20.11.05

Geografia da Fome - Josué de Castro

"E foi assim que, pelas história dos homens e pelo roteiro do rio, fiquei sabendo que a fome não era um produto exclusivo dos mangues. Que os mangues apenas atraíram os homens famintos do Nordeste: os da zona da seca e os da zona da cana. Todos atraídos por esta terra de promissão, vindo se aninhar naquele ninho de lama, construído pelos dois e onde brota o maravilhoso ciclo do caranguejo. E quando cresci e saí pelo mundo afora, vendo outras paisagens, me apercebi com nova surpresa que o que eu pensava ser um fenômeno local, era um drama universal. Que a paisagem humana dos mangues se reproduzia no mundo inteiro. Que aqueles personagens da lama do Recife eram idênticos aos personagens de inúmeras outras áreas do mundo assolados pela fome. Que aquela lama humana do Recife, que eu conhecera na infância, continua sujando até hoje toda a paisagem de nosso planeta como negros borrões de miséria: as negras manchas demográficas da geografia da fome.1"

"O assunto deste livro é bastante delicado e perigoso. A tal ponto delicado e perigoso que se constituiu num dos tabus de nossa civilização. É realmente estranho, chocante o fato de que, num mundo como o nosso, caracterizado por tão excessiva capacidade de escrever-se e publicar-se, haja até hoje tão pouca coisa escrita acerca do fenômeno da fome, em suas diferentes manifestações.

Quais são os fatores ocultos desta verdadeira conspiração de silêncio em torno da fome? Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tomaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado publicamente.

Ao lado dos preconceitos morais, os interesses econômicos das minorias dominantes também trabalhavam para escamotear o fenômeno da fome do panorama espiritual moderno. É que ao imperialismo econômico e ao comércio internacional a serviço do mesmo interessava que a produção, a distribuição e o consumo dos produtos alimentares continuassem a se processar indefinidamente como fenômenos exclusivamente econômicos - dirigidos e estimulados dentro de seus interesses econômicos - e não como fatos intimamente ligados aos interesses da saúde pública.2"

http://www.josuedecastro.com.br/port/index.html
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1 A Descoberta da Fome
Prefácio ao livro Homens e Caranguejos, Lisboa, 1966.
2 Geografia da Fome
Prefácio da última edição, incluído no livro Fome, Um Tema Proibido.
Última Edição, Civilização Brasileira 2003. Organizadora: Anna Maria de Castro.