonio Nóbrega como um verdadeiro palco de prazeres. Das 11 horas da manhã às dez da noite, ali se exibem em apresentações seqüenciais ou concomitantes, um pouco de tudo aquilo que costuma fascinar esse artista de 48 anos, espécie rara entre nós, há três décadas dedicada a fazer a ponte entre o clássico e o popular sem jamais confundir-se com o folclore ou ser cooptado pelo eruditismo.
Contadores de histórias, encantadores de serpentes, percussionistas, dançarinos e tocadores de rebabe mostravam uma vez mais, e como o fazem todos os dias e há séculos, sua arte visceral nessa praça em pleno coração de Marrakesh, no Marrocos. Revelam-na ali para o mundo, como bem o sabem, já que o público habitual do local provém mesmo dos quatro cantos do globo.
Estávamos em março de 2001 e Nóbrega passou por ali a passeio, mas não por acaso. Dias antes, apresentara-se em Paris, de onde seguiu para Rabat, capital marroquina, onde novamente mostrou seu espetáculo Sol a Pino um misto de exibição e aula, no qual desvenda a procedência de sua arte popular.
Chegou à praça de Marrakesh e encantou-se com um velho que relatava contos idílicos à audiência. Sentiu-se como se escutasse alguém contando As Mil e Uma Noites.
No fundo, porém, seu interesse profissional - foi até ali aprofundar pesquisa que há tempos desenvolve sobre a rabeca. Uma rabeca pode ser ouvida no interior de Pernambuco, embora cada vez menos freqüentemente. De longe, há quem a julgue prima da viola - o que, de fato, é. Mas ela é mesmo muito mais parecida com o violino, de quem é quase filha. Por excelência, é cria da cultura popular nordestina. De onde vêm todos esses instrumentos? Dos árabes. Ou melhor, do rebabe, o instrumento que Nóbrega foi apreciar no Marrocos semanas depois, dedilhava com o carinho e o vigor de um mestre na Praça Tiradentes, centro do Rio, onde lotou casa por dez apresentações em dois fins de semana de abril, fazendo a festa da garotada e alegria de crianças bem crescidas que foram ver seu espetáculo O Marco do Meio-Dia, no Teatro Carlos Gomes.
Trata-se de um bom exemplo da arte que Nóbrega faz hoje. Em O Marco o mote é os cinco séculos do Brasil. Um espelho e um radar servem de ponto de partida para percorrer os marcos históricos do país. Porém, o rol é daqueles que construíram a resistência popular no período: O Quilombo dos Palmares e o Arraial de Canudos, evocados pelo instrumento refratário, essencial à orientação em tempos antigos e terrenos inóspitos.
Mestre do folguedo
Já o radar serve para trazer o público para perto das forças vitais da cultura ao longo do tempo e se exprime por meio de três grandes artistas do povo brasileiro através de"
Pois Recife - e Pernambuco - é onde sempre está o artista. "Meu espírito está sempre por lá", diz pai de dois adolescentes e chefe de uma família integralmente dedicada à arte que, há nove anos, desenvolve na Vila Madalena, em São Paulo, um projeto teatral, musical e de danças populares sugestivamente batizado de "brincante", termo corriqueiro na terra natal de Nóbrega para dizer algo semelhante a folgazão.
Viagens freqüentes, de um ponto a outro do planeta ou de um domínio a outro da arte, ele traça há três décadas em trajetória quase missionária pela cultura popular brasileira - e particularmente, a pernambucana. Sempre em busca do essencial. Ao encontrá-lo, como bom artista inova na criação - e nem sempre sobre o palco. Também em outros campos menos cotados da arte.
Vejamos, por exemplo, o que Nóbrega quer fazer com seus estudos sobre o rebabe - ou a rabeca. Ele explica que o rebabe é tocado sobre a perna. Não e de madeira, mas sim de couro, material que aloja a caixa de ressonância. São pastores nômades, afinal, seus originais inventores, gente que não dispunha em seu hábitat de árvores e madeiras e menos ainda, davam alguma bola para isso.
Seu som foi alimentado pela arte dos berberes, em uma rica cultura popular, tão farta quanto a nordestina.
Do rebabe árabe, nasceu a viola, no norte da Europa, criou a arte da luteria, aquela que constrói. Mas foi pela passagem do rebabe pela península ibérica, onde não existiram violas, é que se chegou á rabeca enfim aportada no Brasil. Ela chega aqui tocada no ombro com pequena ajuda do queixo, o que acabava sendo um apoio inteligente para o canto.
Por assim disser, o rebarbe ressurge no Nordeste brasileiro com formas variadas de rabeca. A cada hora assume ume feição diversa, em um festival de estilos de confecção. Desde que o violino virou o que é hoje, sua madeira é o abato, no tampo superior, e o ácaro, no inferior. Nossa versão popular é rebelde, tem som mais áspero e em geral é feita de mulungu, a árvore que esta ao alcance do sertanejo nordestino. É ela, porém, que toca o mais agudo da sensibilidade de um ouvinte quando se escuta a produção sertaneja mais típica.
Em uma sala do teatro Brincante o lutier Saulo Dantas Barreto, formado na escola Internacional de Luteria em Carmona, na Itália, desenvolve um projeto ousado, valendo-se da diversidade de madeiras encontradas no Brasil e concebido com Nóbrega. Ele parte da barra harmônica da rabeca, que propaga o som pelo tampo, enquanto a de baixo estende a vibração pôr todo o corpo de madeira. A idéia é obter uma madeira cônica, que interligue os tampos de cima e de baixo, de modo que ambos vibrem em conjunto.São técnicas desconhecidas de rabequeiro popular nordestino, que pouco sabe do que se passa no instrumento. De modo que varia a maneira de toca-las no Nordeste, assim como o sotaque que emitem, bem como seu exemplares variam em relação ao rebabe dedilhado em Marrakesh. Nóbrega quer escutar a distancia entre os sotaques.
Pesquisa, assim, o que chama hoje um possível violino brasileiro, um instrumento intermediário, que poderá ser construído, pôr exemplo, de jenipapo ou praúba, todas elas mais porosas que as madeiras usadas para fabricar, pôr exemplo, um legítimo Stradivarius. Mas cuja construção mais rude resultaria em um som apenas ligeiramente mais áspero.
A busca de um possível violino brasileiro é empreitada que casa como luva com outra, para cuja criação Nóbrega pretende contribuir de modo- e que tem tudo a ver com seu perfil de artista empenhado na arte popular em seu relacionamento mais íntimo do que se parece com o erudito. Nóbrega quer ver criada uma linguagem brasileira de dança.
Sim, porque a dança no Brasil reflete no corpo e nas mentes as mesmas linhas divisórias entre o refinado e o popular, o culto e o inculto. A despeito da riqueza de nossas manifestações populares, elas estão longe de ser observadas em uma linguagem de dança.
Um exemplo? No Recife, sempre nele, mas presente no interior do Nordeste também, há até hoje um personagem popular, conhecido como o dançador de caboclinho. É alguém que puxa o cordão e descreve hábil coreografia para uma dança de origem indígena com bailado e coral de trinta a cinqüenta jovens de ambos os sexos. Um deles exerce a arte a 28 anos e se chama Paulinho. Nóbrega o acompanha desde de criança, de olho no universo de seus passos.
Paulinho desconhece dança. Jamais a estudou. Nóbrega, bailarino, formou-se em dança contemporânea e foi aluno de um dos ícones do ramo da Paulicéia, o alemão já falecido, Klauss Viana. Diz que a arte de Paulinho segue critérios intuitivos de movimento, mas sua vitalidade a leva a um alfabeto de passos pôr traz do qual há princípios universais e a lei geral do movimento. Enfim, aquilo que ele sabe por estudo, Paulinho atinge na pratica. E o pesquisador quer chegar à essência dessa arte para começar a criar a tal linguagem brasileira de dança.
Espetáculos - aulas
A despeito dos 23 anos de contato e estudo sobre a dança do caboclinho, Nóbrega diz que seu corpo ainda não assimilou tudo o que quer. Com o que persegue, propõe uma espécie de terceira via para a dança no Brasil, um código que permita de fato expressar seu país. Seriam os códigos disponíveis, extraídos de danças clássicas ou contemporânea de outras culturas, insuficiente para tal? Ele esta convencido de que sim. Pôr isso mesmo, ultimamente seus espetáculos são aulas.
Há muito que aprender. Mas o bailarino brasileiro é uma espécie de ser refratário a tudo o que não faz parte do mundo em que vive, restrito e pouco aberto ao mundo das idéias ou do intelecto inclusive. Alias, tal comportamento não é exatamente uma característica tupiniquim. Deriva daí a dificuldade de Nóbrega em contar com a participação do povo da dança a sua proposta de linguagem.
Ele porem parece movido pela força da tenacidade na vida, desde que em 1963, primogênito entre os quatro filhos do médico João Barros de Almeida, um inveterado seresteiro pernambucano, começou a estudar violino no Recife e, mais tarde, em João Pessoa. Logo formou em casa um conjuntinho de violino, violão e piano com os irmãos. O repertório era composto de hits da época, como Noites de Moscou. Alguém se lembra? Pois incluía ainda música popular brasileira e sucessos da falecida Jovem Guarda. Como convinha, alias, a um jovem típico da classe media alta pernambucana.Logo Nóbrega saltou para orquestras de câmara e cordas. Universitário do primeiro ano de Direito da Universidade Federal de Pernambuco, fez ainda um ano de Letras, como bom apaixonado pôr Literatura. Mas foi por meio de um colega que sua vida tomaria rumo. Antônio José Madureira também estudava na Escola de Belas - Artes. Seu instrumento porem, não era o violino - era o violão. Ao mesmo tempo, cursava aulas de Estética e História da arte na Federal, onde um dos seus mestres era o dramaturgo e escritor paraibano Ariano Suassuna, sobre quem o quase adolescente Nóbrega tinha referencia pôr Ter assistido ao filme Auto da Compadecida, dirigido por Jonas Mello e música do por Capiba, com figurinos de Francisco Brennand.Pois, empenhados em divulgar a arte popular da rabeca, Suassuna e Brennand acabaram cruzando com Nóbrega, que se exibia em seu conjuntinho doméstico. Madureira aproximou os dois. A idéia do escritor e compositor pernambucano era encontrar alguém que tocasse violino e fosse capaz de sair fora do erudito. E, a partir daí, mergulhar, por exemplo, nos sons da rabeca. Queria criar um grupo musical com referencias do povo brasileiro, de canto ou instrumental, que transitasse no terreno fronteiriço com a produção erudita.
Nasceu assim a Orquestra Armorial, ou Quinteto Armorial. "Éramos eruditos enquanto técnica de criação e populares porque podíamos ser reconhecidos pelo publico mais popular do sertão", recorda-se Nóbrega.
Com Madureira na viola, Edilson no violão, Barbosa no marimbau (uma espécie de berimbau), Fernando Farias na flauta (o último flautista que integrou o grupo), e Nóbrega no violino ou na rabeca, o Armorial durou uma década. Os dois colegas ainda se revezavam na percussão de tambores e ganzás, quando fosse o caso.
Eram os anos 70, durante os quais quatro discos foram gravados pelo Armorial, revelando ao público externo a música rural nordestina. Uma música que tinha seu perfil de algum modo parente daquele do choro, na medida em que dentro de si continha a maneira sofisticada de ser executada, mas sua sonoridade mantinha-se popular. A diferença entre ambos está na geografia: o primeiro, une a harmonia européia ao violino, violão, flauta e cavaquinho no cenário urbano. O som do Armorial era eminentemente rural, extraído da rabeca, da viola, do violão e do marimbau.
Arte sem limites
Já a diferença em relação a um outro conjunto, contemporâneo do Armorial e igualmente pernambucano, o Violado, estava na proposta propriamente dita. Este se propunha erudito, o de Nóbrega, popular. O primeiro cantava, o segundo só tocava.
Assim, mergulhando no universo sonoro da música popular nordestina, o Armorial vai se urbanizando e se depara com o frevo e a marcação dos blocos, sem deixar de encontrar uma bachiana pelo caminho que o artista em um cavaquinho. No último dos discos, o conjunto foi mais longe cantou. No caso, entrou um poema de Suassuna, cujo título é sugestivo: Martelo Agalopado.
Pelo menos de seis das peças interpretadas pelo Armorial, Nóbrega estava presente na composição. No restante do repertório, Capiba e Suassuna eram freqüentes assinaturas. O registro fonográfico, feito pela falecida gravadora de Marcus Pereira, se rendeu dinheiro, Nóbrega já não sabe o quanto.
Sabe, sim, que a experiência o revelou uma pessoa dominada pelo espírito da música, mas que não vê limites para sua arte. Foi logo dali se fascinar pelo teatro, onde concebeu inclusive Tonheta, um personagem que o perseguiu por muitas peças, ao longo de 16 anos e a partir de 1980. É um herói que o próprio Nóbrega já descreveu como próximo de Carlitos, Dom Quixote e Pedro Malasartes, expressão da alma nordestina.
Não é preciso dizer que a empreitada acabou revelando mais que o ator, um cantor e um dançarino na carreira de Nóbrega que, com Madureira, formou, logo em seguida, ao fim do Armorial, o Quarteto Romançal. O novo conjunto foi uma espécie de etapa seguinte formulada a partir da gestação de Suassuna. Sucedeu ao Armorial na medida em que, com uma década de vida do pioneiro, era como se a fase de criação de uma linguagem erudita baseada na cultura popular do Nordeste já tivesse sido realizada e ultrapassada.
Assim, expandido limites e fronteiras, Nóbrega mergulhou cada vez mais fundo no popular. Não deixou se incorporar o mamulengo, um teatro de bonecos que hoje quase não tem seguidores. Mesmo quando o artista deixou Recife, há um par de décadas, só cinco craques dessa arte sobreviviam na capital pernambucana. Pois os espetáculos do artista, que desde 1996 enveredou por carreira-solo, não prescindiram desse tipo de exibição.
Lúcido sobre todas as coisas, seus espetáculos encantam várias gerações e freqüentemente contagiam a platéia, do mesmo modo que o carnaval pernambucano arrebata o artista. Desviando do folclore como o diabo da cruz, Nóbrega se devota a uma cultura viva e constantemente recuperada e recriada. Em fevereiro, foi beber dessa cultura onde se apresentou para 10 mil pessoas entre batuques, maracatus e integrantes de Cavalo-Marinho, uma espécie de bumba-meu-boi pernambucano. Embriagou-se de alegria e vitalidade, sentindo os influxos do frevo no bloco, bem ao lado do caixeiro - o tocador de caixa Adelson, de 60 anos de idade. O que tem o caixeiro que arrebata o artista: "É o vai-não-vai, a freada, a parada... tudo excelente."Para o novo milênio, Nóbrega, revigorado por todas as experiências recém-vividas do Recife a Marrakesh, tem pelo menos três projetos. No primeiro, vai realizar uma exposição de instrumentos, da rabeca ao violino e a viola. Uma mostra multidisciplinar, promete.
No segundo, quer dar mais um passo na direção da tal linguagem brasileira de dança, por meio de duetos que pretende exibir com a esposa, bailarina sobre todas as coisas. Vai se chamar "Com Quem É Que Eu Danço Hoje", um painel de todas as danças populares brasileiras.
Já o terceiro projeto é o de uma "cantoria de romances", um show com seis músicos. No meio disso tudo, ainda pretende consolidar uma jovem orquestra de percussão com doze a quinze componentes e gravar um disco de canções para crianças.
Não é pouca coisa. O piano, por si, fala do ecletismo desse artista que ama a essência do popular. Vale a pena acompanhá-lo.
http://www.antonionobrega.com.br/indexbr.htm
2 Comments:
Caro Lucas,
A foto do artista Antônio Nobrega que você colocou no seu blog é de autoria da jornalista Fernanda Levy e não do site FranceBrazil.
Essa foto esta disponivel no blog da jornalista sobre o Ano do Brasil na França: http://www.fernandalevy.com/parisiando/anodobrasilnafranca/
Obrigado.
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