16.3.06

Invisibilidade e Visibilidade públicas – cara e coroa da mesma medalha capitalista?

Recentemente travamos contato, numa sua especificidade, com um conceito curioso, mesmo instigante, apresentado por um psicólogo da Universidade de São Paulo: o da "Invisibilidade Pública". Em sua pesquisa de campo "Garis – um estudo de psicologia sobre invisibilidade pública", em que trabalhou por 5 anos como um deles - e entre eles – no campus universitário, durante meio turno, de um a três dias por semana, e precisamente na tese de mestrado apresentada em novembro de 2002, conforme relatado sucintamente no Boletim n. 1146 da Agência USP de Notícias, o psicólogo Fernando Braga da Costa assinala como constatação central, pelo que depreendi, o seguinte: que aqueles trabalhadores não eram reconhecidos como pessoas no exercício da humilde função de coletores de lixo. Não se lhes davam um tratamento digno de identificação humana, destinando-lhes em vez disso o lugar referencial de coisas. Coisas como as ferramentas auxiliares com as quais exerciam suas tarefas - extrapolação minha. Daí a conclusão pela "Invisibilidade Pública". O pesquisador situa o fenômeno como resultado, basicamente, da distância e diferença existentes entre as pessoas decorrentes da estratificação em classes e da divisão social do trabalho colocadas à nossa sociedade.

Pois bem. Declarado o conceito, o fundamental de sua materialidade in casu e do seu alegado substrato cultural, gostaria de passar, a largo de originalidade, a algumas considerações axiológicas – de valor – no interesse de relacionar os fenômenos, lato sensu, da Invisibilidade, Visibilidade públicas e categorias que chamaria, grosso modo, de "afins" - essas últimas tratadas posteriormente -, como manifestações congêneres - com ênfase no caráter meio que residual de uma e eminentemente seminal de outra - mas "correlatas" -, do mesmo brutal processo de alienação a que nos achamos submetidos e reduzidos na apropriação do significado de ser (agente) social no seio do fazer em sociedade, ou no do fazer vivendo em sociedade de Modo de Produção Capitalista. Compreensão já clássica, talvez tornada mais interessante com o aporte de uma das suas mais sombrias manifestações: A In(Visi)bilidade, alertada pelo estudo. Vejamos os argumentos.

Sabemos que aquelas duas categorias estruturais, a estratificação e a divisão do trabalho, nos foram e continuam sendo impostas socialmente, imbricadas e precisamente como o são, pela tutela da sempre reciclada ideologia socio-econômica e cultural capitalista posta ao nosso Estado, e objetivamente por seu modo de produção de riquezas, que instrumentaliza essa ideologia na realização concreta de tais estruturas. Também sabemos que no sistema de idéias-símbolos capitalista, o lugar do valor-trabalho é o da clássica dupla mistificação: infra e superestrutural e intercomplementares. Os labores são identificados e ponderados mediante a posição relativa que lhes é atribuída diante dos status das várias produções materiais e imateriais, "compulsoriamente" catalogados. E mistificação superestrutural porque, como nos alertaram alguns investigadores marxistas, no sutil exercício de embasamento daquelas posições não se parte exatamente do ponto de vista do que poderíamos chamar de um real valor objetivo - utilitário, de referência para o trabalho humano.

Esse referencial, posto como hierarquicamente superior e mais geral do que o do referente – o próprio trabalho -, consideraria algo como as traduzíveis - entenda-se, dessa lógica (neomarxista), materializáveis – daí, grosso modo, o discutível Materialismo Histórico -, contribuição e importância intrínsecas de cada tarefa, e sinteticamente do realizar como um todo, para os necessários bem-estar, equilíbrio e saúde – prosperidade - do conjunto do organismo social no qual se desenvolve a produção. E ainda para a indispensável manutenção desse estado ideal para a sociedade no continuum da sua existência.

No nosso regime, inobstante, esse paradigma é preterido por um, desobjetivado – tampouco subjetivado, que diga respeito, fundamentalmente, à melhor e mais eficiente forma de reinstrumentalizar (porque são o eco da nossa consciência) e enriquecer - portanto aprofundar ainda mais - o indispensável mecanismo de alienação capitalista do, e no trabalho, que, como sabemos, é perpetrado por esse sistema ao apropriar-se dele, trabalho, e esvaziá-lo – violentá-lo -, tanto arbitrária e direta (através da sua "divisão" - exclusiva), como subliminarmente (veja-se a gama de pseudo-trabalhos que no mais das vezes internalizamos mentalmente como legítimos e necessários).

Essa especial e superior alienação (pois o mecanismo se dá numa gradação ascendente em objeto e complexidade) - esse condão ideológico - é exercida do e pelo lugar então dos mais estratégicos e privilegiados para o seu sucesso: o do nosso construto mental do que venha a significar, para nós mesmos e para os outros, o valor trabalho.

Constatamos - para minimamente exemplificar, porque não há espaço aqui para esmiuçar esse esvaziamento – , não só por isso, é certo, mas principalmente, a ocorrência de fenômenos absurdos como certas percepções simbólicas e objetivas que involuntariamente somos levados a ter como insignificantes acerca da dimensão de fazeres humano-sociais imprescindíveis, desde a pesquisa séria de ponta que se desenvolve pela cura do câncer ou de outras doenças em todo o mundo, à própria coleta higiênica e profilática de toneladas e toneladas de lixo das nossas principais metrópoles, fornecimento e manutenção de água e esgoto, fornecimento e manutenção de luz elétrica, para citar alguns, ante a histeria psíquico-comportamental quase que generalizada frente ao métier do(a) novo(a) dançarino(a) do novo remelexo da moda.

Controvérsias à parte (ou colocadas), até porque sabemos que o Socialismo Real mostrou-se na prática consideravelmente distante da utopia comunista – depois de vários muros de berlin abaixo; o Capitalismo relativamente bem sucedido no centro do sistema e resistente às suas antevistas crises orgânicas e cíclicas – muitos sombrios consensos de washington depois - (que os Embalos de Sábado à Noite continuam, o sonho não acabou. Que é a Psicanálise um robusto – e resistente - saco de pancadas. E que o mundo... vasto mundo, o complexo mundaréu em tempos de globalização predatória está sendo irônico conosco, para dizer o mínimo. Em que os países do Leste Europeu pleiteiam um lugar, e patente, na OTAN. A Rússia, China e outros camaradas se embriaguam com a "Coca Cola" do Décio Pgnatari, e os "donos do dinheiro" cogitam, mesmo que discretamente e de faz de conta, uma módica Terceira Via) -, fiz questão de situar aqueles, digamos, conceitos-chaves, espero que ao menos razoavelmente bem, porque gostaria de justapor à apresentação da Invisibilidade Pública, do ilustre psicólogo e do seu notável estudo, a também conhecida "Visibilidade Pública", mas precisamente da seguinte forma: como a co-face da Invisibilidade. Unha e carne do mesmo clone humano que a mente prodígio do bicho-papão-de-petróleo tenta re-humanizar à base de Gatorad, terapia genética e computação gráfica. Frankstein, de novo, e a Prometida? Quem seria quem! Tudo, enfim, por (causa do) dinheiro, ou pela falta dele?

Uma tal Visibilidade Pública também no contexto da alienação do homem e do trabalho no modo de produção e pensamento capitalistas, com todas as suas complicações e seus desdobramentos. Capitalismo de tantas "revoluções" tecnológicas, principalmente as da (des)informacão. Capitalismo da anti-lógica do consumo na realização espírito-material humana.

Isto posto, caberia agora, não nos furtando à curiosidade pueril e talvez por necessidade epistemológica, a antecipação da seguinte pergunta: seria a Visibilidade Pública tão desumanizante, tão reificante e vazia, a "coroa" da mesma medalha mercadológica em que a "cara", e sua irmã genética, a Invisibilidade, faz com que os garis do campus universitário do citado estudo e tantos outros garis e correlatos, mágica e supostamente se incorporem à natureza objetual das suas pás, vassouras, camburões, lixeiras e lixos? A resposta não é fácil, principalmente porque para chegarmos a ela penso que teríamos de situar, ilustrar e compreender melhor a Visibilidade e a Invisibilidade Públicas nos seus universos representativos característicos, e lançar mão de dois paradigmas correspondentes, alternativos e auxiliares, que eu chamaria, apenas por necessidade momentâneo-metodológica, e sem qualquer rigor terminológico, somente para substantivar as idéias, de: "Pessoalização Pública" e "Coletivização Individual". Falarei de todas essas in(visi)bilidades nas suas manifestações categóricas. Chamo de categórico aquilo que as define e as assinala na sua máxima essência e portanto máximo significado e possibilidades. Infelizmente não deixa de ser uma razoável simplificação, mas esse tratamento é necessário porque existem várias posições intermediárias ocupadas por cada uma daquelas in(visi)bilidades nos mais diversos contextos em que se apresentam, diante do espectro possível de intensidade. Provavelmente nos perderíamos em objetividade e rigor se intentássemos persegui-los, como também há combinações entre elas que ora podem acentuar o característico de uma, ora o de outra, ainda mais complicadoras de um esquadrinhamento, se é que tal existe, completo. As constatações e consequente classificação das não-categóricas, creio que por dedução e extensão, ficarão a critério de cada observador, certamente como uma espécie de corolário dos aspectos essenciais das modalidades de referência. Faz-se mister, portanto e finalmente, o entendimento e formatação claros dessas premissas, as categóricas. Senão, vejamos:

O Invisível público categórico é de fato o tipo como a mosca do cocô do cavalo do bandido, como diria um amigo meu, em termos do seu status social. Um nada, de posição tão insignificante mesmo que não consegue se enxergar ou se situar sequer no universo da Coletivização Individual. Destituído desde o berço, evidentemente, de bens e valores (entendam-se as expressões nas suas máximas abrangências) apropriativos que pudessem eventualmente mediar a sua matrícula regular nas escolas da Visibilidade Pública e eventual ascensão a esta. Esvaziado, por legado, de conteúdo histórico-pessoal que pudesse alçá-lo, também em tempo, à categoria da Pessoalização Pública. Uma pedra que eventualmente pode estar no nosso caminho, e que ao primeiro sinal visível, sem trocadilho, nos faz mudar de calçada para não toparmos com ela. O Invisível público percebe-se dessa forma, como atesta o estudo comentado, e reage como pode a essa realidade excludente, creio que da maneira como qualquer um de nós reagiria – criando seu próprio mundo, sua escala de valores marginal, contra-atacando com sua linguagem subposicionada. Não está dentro do propósito deste ensaio aprofundar essa análise, densa e difícil, que comportaria considerações específicas e separadas.

O Visível público - tratado aqui também o categórico - aquele que se situa no topo da escala representativa dos valores dominantes-desviantes. O "the best" na sua área de atividade e significação, o exemplo maior de sucesso e realização pessoais - pelo que só se enxerga como tal, Visível, e não cogita pertencer a outras categorias, como a da Individuação Pública e a Coletiva. Isso simplesmente porque, provavelmente, não tenha tido oportunidade de conhecê-las, e portanto credencial para envergá-las, ou se, em caso afirmativo, porque o auto-deslumbramento e o gozo alienados do consumo (entenda-se a expressão na sua máxima abrangência) foram/são tão representativos que o tornam/tornaram amnésico e insensível para tal. Comentado, festejado, reverenciado, amado e odiado. Respeitado. Fala-se bem ou mal dele, mas fala-se, como diz o clichê. Estaria portando na condição supra-humana, não mais-privilegiada, de coisa também. Transcenderia às avessas a sua dimensão pessoal, da mesma forma reduzido porque situado no panteão dos frágeis e virtuais objetos modelares da ética-estética capitalista-consumista. Frágeis porque formados, ou melhor, malformados, daquela perspectiva ideal intrinsecamente falha e lacunosa dos significados representativos das construções materiais e espirituais no seio do universo do pensamento dominante. Virtuais porque não têm existência externa representativa autônoma, e sim enquanto perduram os efeitos embotadores e restritivos na consciência que não tentou ou conseguiu guiar-se à condicão minimamente crítica de re-situá-lo na sua existência real e substantiva para a, ideal?, conveniência social. Troquemos em miúdos:

(continua em breve)

Lucas Tenório