11.5.06

Nas Águas da Poesia – José de Sousa Dantas e Daudeth Bandeira

"Cruza mares diferentes
que têm ÁGUA cristalina
sob a luz que ilumina
os maiores continentes
vê as cores reluzentes
saindo da imensidão
fonte da constelação
tão poética quanto a lua
Todo poeta flutua
nas Asas da Inspiração."

José de Sousa Dantas


"No mundo da POESIA
o encanto desencanta,
a pintura acorda e fala,
a música desperta e canta.
A arte brota e ascende
e sutilmente transcende
o que há de mais profundo.
Já disse alguém dessa arte
É o único mundo à parte
que existe dentro do mundo."

Daudeth Bandeira


Cecília Meirelles, em verso conhecido, declamou:

"Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.(...)

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno e asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada."


José de Sousa Dantas e Daudeth Bandeira (Manuel Bandeira de Caldas) compuseram “Nas Águas da Poesia”. Livro denso, forte, vigoroso. Livro fragrante, luminoso e leve. Nas Águas da Poesia é acima de tudo um livro “torrencialmente” vivo. É de Daudeth Bandeira, na estrofe a seguir de um de seus versos, uma das exemplificações desse sincretismo temático-material, levado a termo com um apurado refino poético e hábil recurso de prosopopéia. Podemos ver em suas linhas uma construção, apoteótica e visceral, de uma das intensas aquarelas da vida:

(...)"Na tarde que o arco-íris
Laçava um lado do monte
A campina recebia
Um diadema na fronte
O trovão dá um gemido
Como quem tinha mexido
No organismo da terra
As matas se contorciam
E os caititus se escondiam
Nas axilas da serra."(...)

(BRASIL VIRGEM, p. 333)


José de Sousa Dantas, noutra bela estrofe de um dos seus, complementa-o em estilo, e arremata:

(...)"Uma noite de chuva no sertão
é motivo de grande alegria
canta o sapo, o caçote e canta a jia
mãe da lua, e a coruja no oitão
o campônio se enche de emoção
quando vê o inverno encarreando
abre a porta da frente e vai olhando
e com a família ele canta seu bendito
Quando ouço o trovão no infinito
imagino ser Deus que está gritando."(...)

(Quando ouço o trovão no infinito imagino ser DEUS que está gritando, p. 186)


O Trovão e um Grito Nordestino!

O grito dos poetas paraibanos, ecoante nos versos do seu livro, remete-nos ao Brasil, principalmente ao Nordeste e às suas terras, águas e coisas. Gentes, bichos, plantas, sentimentos, beleza e poesia. Leva-nos às reflexões do viver, fazer e sonhar. Do querer e poder. Da felicidade, do sofrimento, e da conhecida e inabalável fé que acompanha o nordestino:

(...)"O barreiro tá seco esturricado
não tem ÁGUA no açude e na barragem
só tem nuvem cinzenta de estiagem
todo eito do campo está pelado
não existe alimento para o gado
o cinzeiro no espaço faz cortina
foram embora meus galos de campina
e os que ficam não estão cantarolando
Vejo o corpo da terra se queimando
na fogueira da seca nordestina."

"Falta rama no pé de juazeiro
não tem pasto na roça e no baixio
na vazante do açude e nem do rio
não tem sombra de angico e de pereiro
já morreram mofumbo e marmeleiro
é preciso a intercessão divina
para a CHUVA molhar toda campina
ninguém sabe, só Deus quem sabe quando!
Vejo o corpo da terra se queimando
na fogueira da seca nordestina."(...)

(José de Sousa Dantas - Vejo o corpo da terra se queimando na fogueira da seca nordestina, p. 184)


Mas...

(...)"Uma rã rapando a cuia,
o carão soltando um grito,
mamãe cantando um bendito,
e eu dizendo, Aleluia!!!
numa janela de embuia,
o vento dando empurrão
e aparecendo um clarão
no ventre da nuvem escura.
Sinto o cheiro da fartura
recendendo no sertão."(...)

(...)"O rosto do tabaréu,
com rugas entrincheiradas,
olhando as pontas douradas
do nevoeiro no céu,
em ver aquele mundéu
de nuvens em comunhão,
disse com bela expressão,
a colheita está segura!
Sinto o cheiro da fartura
recendendo no sertão."(...)

(Daudeth Bandeira – TEM FARTURA NO SERTÃO, p. 170)

(...)"Cheiro de terra molhada,
de rama nova e de flores,
fruta de vários sabores,
pinha, cajá, manga espada,
cheiro de leite e coalhada,
manteiga, queijo, cascão,
mocotó, peixe e pirão,
melão, maxixe e verdura.
Sinto o cheiro da fartura
inebriando o sertão."(...)

(José de Sousa Dantas – Sinto o cheiro da fartura inebriando o sertão, p. 169)


Sousa Dantas fala do carro de boi farto...

"Era tudo carregado
no carro de boi da gente,
corda, marreta e corrente,
enxada, foice e machado,
chocalho, arame farpado,
porta, janela, pilão,
cavaco, lenha, algodão,
arroz, melancia, fava,...
Meu carro de boi cantava
nas quebradas do sertão."(...)

(Meu CARRO DE BOI cantava nas quebradas do sertão, p. 176)


Do contentamento e beleza chegantes

(...)"Satisfeito com o inverno
o campônio se anima,
vê a mudança no clima,
como quem trocou de terno,
agradece ao Pai Eterno,
na hora de se benzer,
e depois se recolher
com a sua camponesa.
O sertão mostra beleza,
quando começa a chover."(...)

(O sertão mostra beleza, quando começa a chover, p. 172)

(...)"Quando chega a invernada,
aparece borboleta,
vermelha, amarela e preta,
branca, cinzenta e rajada;
seriemas na lombada,
tatu e camaleão,
calango enfeitando o chão,
camuflado na pastagem.
Quanto é bonita a paisagem
quando chove no sertão."(...)

(Quanto é bonita a paisagem quando chove no sertão, p. 165)


O cantador Ivanildo Vilanova bradou em verso o Nordeste

"Pelo vaqueiro que vaga
Por Pinto e sua viola
Por Zumbi, o Quilombola
Conselheiro e sua saga
Pelo baião de Gonzaga
E a luta de Virgolino
O barro de Vitalino
Pelo menino de engenho
Por isso tudo é que tenho
(Orgulho de ser nordestino)"


O compositor e intérprete Lenine decantou Pernambuco

"Eu sou Mateus e Bastião do Boi Bumbá
Sou o boneco do Mestre Vitalino
Dançando uma ciranda em Itamaracá
Eu sou um verso de Carlos Pena Filho
Num frevo de Capiba
Ao som da orquestra armorial
Sou Capibaribe
Num livro de João Cabral
Sou mamulengo de São Bento do Una
Vindo no baque solto de Maracatu
Eu sou um auto de Ariano Suassuna
No meio da Feira de Caruaru"


O genial Patativa do Assaré tinha o seu Ceará

"No rompê de tua orora,
Meu sertão do Ciará
Quando escuto as voz sonora
Do sadoso sabiá,
Do canaro e do campina,
Sinto das graça divina
O seu imenso pudê,
E com munta razão vejo,
Que a gente sê sertanejo
É um dos maió prazê."


O poeta de Pombal, em concordância, faz a sua louvação

(...)"POMBAL, meu berço querido,
que nasci e fui criado,
me sinto emocionado,
feliz e envaidecido,
é meu lugar preferido,
terra de meus ancestrais,
onde residem meus pais,
meus estimados parentes,
e onde são residentes
os meus amigos leais."(...)

(...)"POMBAL imortalizado
através dos grandes nomes,
do gênio Leandro Gomes,
do doutor Celso Furtado,
Arruda Câmara, citado
até no exterior;
Rui Carneiro, um lutador
pela nossa Paraíba,
é natural que se exiba
sua gente de valor."(...)

(ANIVERSÁRIO de 142 anos de POMBAL em 21/07/2004, p. 351)


Pontua Daudeth Bandeira

(...)"Paraíba dos Tupis
A nação dos Potiguaras
Espinharas, Tabajaras
E valentes Cariris
Surpreendeu o país
Com bravura e com vigor
Com sentimento e amor
Parabéns grande Heroína
Paraíba masculina
Mulher macho sim senhor."(...)

(MULHER MACHO, p. 344)


Ao que José de Sousa Dantas rebate

(...)"Eu usava um matulão
resistente para a luta,
andava dentro da gruta,
na maior disposição,
se aparecia um rasgão,
na roupa, em qualquer altura,
mamãe fazia a costura,
completando com remendo.
Eu me criei foi comendo
farinha com rapadura."(...)

(...)"Saía de manhãzinha,
pra trabalhar numa broca,
com espingarda de soca,
e um bisaco de farinha,
com rapadura pretinha,
que se fazia a mistura,
e a cabaça na cintura,
com água pra ir bebendo.
Eu me criei foi comendo
farinha com rapadura."(...)

(José de Sousa Dantas – Eu me criei foi comendo farinha com rapadura, p. 155)


Para finalizar com "a gota serena"

(...)"Plenamente brasileiro,
nordestino, cordelista,
vate, poeta e artista,
juramentado engenheiro,
destemido, mensageiro,
dinâmico, pesquisador,
apaixonado escritor,
serei isso até morrer.
Eu tenho orgulho de ser
nordestino, sim senhor."

(Eu tenho orgulho de ser nordestino, sim senhor, p. 368)


Do Grito ao Manifesto na Poesia das Águas

Daudeth Bandeira e José de Sousa Dantas também cantam, na especificidade do tema que dá o título ao livro, a pureza, imanência e sacralidade das Águas. Sua maternidade, seu encanto e grandiosidade. Sua importância para a vida e a necessidade - na forma de plangente apelo - de se lidar com ela com a cautela de quem sabe que na sua ausência nada mais existe ou existirá.

Na estrofe seguinte, Daudeth Bandeira liquefaz uma ninfa e a dilui na fenda de seu próprio ventre:

"ÁGUA é deusa apaixonada
No colo da terra alheia
Acariciando as poupas
Dos seios brancos da areia.
Na cascata se debruça,
Canta, suspira e soluça
Apaixonando o luar,
Tangendo as espumas turvas
Pra despejá-las nas curvas
Das ondulações do mar."

(Estrofe de Daudeth Bandeira, p. 44)


Nestas em sequência, percebe-se o traço rítmico, ágil, contundente e perspicaz de José de Sousa Dantas:

"Iguapé seio da ÁGUA
Iguatu é ÁGUA boa,
Ierê giro da ÁGUA
Ike chama-se lagoa,
Ibura nascente d’ÁGUA
Igara é barco ou canoa." (...)

"A flor da ÁGUA é Potira,
Nereida é ninfa do mar
a planta d’ÁGUA é kalina,
e Neide sabe nadar,
Nimbus é nuvem de chuva,
ÁGUA suspensa no ar."(...)

(Dantas e Daudeth - ÁGUA em tupi-guarani, p. 34)

(...)"É o símbolo da pureza,
fertilidade e energia,
virtude e sabedoria,
da graça da natureza;
é a fonte de riqueza,
divina e primordial,
preciosa, especial,
exuberante e querida.
A ÁGUA é fonte de vida
sublime e fundamental."(...)

(Dantas e Daudeth – A ÁGUA é fonte de vida sublime e fundamental, p. 37)

"A ÁGUA é graça de DEUS,
não era pra ser vendida,
mas sim pra ser preservada,
impoluta e protegida,
por ser um dos elementos
principais de nossa VIDA."(...)

(...)"A falta d’ÁGUA no mundo
provoca grande aflição,
morrem plantas, animais,
em triste situação,
e o mais culpado é o homem
por essa destruição."(...)

(Dantas e Daudeth – A ÁGUA É FONTE DE VIDA, p. 36)


Águas do Chão, Águas dos Olhos, Águas do Caminho Um com versos precisos, calculados, cortantes. Outro com o traço da embriaguez, do delírio e da fantasia. Um, sendo o outro também. Ambos excelentes poetas, melódicos, rítmicos, veementes. Assim são os trovadores José de Sousa Dantas e Daudeth Bandeira, no trânsito pelos diversos matizes que lhes dão o sumo de sua requintada poesia:

(...)"O lugar que fui criado,
no meu querido sertão,
tem a mais bela visão,
o açude e o roçado,
o rio, o curral, o gado,
casa cheia de bonança,
nunca me sai da lembrança
aquela fase dourada!
Eita saudade danada
do meu tempo de criança!"(...)

(José de Sousa Dantas – Eita saudade danada do meu tempo de criança!, p. 161)

"É cantado no verso e no soneto,
prosa, contos, coral e POESIA,
cordel, cartas, seresta, romaria,
no teatro, cinema e no coreto,
festas, aniversários, no dueto,
matrimônio, romance e no sermão,
no namoro, na dança e na canção,
no sarau, na novena e batizado,...
O amor é o tema mais cantado
pelos seres de toda geração."(...)

(José de Sousa Dantas – O AMOR é o tema mais cantado pelos seres de toda geração, p. 135)

(...)"No altar da Santa Madre
não nego os pecados meus...
eu pensava muito em Deus
mas hoje, é só na comadre.
Precisa ver, seu Padre!
Como é que ela caminha...
E no banco da pracinha
o jeito que ela se senta!
Homem fraco não aguenta
provocação de vizinha."(...)

(Daudeth Bandeira – PROVOCAÇÃO DE VIZINHA, p. 339)

"Falando em gente bonita
lembro logo de Marli.
A mulher mais cobiçada
que nasceu no Cariri,
Alva do cabelo louro,
tranças em fios de ouro
pendiam nos ombros dela.
Daquele tipo que as rosas
empalidecem medrosas
pra não disputar com ela."(...)

(Daudeth Bandeira – MARLI, p. 337)

"DEUS criou a MULHER observando
o que há de melhor na natureza,
o suave sabor puro de mel,
do pecíolo da rosa, a sutileza,
do sol claro, o calor, da lua, encanto,
e das plantas, tomou toda beleza."(...)

(José de Sousa Dantas – MULHER – ETERNO VIR-A-SER!, p. 306)

(...)"Você é minha eterna companheira,
a mulher ideal da minha vida,
minha deusa de áurea preferida,
vou viver a seu lado a vida inteira;
essa nossa união é verdadeira,
na alegria, tristeza, riso e dor,
no trabalho, no lar, por onde eu for,
do seu lado jamais desistirei.
Se um dia eu puder, escreverei
a história real do nosso amor."

(José de Sousa Dantas – Se um dia eu puder, escreverei a história real do nosso amor, p. 123)

(...)"A diferença é marcante
do pobre pra o homem rico
este é dono de fabrico,
um grande comerciante;
o pobre, um mero ajudante,
sempre firme no batente,
toda hora está presente,
produzindo mais valia.
O muito é da minoria
e pouco é de muita gente."(...)

(José de Sousa Dantas – O muito é da minoria e pouco é de muita gente, p. 296)

"Montado em meu rocinante
busco a minha Dulcinéia,
que teve a péssima idéia
de partir para distante;
quem sabe a qualquer instante
eu encontre um Sancho Pança,
que imponha temperança
aos ventos que me dão medo.
Muitas vezes eu procedo
do jeito de uma criança."

(Estrofe de Daudeth Bandeira, p. 368)


Nas Águas da Poesia contou com a participação de diversos outros poetas. Peço que José Virgolino de Alencar diga de todos:

"Navegando nas ÁGUAS DA POESIA
não é eito pra todo canoeiro,
há que ser um exímio timoneiro
pra guiar o seu barco em maestria
seja no mar revolto ou calmaria,
enfrentar indomável tempestade
com coragem e rara habilidade
de manter o seu barco navegando
entre as ondas seguras velejando,
são os poetas, poetas de verdade."(...)

(José Virgolino de Alencar – NAVEGANDO NAS ÁGUAS DA POESIA, p. 57)


Livro obrigatório para o amante e fazedor de poesia. Livro-lição. Aos mestres Dantas e Daudeth, parabéns.

"Cai uma chuva de rimas
numa doce sinfonia
um arroio de toadas
cadenciando harmonia
e um borbotão de versos,
redemoinhos emersos
DAS ÁGUAS DA POESIA."

José de Sousa Dantas
Daudeth Bandeira
_________________________________________________

Nas Águas da Poesia
José de Sousa Dantas, Daudeth Bandeira.
João Pessoa: Gráfica JB Ltda, 2004. 372 p.
Apoio Cultural: Companhia de Água e Esgotos da Paraíba – CAGEPA


Biobibliografias: (Da contracapa do livro)

JOSÉ DE SOUSA DANTAS nasceu em 21/11/1954, no sítio São João, em Pombal – Paraíba; engenheiro civil pela UFPB, com mestrado pela Escola de Engenharia de São Carlos – SP. Casado, pai de três filhas. Funcionário do Estado da Paraíba. Poeta, escritor, autor do Livro “A História do Meu Lugar – Contos e Versos”; coordenador da elaboração de livros e CDs da cultura popular e promovente de encontros de poetas e repentistas, em João Pessoa e Pombal. Tem elaborado vários poemas, alguns constantes de livros, coletâneas, sites, revistas, periódicos, jornais. Conquistou o primeiro lugar com o poema “O Construtor da Poesia”, no VII Festival Sertanejo de Poesia (FESERP) – Prêmio Augusto dos Anjos, realizado em 1999, em Aparecida – PB.

DAUDETH BANDEIRA – Manuel Bandeira de Caldas, poeta, repentista, cantador, compositor e advogado, nasceu em 09/06/1945, no sítio Riacho da Boa Vista, São José de Piranhas – PB, neto do imortal cantador Manuel Galdino Bandeira e irmão dos cantadores: Pedro, Francisco e João Bandeira. Tem participado de muitos torneios, congressos e festivais de cantadores, conquistando excelentes colocações, sendo reputado pelos seus ouvintes, apologistas e colegas como um dos mais abalizados vates de sua geração. Gravou vários discos: um vôo na poesia, capim verdão, o grande desafio, frenacrep, etc. Tem trabalhos gravados por outros baluartes: conversando com as águas; o preço do nosso amor; o pai, o filho e o carro; adeus do nordestino; o plantador de milho; nordestinação; a manicure; sorte de vaqueiro; pássaro rural; sonhos de Leandro, e outros, maioria constante do livro VALE DOS VERSOS, coletâneas, sites, revistas, periódicos, jornais e no presente livro. Além da inerente faculdade poética, Daudeth Bandeira é Bacharel em Direito, mantendo sua banca de advocacia na capital João Pessoa.

Lucas Tenório

3.5.06

Propor Joaquim Cardozo ou a verdade em vez da vanguarda - Ruy Vasconcelos

Em geral, o Brasil não tem sido muito generoso com poetas que estão à margem de um certo cânone para leigos. De uma antologia escolar. O mesmo que seleciona repertório para manuais didáticos. Ou o que separa o assunto das teses acadêmicas em departamentos menos engajados com pesquisa. E se pensarmos no modernismo, por exemplo, isso soa pontual.

Drummond, Cabral, Bandeira – e, mais recentemente, Murilo Mendes – têm sido as pedras da vez. E se tem tocado muito nelas. E elas se têm prestado a vários jogos – e umas poucas partidas de horas extraordinárias. Mas também a algum desgaste por recorrente repetição de jogadas. Aquele desgaste que o excessivo toque da mão provoca nas pedras de damas.

O certo é que houve um envolvimento fatal com esse núcleo mínimo, até o ponto em que nos desacostumamos a olhar para outros lances em curiosidade. E, então, algumas leituras caducaram por má repetição de comentário. Nesse sentido, o caso de Cabral e sua poética da pedra é emblemático. Hoje em dia, um gasto exemplo de vulgarização. Um clichê escolar. Quer dizer, não a força da imagem em si, mas a maneira como foi relida à exaustão, até ser acomodada ou amortecida. Atraída para uma inofensiva domesticidade.

Mas fato é também que, a partir dessa redução, desse olhar em linha reta, quase se desconhece por completo a obra dos demais poetas modernistas. E, claro, em algumas delas se pode surpreender um empenho formal tão lapidar quanto o dos selecionados para essa espécie de excesso de jogo.

Autores como Rui Ribeiro Couto ou Dante Milano, por exemplo, têm sido votados a um empedernido ostracismo. Ou, no mínimo, subinvestigados em prol dessa visada linear. E, dentre esses, há Joaquim Cardozo, que é mais conhecido como o amigo erudito de João Cabral. Ou então, como o engenheiro de cálculos, que traduziu para o concreto, mediante justas equações, a sensual sinuosidade dos palácios de Niemeyer.

Em 1997, o centenário de nascimento desse importante poeta, morto em 1978, passou praticamente em brancas nuvens. Não houve qualquer gesto mais largo de aprofundamento, pesquisa, divulgação. Ou mesmo de simples homenagem – à parte ser lembrado, em avulso, por um ou outro suplemento literário país afora. Não houve reedições críticas de suas obras. E hoje seus livros só são encontráveis nas prateleiras dos sebos e disputados, com acrimônia, por colecionadores bem informados.

E há muito a lamentar nesse esquecimento, pois Cardozo possui um lirismo justo, pensamenteado, capaz de surpreender pelo que nele há de invenção sob a veste do tradicional. E, em especial, exigente o bastante para variar só em sinceridade – e o quanto há de perícia neste só. “Enganadora simplicidade” em “balanços rítmicos tradicionais”, é como Drummond se refere a essa perícia de Cardozo para expressar-se por antigas fórmulas fixas. Para renová-las em alto grau mediante procedimentos mínimos.

O modernismo de Cardozo é a verdade. Uma instância conseqüente por oposição a rótulos de ocasião ou modas descartáveis. A verdade em vez da vanguarda. Uma busca pela coerência que, inclusive, o fará publicar seu primeiro livro, Poemas (1947), tão-só aos cinqüenta anos. Ou no dizer de Drummond, “um aparelho severo de pudor, timidez e autocrítica salvou-o das demasias próprias de todo período de renovação literária”. Um lirismo que se quer um tanto distanciado da concepção lírica convencionalmente barroca da tradição brasileira. Mas que não a nega. Senão a desloca. Numa primeira leitura, quase nada desse jogo é aparente. Sua poesia soa mesmo bastante tradicional e até pré-moderna. Simples não quer dizer fácil. Quase nunca quer. E, assim, seus olhos cortam fundo, e bem mais esteados no pensamento do que se pode supor em pressa. E convoca os olhos do leitor a fazer o mesmo: assumir esse olhar solar – mas também elegíaco, que parece abraçar a paisagem da Zona da Mata, onde Cardozo viveu quando jovem e se deslocou por, como engenheiro de campo.

Chuvas e ventos, estios e luzes, sombras e árvores, praias e rios, Recife e pequenas vilas pesqueiras, Mosteiros de Olinda e mocambos de Tramataia, velhas alvarengas e mulheres com nomes simples e plásticos, gamboas e várzeas, corais e correntezas – um inequívoco senso de veraneio, ar livre – repõem, no entanto, um Nordeste impressivamente complexo, histórico, digno: relíquia de velhas chuvas. Um Nordeste inventariado para a alma. Uma “terra crescida, plantada/ de muita recordação”.

Um sentimento apurado, quase metereológico da paisagem é composto por uma límpida modelagem de palavras, chegando – como quase tudo em Cardozo – a criar galerias ou uma série de vãos subterrâneos. É por esses túneis que se pode adivinhar uma sorte de passagem comum, através da qual se dá o enredo, a correspondência de toda uma realidade mais estranha e extrema do que a que estamos habituados a ver em superfície: "as coisas se estão reunindo/ por detrás da realidade”. Uma mina em que se relacionam os elementos mínimos desse lirismo da contenção. Um raro inventário de dados concretos. E Cardozo sabe avalizar esse inventário como ninguém. Em profundidade quase mística. Trata-o com intimidade e cromatismos. “Visões de alto poder plástico” é como Drummond refere-se a essa exuberância visual dos poemas cardozianos.

E essa sorte de olhar em história é filtrado por uma sensibilidade extremamente cultivada. Um olhar que se cria também a partir de leituras diversas. Cardozo era um leitor atento de Valéry. Mas especialmente de Vico – que talvez haja sido seu herói por excelência, numa época em que ainda era praticamente desconhecido no Brasil.


Mas para todos os efeitos, esse Cardozo de que falamos é o de seus dois primeiros livros, Poemas e Signo Estrelado bem como o d’O Coronel de Macambira – que estranhamente não se faz presente na edição de sua poesia completa.

Propor Cardozo como leitura é propor integridade e alternativa. Especialmente num momento em que jovens poetas brasileiros escrevem excessivamente próximos uns dos outros e de um certo registro de ocasião. Decalcando-se. Fundindo-se mais do que diferençando-se. Reverenciando uma vanguarda suspeita. Algo que assoma mesmo como uma modalidade de neo-parnasianismo.

Há algum entusiasmo em torno de um Paul Celan ou de um Francis Ponge recém-descobertos em tardividade. Mas a bossa do momento são apressadas releituras de Creeley, Palmer e de poetas experimentalistas americanos ligados ao grupo L=A=N=G=U=A=G=E e depois, quase sempre coercivamente monitoradas. Uma produção que escoa predominantemente por quatro editoras: Sette Letras (Rio); Ateliê Editorial e, mais atenuadamente, Iluminuras e 34 Letras (São Paulo). Além de pelas revistas Cult, Sibila (São Paulo) e, em menor grau, Inimigo Rumor (Rio). Editoras e periódicos que, de resto, têm exercido um papel seminal na divulgação de novas tendências em poesia. Mas que, de outro modo, também têm se prestado à divulgação dessa bossa em que há mais diluição festiva relacionada a um fenômeno de moda – como à sua vez a poesia marginal era a contraleitura nacional rala e tardia para os beats – que pesquisa empenhada ou real entendimento das somas. E há uma excessiva e condescendente necessidade de se dissociar do modernismo brasileiro – à exceção de Cabral, Murilo e, menos estavelmente, Drummond – quando a maioria sequer teve informação suficiente para saber fazer diferente desse modernismo. De suas amplitudes, ressonâncias. Das alternativas, para além desse excesso de jogo que fixou os nomes dos que são lidos em recorrência. Eis um resumo do agora.

Mas, como diz, em lucidez, um dos mais filosóficos poetas do século passado, o norte-americano George Oppen (1908-1984), “é equívoco pensar que poetas contemporâneos são os principais vetores na consolidação da obra de um jovem poeta. Isso quase sempre não é verdade”.

Dentro desse panorama, autores como Couto, Milano e Cardozo, poderiam contribuir para diversidade e enriquecimento de soluções. Especialmente no impulso de implodir com essa uniformização de momento. Também marcado pelo excesso de belo-marketing e auto-promoção. E tudo isso em prejuízo do que realmente importa: pesquisa, expressão com real marca de dígitos. Vestígio de mão humana pairando sobre objetos. Uma artesania ameaçada.

A verdade em vez da vanguarda.

_________________________________________

Ruy Vasconcelos. Poeta, ensaísta e tradutor. Autor de José Albano – Errante e Peregrino (2001).

Página ilustrada com obras do artista Enrique Lechuga (México).

http://www.revista.agulha.nom.br/ag33cardozo.htm

revista de cultura # 33 - fortaleza, são paulo - março de 2003