29.9.05

A morte do autor - Roland Bhartes

Apesar de o império do Autor ser ainda muito poderoso (a nova crítica muitas vezes não fez mais do que consolidá-lo), é sabido que há muito certos escritores vêm tentando abalá-lo. Na França, Mallarmé, sem dúvida o primeiro, viu e previu em toda a sua amplitude a necessidade de colocar a própria linguagem no lugar daquele que era até então considerado seu proprietário; para ele, como para nós, é a linguagem que fala, não o autor; escrever é, através de uma impessoalidade prévia - que não se deve em momento algum confundir com a objetividade castradora do romancista realista -, atingir esse ponto em que só a linguagem age, "performa", e não "eu": toda a poética de Mallarmé consiste em suprimir o autor em proveito da escritura (o que vem a ser, como se verá, devolver ao leitor o seu lugar). Valéry, todo embaraçado numa psicologia do Eu, muito edulcorou a teoria mallarmeana, mas, reportando-se, por gosto do classicismo, à retórica, não cessou de colocar em dúvida e em derrisão o Autor, acentuou a natureza linguística e como que "arriscada" da sua atividade, e reivindicou ao longo de todos os seus livros em prosa a favor da condição essencialmente verbal da literatura, em face da qual todo recurso à interioridade do escritor lhe parecia pura superstição. O próprio Proust, a despeito do caráter aparentemente psicológico do que chamamos suas análises, deu-se visivelmente ao trabalho de emaranhar inexoravelmente, por uma subutilização extrema, a relação do escritor com as suas personagens: ao fazer do narrador não aquele que viu ou que sentiu, nem mesmo aquele que escreve, mas aquele que vai escrever (o jovem do romance - mas, a propósito, que idade tem e quem é ele? - quer escrever, mas não pode, e o romance acaba quando finalmente a escritura se torna possível). (...)
Finalmente, fora da própria literatura (a bem dizer tais distinções se tornam superadas), a linguística acaba de fornecer para a destruição do Autor um instrumento analítico precioso, mostrando que a enunciação em seu todo é um processo vazio que funciona perfeitamente sem que seja necessário preenchê-lo com a pessoa dos interlocutores: linguisticamente, o autor nunca é mais do que aquele que escreve, assim como "eu" outra coisa não é senão aquele que diz "eu": a linguagem conhece um "sujeito", não uma "pessoa", e esse sujeito, vazio fora da enunciação que o define, basta para "sustentar" a linguagem, isto é, para exauri-la.

Roland Bhartes, o rumor da língua, Martins Fontes, 2004, pp. 59-60

1 Comments:

Anonymous Rhuan said...

Parabéns pelo blog. É de grande utilidade textos polêmicos como o texto acima, para a compreenção de nossas literaturas, além da mera palavra.

sexta-feira, setembro 25, 2009  

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