25.4.06

Cartografia poética de Pernambuco, por Hildeberto Barbosa Filho

Pernambuco, terra da poesia: um painel da arte poética pernambucana dos séculos XVI ao XXI impõe-se, desde já, como um dos mais ousados projetos de organização da cultura, em especial da cultura literária no segmento da poesia, realizado, entre tantos outros, pelo Instituto Maximiano Campos, a cargo de Antônio Campos e Cláudia Cordeiro, ora publicado em convênio com a editora Escrituras, de São Paulo. O subtítulo me parece esclarecedor: não se trata evidentemente de uma antologia, e sim, de uma coletânea, de uma reunião, de um mapeamento, de um panorama, enfim, de um “painel” como se registra.

Numa antologia os textos constituem, por assim dizer, a finalidade primeira e germinal da seleção, submetida, a seu turno, pela regência de rigoroso critério de excelência estética. O que importa, aqui, é sobretudo o peso da representatividade literária, independentemente dos fatores temáticos, genéricos, cronológicos, geracionais, cognitivos e artísticos que possam dar sustentabilidade ao labor de sua elaboração. A bem dizer, para lembrarmos a figura emblemática de Ezra Pound, a antologia se prefigura como uma espécie de paideuma onde a singularidade estética representa a norma fundamental. A antologia, portanto, possui um caráter exclusivo, em que pesem suas diversas modalidades e a relevância específica de cada uma delas, conforme sinaliza T. S. Eliot em texto fundante, Que é poesia menor?

Numa coletânea, ao contrário, os textos não se perfilam como fim, mas como meios que se podem prestar a diversos objetivos em função da perspectiva do projeto. Seja didática, seja histórica, seja meramente documental, a coletânea é inclusiva e firma no registro de dados e na presença deste ou daquele autor o seu compromisso informativo, a sua razão ontológica. Seu campo de cobertura descortina-se, assim, bem mais elástico, bem mais flexível, podendo, por isto mesmo, tocar em variados ângulos do fenômeno cultural e literário.

Pernambuco, terra da poesia enquadra-se perfeitamente dentro desta classificação. A epígrafe, com os versos cabralinos, como que antecipa a tessitura solidária do todo, se erguendo toldo e tenda onde caibam todos se entretendendo na configuração do canto sinfônico e plural da poesia e da terra. Por outro lado, o título, embora aparentemente não possa sugerir, encaixa-se coesa e coerentemente com esta idéia. “Pernambuco, terra da poesia” não deve ser lido no que pode remeter para a noção de exclusivismo poético ou de ufanismo literário, mas, principalmente, pela clave da força poética que contamina, em todos as geografias (litoral, agreste, sertão, caatinga, mata seca e mata úmida, como diria Marcus Accioly) a alma da terra e do povo. O próprio Manuel Bandeira, um dos ícones que integra esta reunião, afirma que “a poesia está em tudo”. Se está em tudo, está em todos, e está em todos como experiência seminal da vida. Está nos maiores, nos medianos, nos menores, com toda sua surpreendente maleabilidade de caminhos e de dicções. É preciso, portanto, ler o “terra da poesia” na sua acepção descritiva, inclusiva, e não naquele sentido cartográfico e seletivo ou como tola exclusividade soberba. Não existe, quero crer, sentido axiológico no título com suas múltiplas implicações catafóricas.

Atento a este apelo epistemológico, o espectro poético procura ser o mais vasto e o mais diferenciado possível, pois vai do século XVI, com a figura histórica e pioneira de Bento Teixeira Pinto, aliás presente em grafia original num breve recorte de seu épico, passando pelas vozes barrocas, árcades, românticas, parnasianas, simbolistas, modernistas até as vanguardas mais emergentes e os investimentos pós-modernos. O vigor da forma fixa se confronta com as linhagens alternativas de uma poesia experimental ao mesmo tempo em que a tradição oral e popular cerra fileira ao lado da modernidade e erudição de uma alta percussão lírica. O critério diacrônico, que se distende do mais antigo ao mais atual, costura, noutro sentido, a pluralidade de expressão verbal e espelha – diria quase didaticamente – todas as vertentes poéticas que se cristalizaram em Pernambuco. Se o leitor pode deparar os nomes mais conhecidos, pois que sua práxis poética transcende os limites provincianos (Manuel Bandeira, Joaquim Cardozo, Mauro Mota, Carlos Pena Filho), encontra figuras esquecidas e quase desconhecidas (Rita Joana de Souza e Targélia Barreto de Menezes, filha de Tobias Barreto) assim como autores ainda em pleno processo de criação (Mário Hélio, Michelin Verunschk, Delmo Montenegro e Pietro Wagner).

O exemplo notável da chamada “Geração 65” marca presença decisiva nesta obra, ratificando, em certo sentido, a capacidade de reinvenção da melhor tradição poética de Pernambuco, com nomes de reputação consolidada, a exemplo de César Leal, Alberto da Cunha Melo, (observe-se o antológico poema “Dual”), Jaci Bezerra, Marcus Accioly, Ângelo Monteiro, Almir Castro Barros, José Carlos Targino, Marco Polo Guimarães, Janice Japiassu, Eugênia Menezes, Myriam Brindeiro, Tereza Tenório, Sebastião Vila Nova e tantos outros.

Como se vê, o objetivo do “painel” é rigorosamente documental. A obra, em suas linhas gerais, fornece uma visão das posturas estéticas, tanto no que concerne à sucessividade das gerações, com toda sua tipologia, quanto no que diz respeito às tonalidades do lirismo e suas implicações técnico-literárias, estilísticas e temático-ideológicas.

Utilizássemos o quadro proposto por Pedro Lyra, em Sincretismo: a poesia da geração 60, assim como seus paradigmas líricos, poderíamos estabelecer algumas curiosas co-relações de ordem analítica, exegética e apreciativa. Excluindo os que já se foram e que, de um modo ou de outro, acham-se relativamente contextualizados no âmbito da história literária, por exemplo, um Olegário Mariano, um Medeiros e Albuquerque, um Ascenço Ferreira, um Mauro Mota, um Deolindo Tavares, um Austro Costa, um Solano Trindade, um Audálio Alves, entre outros, diria que determinados poetas, sobretudo os que nascem nos anos 70/80, como Pietro Wagner, Delmo Montenegro e Antonio Marinho, transitam entre o emergente e o novo, tendo na rebeldia estética o foco central de motivação. Percebe-se, noutra latitude estética, a maturidade dominante em fase de plena confirmação naqueles que fazem a já referida “Geração 65”, assim como posso pensar num clássico como César Leal e num canônico como Waldemar Lopes, este, um artífice inigualável do soneto.

A linha discursiva predomina, sobremaneira com a herança lírica, sedimentada na temática amorosa, erótica, telúrica, existencial, cotidiana e metafísica, numa mostra polifônica que noticia, na unidade do sentimento poético, a diversidade de realizações. A velada sensualidade de uns sabe coexistir com a sensualidade palpável de outros assim como a nota filosófica e mítica de certas expressões não chegam a abafar a sintaxe lúdica e despachada que alguns poetas trilham sem preconceitos. Pensássemos numa caracterização de estilos, teríamos o que Erich Auerbach denomina de estilo mesclado, pois aparece de tudo um pouco: o grave, o leve, o formal, o popular, o erudito, o coloquial, o fragmentário, o alternativo etc. Outra nota forte reside na pesquisa metalingüística muito peculiar ao gosto de certas vozes modernas que, para além de contornar as virtualidades estésicas do real, transformam o poema em matéria de pura reflexão poética. O sopro épico e a vertente social e participante comparecem na linguagem de alguns autores, da mesma maneira que a excepcionalidade de um discurso verbovocovisual, comprometido em primeira instância com os artefatos do significante, também é contemplada nas páginas deste mosaico literário.

O fluxo cronológico faz convergir, portanto, para a vastidão do seu estuário, as diferenças dos seus afluentes estéticos. E com isto ganham a cultura e a literatura pernambucanas. Ganham principalmente os historiadores e os críticos literários que, na tarefa de pensarem sistematicamente sobre a produção literária de uma região e sobre obras e autores individuais, podem ter, neste “painel”, um ponto de partida referencial. Para o historiador há como que um sinal sistêmico a pré-anunciar uma possível ordem cronológica e, nesta ordem cronológica, a composição material de certas tendências, de certas características, de certas posições. A personalidade do inventor, do mestre e do diluidor, ainda para me valer das categorias de Pound, assim como dos ícones e dos epígonos, maiores e menores, medianos e modelares são perfeitamente relacionais, inclusivas, complementares dentro da organização histórica. E esta reunião, como já dei a atender, é muito mais de fundo histórico do que propriamente de natureza crítica. É obra de referência, enciclopédica, propedêutica.

Ao crítico literário será de extrema utilidade, pois nela se apresentam, com pequenas mostras – é verdade – as poéticas individuais, com seu registro estilístico particular, uma que outra eleição temática e, de certa maneira, algo da índole e da visão que permeiam a sensibilidade e a percepção poéticas. Dois poemas podem parecer muito pouco, mas não se deve esquecer que a marca do poeta, isto é, suas raízes ideativas, imagéticas e melódicas, não raro se inscreve nos limites de um só verso. Isto sem que se faça alusão aos tópicos mínimos, porém essenciais, dos verbetes relacionados, que funcionam como uma espécie de banco de dados indispensáveis ao pesquisador.

Mas não somente aos estudiosos da fenomenologia literária um trabalho deste porte pode interessar. Penso ainda nas instituições, bibliotecas, arquivos, acervos, enfim, em todo espaço de guarida pública do patrimônio cultural e da memória poética. Penso também no professor, no estudante, no leitor comum e no público em geral que freqüenta as páginas estéticas sem o compromisso mais urgente com as instâncias cognitivas e pedagógicas, porém com aquele sentimento de que a poesia é sobretudo experiência de mundo, emoção da vida, descoberta e revelação existenciais, epifania cotidiana. Ora, um panorama como este também pode servir como iniciação. Como rito de iniciação à poesia da terra e também iniciação ritual à terra da poesia.


Hildeberto Barbosa Filho é poeta e crítico literário paraibano. Mestre e Doutor em literatura brasileira pela UFPB e autor de diversas obras no campo do ensaio e da poesia.

8/3/2006 17:37:00 - http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=1106

(Texto publicado no Correio das Artes da Paraíba)

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Bela iniciativa.

sexta-feira, junho 30, 2006  

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