15.3.06

Sobre um Suposto Direito de Mentir por Amor à Humanidade

Penso, salvo melhor juízo e no mister de uma modesta e rápida reflexão, que o entendimento da verdade, em si mesma e como valor puro ou como atributo da experiência relacional, deva mesmo passar pelo domínio da especulação e crítica filosóficas clássicas, como todas e quaisquer outras grandes categorias experienciais de indagação do pensamento humano, quero dizer, vincada, ou pelo traço do puramente ontológico – metafísico e estético, ou axio-ontológico – racional, empírico e moral.

Podemos nos valer introdutoriamente a esse respeito, e ilustrativamente, da colocação de uma curiosa e propedêutica questão prática: na natureza, entre os seres ininteligentes, e na natureza bruta, haveria espaço para a manifestação da inverdade ou mentira? Ou mais: seria lícito, discursivamente falando, ponderar juízo de valor na senda pura e simples do arranjo biológico-natural e dos fenômenos físico-químicos gerais?

O que quero questionar, mais especificamente, é: a camuflagem, o mimetismo e a dissimulação de algumas espécies animais, ao ludibriarem as respectivas presas, revelariam um ato, uma composição de mentira? As ilusões de óptica, por outro exemplo e de outra sorte, seriam uma inverdade promovida pela natureza inter-relacional objeto-sujeito, objeto-percepção? A natureza mente?

Bom, creio que nos deparamos, já neste momento, com a questão que virá a reger todo o restante dessa nossa discussão, qual seja: a suposta relação, ou não, entre Verdade x Direito (Moral); Verdade, isso mesmo (com maíscula), à frente, como categoria filosófica geral e transcendental, e Direito, em seguida e abaixo, como a Doutrina, também universal, do equilíbrio epistemológico das ações.

Como sabemos, retomando o parágrafo penúltino supra, os animais ininteligentes, no exercício do seu convívio em e entre espécies, não são albergados por qualquer direito, e sim pela regra da natureza de seus instintos, características biológicas e pulsões. Isso lhes confere a prerrogativa, ancestral e irrefutável, de acesso inexpugnável aos mecanismos atávicos de sobrevivência no processo darwinista da competição e da seleção natural, quase que da mesma forma que o Sol tem resguardado o seu “direito natural” de se pôr e de nascer a cada doze horas. Haveria nisso, sim, uma espécie de garantia, de “direito”, e “natural”, dos animais em “mentirem” para sobreviver. Veja-se, inclusive, que essa suposta mentira, como sabemos, é involuntária e irracional, algo parecido com o que acontece com um inválido psiquiátrico que não esteja no domínio das suas faculdades mentais e emocionais. Nada obstante e de outra sorte, o que diria o gafanhoto que foi devorado pelo louva-a-deus, este camuflado em folha? Estaria o gafanhoto de acordo com esse “jogo” da sobrevivência, até porque presumivelmente faria o mesmo nessa seara? E entre aqueles que não se camuflam, como o cervo, por exemplo, como se encararia a agressão dissimulada de seus predadores? A natureza compensaria-os por essa não-dissimulação com outras habilidades físicas e cognitivas? Seriam eles, por essa ausência de “mentira”, “superiores” aos demais? Essa “mentira”, enfim, poderia ser considerada algo como a arma dos mais espertos, ou na lógica da vida natural não haveria tal prevalência e sim um equilíbrio lógico, sábio e sublime entre vida e morte? Particularmente no mundo dos humanos, em que a cultura quebra essa lógica do natural, há espaço para esse equilíbrio, que viria a assimilar a mentira como algo que fizesse parte do processo de civilização, ou é ela um mal que deve ser extirpado incondicionalmente e de qualquer forma, ou, ainda, numa escala intermediária entre esses extremos, tolerada dentro de certos limites e em determinadas situações especiais? Penso, em suma, que a Civilização Humana sufragou esta última alternativa.

Enquanto pré-históricos, certamente dissimulávamos, como os outros animais, na luta pela sobrevivência. Mas isto não era mentira, como acabamos de observar do exposto. Restaria portanto a conclusão de que só faz sentido estabelecer o juízo de valor entre mentira e verdade no seio da Cultura, e que por conseguinte também seríamos obrigados a reconhecer que, pela própria natureza de Cultura - e em sendo os conceitos de verdade e mentira éticos e morais -, as diversas culturas, por mais esquisito que possa parecer, teriam percepções diferenciadas do que seria verdade e mentira.

Poderíamos evocar a metafísica de Platão, a maiêutica socrática, para estabelecermos um paradigma de Verdade, aparentado à idéia do Belo e da Justiça, elencados em “A República” ou em “O Banquete”, ou ainda valermo-nos do “Fédon”, que descreve um Sócrates que prefere beber cicuta a desobedecer ao Estado, coisa que romperia com toda a sua trajetória ao lado da sua verdade política, que era o caminho em direção ao Bem e ao Belo, modelo que asseverava que só os ignorantes praticavam o mal, ou, no nosso particular, mentiam.

Poderíamos também, nessa linha, lançar mão de Aristóteles, Descartes e Spinoza, mas é sobretudo nas filosofias morais, que incorporam o empírico e o prático ao racional, em que encontramos respostas mais contundentes para as questões de fundo que levam em conta a controvertida categoria filosófica verdade, e valendo-nos do magistério de alguns, como Rousseau, Kant, ou Karl Marx, entre outros.

Pelo Contrato Social, abrimos mão de nossa liberdade ilimitada para passarmos a obedecer a um código moral e jurídico que nos garantiria a propriedade, a vida, a liberdade segura, a família. Para isso, fez-se necessária a renúncia à mentira natural para a aceitação das “verdades coletivas”, cuja principal delas, já observada, esteve na base de todo o contrato: a renúncia às liberdades naturais plenas para a adoção de uma liberdade artificial, condicionada e segura, tutelada pelo Estado. A pergunta, com efeito, que cabe a essa altura é a seguinte: uma mentira coletiva, patrocinada pelo Estado, teria o poder de suplantar a verdade? O Estado porventura poderia mentir, e aí retomamos a idéia contida no título do texto, em prol do bem comum? Seria possível, nesse sistema, falar-se também de mentiras individuais sem que todo o edifício normativo desmorone? Ou é exatamente o contrário, nenhuma sociedade sobreviveria se adotássemos a verdade como princípio inarredável? Estamos, como se pode perceber, no campo do Relativismo Moral.

Kant afirmava, em outras palavras, que deveríamos fazer ao outro o que esperamos que esse outro nos faça; em sendo assim, nenhuma mentira encontraria guarida em nossas vidas, pois ao alçar esse princípio a uma espécie de lei universal - e em situação de normalidade psíquica, e como queremos sempre saber a verdade (mesmo na alienação, a matéria alienante pode ser considerada uma verdade segunda – falaremos disso mais adiante), diríamos sempre a verdade para obtê-la como contrapartida. Creio que de fato não haja, nessa linha de raciocínio, algo como a concepção de direito à verdade, porquanto a verdade estaria, assim também entendo, acima do próprio Direito, e seria ela mesma o principal fundamento dele. O relativismo moral, que nos diz que podemos despistar um amigo que nos convidara a um jantar em sua casa, dizendo que tivemos uma forte dor de dente, não nos puniria por ter o nosso amigo direito subjetivo à verdade; o que nos pune, ora concreta ora abstratamente, é a quebra do contrato que pode levar esse amigo a fazer o mesmo conosco, e daí a entrada num ciclo de inverdade que pode ter consequências graves. Há o ditado popular que diz: quem rouba um tostão rouba um milhão; no âmbito do relativismo moral, também não é tão importante a materialidade em si, mesmo que a maioria das pessoas pense o contrário. Não importa que seja uma pequena mentirinha, porque o que se quebra, como se disse, é uma rede de expectativas, até mesmo consigo mesmo, que rege todo um conjunto de valores de sociedade e de civilização.

Então, afinal de contas, o que estaria havendo com a sociedade humana? Perdemos, ou nunca tivemos, esses tais valores superiores de vida em coletividade, que são alicerçados na opção inquestionável pela verdade, e sendo a verdade, como Rousseau e Kant, entre outros, assinalaram, o fio condutor do Direito Universal? Infelizmente, creio que, se não os perdemos e se em parte os tivemos, algo de bastante esquisito está acontecendo a esse respeito na civilização contemporânea.

Marx denunciou a mais valia capitalista, e considerou-a “imoral”, não só por ser uma subtração indevida ao produto do trabalho, mas por calcar-se numa operação de mistificação ideológica, de engodo perpetrado contra o trabalhador. A mais valia foi a grande mentira que alavancou o progresso científico e tecnológico modernos, a grande causa de desigualdade, miséria, fome e pobreza, mas também um móvel, no Capitalismo, de desenvolvimento e riqueza. Novamente nos deparamos com o relativismo moral.

Sartre e outros existencialistas, e muitos outros pensadores de diversas outras correntes, diante do reconhecimento definitivo da derrocada do projeto de felicidade iluminista, depois de duas guerras mundiais e tantos outros percalços humanos, professaram um ceticismo quanto às potencialidades humanas em realizar a paz abrangente, e o bem-estar e desenvolvimento e igualdade sociais. Pergunta-se: será que isso não significou, ao longo do balanço contemporâneo da História, seja ela de base materialista ou não, o reconhecimento de que o ser humano sempre se desvencilhou da verdade? Será que ainda trazemos no nosso cérebro, bem gravadas, as lições de dissimulação registradas nas épocas pré-históricas, e que nos foram utilíssimas para a sobrevivência passada e portanto para nossa permanência atual no mundo? Será que a Filosofia do Direito, ou mesmo a Filosofia Moral, não dão conta do disciplinamento ou esquadrinhamento da vida competitiva, desigual, desumana e predatória que de certo modo e em certa medida levamos, e que nos lega hoje algo como a tão famigerada “selva de pedra”, em certo sentido muito parecida com a nossa selva ancestral?

Tenho colocado muitas interrogações ao longo deste texto, não à toa, mas porque considero essa investigação acerca do valor superior e filosófico da verdade, frente à mentira, algo, no mínimo, extremamente controverso e híbrido. Se por um lado vimos que a mentira, de uma forma ou de outra, mais cedo ou mais tarde, é o liame da debacle geral, por outro pergunta-se: quem não mentiria, a um particular ou mesmo ao Estado ou a qualquer instituição civil, para salvar um filho da morte? Ou um pai, irmão, amigo e até um animal de estimação, e sem sofrer, em muitos casos, qualquer objeção ou retaliação? Outra interrogação: será que da mesma forma que o “povo” de Jerusalém, de 2.000 anos atrás, crucificou o homem que disse ser o portador da Verdade, o “povo” que matou Sócrates, um homem que teve a coragem, segundo se registra, de dizer uma das mais intrigantes verdades da humanidade: não sei!, o “povo” que matou Giordano Bruno, enfim, será que nós, humanidade, simplesmente pelas razões cuja investigação demandaria um extenso trabalho à parte ainda não estamos preparados para um regime de convivência que coloque o compromisso com a verdade como valor “verdadeiramente” superior e inquestionável? Enfim, e aí a Psicologia Social nos ajudaria, é possível viver hoje em dia dizendo-se exclusivamente a verdade?

A propaganda atualmente nos engana de forma sistemática, com mecanismos aperfeiçoados de estimulação e sedução, principalmente psicanalíticos. Fazem-nos crer, por exemplo, que “a boa” (cerveja) nos leva ao prazer e ao bem-estar máximos, e o que é pior, essa propaganda não se restringe à esfera privada, mas, como é sabido, há muito vem sendo usada pelos Estados, às vezes nos seus mais escusos e sombrios propósitos. A Política tem-se transformado na arte do engano, infelizmente. Nesse cenário, aquela pequena mentirinha como a do pneu que furou a caminho do trabalho começa a parecer tola e pueril, diante de um quadro moral que abona a inverdade como estratégia de convencimento. O que fazer? Acho que a saída estaria na refundação da sociedade em novos valores éticos; fazê-la acreditar que de fato vale a pena falar a verdade, para que se crie uma aura e uma corrente de austeridade e honestidade ressignificantes, livrada a questão da dicotomia redutora em que geralmente se a vê. Para isso, e perdoem-me o lugar comum retórico, não podemos continuar pensando as pessoas como mercadorias, e as relações humanas como atividades e subprodutos do mercado; o Capitalismo precisa ser revisto, com a máxima urgência. Enquanto isso, sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade!? Creio que a escolha seja sua. Nossa.

Lucas Tenório

1 Comments:

Blogger Danilo Dornas said...

Caro blogueiro!

Muito bom seu texto. Eu gostaria de saber se vc teria como me enviar este texto do Kant "Sobre o suposto direito de mentir por amor a humanidade", em versão digital para meu e-mail: danilodornas@uol.com.br. Não consegui achá-lo na internet e gostaria de trabalhar com os alunos, uma vez que, sou professor de Filosofia. Desde já agradeço a atenção, um forte abraço. Danilo

E-mail: danilodornas@uol.com.br

segunda-feira, abril 03, 2006  

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