30.11.05

Lembrança de morrer - Álvares de Azevedo

No more! o never more!
Shelley

Quando em meu peito rebentar-se a fibra
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim uma lágrima
Em pálpebra demente.

E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste pensamento.

Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro
- Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;

Como o desterro de minh'alma errante,
Onde o fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade - é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.

Só levo uma saudade - é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas...
De ti, ó minha mãe, pobre coitada
Que por minha tristeza te definhas!

De meu pai... de meus únicos amigos,
Poucos - bem poucos - e que não zombavam
Quando, em noites de febre endoudecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam.

Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda
É pela virgem que sonhei... que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!

Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores...
Se viveu, foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.

Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo...
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!

Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
- Foi poeta - sonhou - e amou na vida. -

Sombras do vale, noites da montanha
Que minha alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe canto!

Mas quando preludia ave d'aurora
E quando à meia-noite o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri os ramos...
Deixai a lua prantear-me a lousa!

Álvares de Azevedo, Poesia, 3ª ed., Rio de Janeiro, Agir, 1969, p. 43

28.11.05

Parênteses (Grêmio ganhou do Náutico no grito)

(Primeiramente como pernambucano - e torcedor do Náutico -, gostaria de apresentar algumas reflexões sobre os acontecimentos do jogo "Náutico e Grêmio" (final da 2ª divisão do Campeonato Brasileiro), que, junto com o do Santa Cruz, mexeram com o nosso Estado na tarde desse sábado, 26/11/2005.

O que eu quero dizer - e já serei claro: na minha opinião, com a palhaçada e molecagem que fez - não encontro outro termo mais adequado para a atitude de seus jogadores, dirigentes e comissão técnica -, o Grêmio ganhou do Náutico no "grito". E foi o velho grito do Sul nos ouvidos do Nordeste. Direi por quê.

Todos perceberam, pelas imagens da televisão, que na prática, por diversos fatores extra-campo, o jogo acabara aos 39 min do segundo tempo, quando foi marcado o pênalti a favor do Náutico. Desse momento em diante, o Grêmio ocupou-se, estrategicamente, em "bagunçar o coreto": viu-se uma sucessão de agressões ao árbitro por parte dos seus jogadores, expulsões, catimbas e invasões de alguns de seus torcedores e dirigentes, numa demonstração - altamente desrespeitosa, arrogante e antiética, ao Náutico e ao público pernambucano: de que não aceitariam - caso o pênalti fosse convertido (e tenho certeza de que o seria pelo Náutico naquele momento) - a vitória do time pernambucano, preterindo-lhes o acesso à primeira divisão do Brasileiro. E confesso que como torcedor era isso o que eu temia a respeito desse jogo.

Ora, porque o próprio Internacional, em jogo recente, não "pintou o sete" em São Paulo (exatamente o que o Grêmio fez em desagravo ao Náutico e ao Recife nesse sábado) contra o Corinthians, naquela garfada clamorosa que sofreu do árbrito, num lance muito mais claro
(cansativamente mostrado pela televisão) e menos discutível, do que o, ainda passível de questionamento, lance do segundo pênalti do Náutico?

Outra coisa: será que Sport, Santa Cruz ou mesmo Náutico, para ficarmos em Pernambuco, fariam uma "lambança" igual à que o Grêmio fez em campo neste jogo no Recife, caso passassem por uma situação parecida no Olímpico, Maracanã ou Morumbi? Pois eu lhes digo com certeza: muito provavelmente não, até porque nós, "pequenos", já fomos e vimos sendo historicamente e sistematicamente - como diz o cronista esportivo Milton Neves -, "preteridos" várias dessas vezes em lances também "duvidosos", pela elite do futebol do Sul e do Sudeste, e fica por isso mesmo. Alvirrubros, rubronegros e tricolores sabem bem disso, o que vale dizer: o grito do Nordeste não tem força.

O pênalti do Grêmio foi discutível: tudo bem, é coisa do futebol; não é o primeiro nem será o último lance duvidoso desse tipo. O que se coloca, e se questiona, entretanto, é o seguinte: é sempre permitido errar (involuntariamente mesmo) em favor dos times do Sul e Sudeste, quando então os adversários prejudicados, numa espécie de "sina dos pequenos" (a não ser se a briga for entre a elite), baixam a cabeça e nem pensam em "peitar" os "grandes", como o Grêmio fez em Recife contra o Náutico? Por que não se admite essa possibilidade, a de enfrentar os "grandes" nessas situações, para os times do resto do Brasil? Por que quando há lances duvidosos contra os "grandes" eles não admitem, absorvem, como sendo "coisas do futebol"? As "coisas do futebol", como se fala tanto no jargão desse esporte, são diferentes para Sul-Sudeste e Resto do Brasil? Acho que sim.

Aos times de fora do "eixo" não se dá o "benefício da dúvida"? Os "grandes" não aceitam ser postos nessa situação, mesmo que os "pequenos" convivam constantemente com ela. O Grêmio não aceitou "tal coisa" no jogo do Recife, e indiretamente terminou a partida, como disse acima, aos 39 min do segundo tempo, em franco desrespeito ao Náutico e ao povo pernambucano.

Quanto ao argumento da suposta inépcia do Náutico, eu diria: observem o trajeto da bola na cobrança do segundo pênalti, e notem que ela saiu prensada entre o pé do cobrador e o buraco, isso mesmo, o buraco que os jogadores do Grêmio cavaram na marca da penalidade máxima. Isso alterou a cobrança, sim, como o estado emocional de todo o time do Náutico estava prejudicado pela anarquia praticada pelo Grêmio. O gol do Grêmio já foi uma brincadeira na sequência da balbúrdia em que se transformou o campo dos Aflitos. O Grêmio gritou, bagunçou, esperneou e "venceu".

Disse-se que foi uma vitória maiúscula e viril. Pois bem: se o atual time do Grêmio é tão aguerrido e viril, porque não permitiu - o que um time equilibrado faria, e até porque não havia motivo, pelo exposto, para a palhaçada que se fez - que o pênalti do Náutico fosse cobrado
no curso normal do jogo, para a partir de então - tinha uns 10 min para isso, empatar, ou virar o jogo em cima do Náutico?

São essas algumas reflexões para quem gosta de futebol, e um pouco de justiça e equilíbrio. Como torcedor, não queria ver o Náutico na 1ª divisão, ganhando de um time com 7 jogadores. Foi melhor assim. O Náutico teve seus defeitos, mas o time do Grêmio nesse sábado, por
mais paradoxal que possa parecer, foi pequeno. Perdemos. São coisas do futebol... Até quando?


Lucas Tenório)














Vista aérea do tradicional centro da cidade do Recife
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Este texto foi publicado na edição de dezembro da "Página 21" - www.pagina21.com.br; antes, em 29/11/2005, um resumo seu fora publicado, como artigo, no "Jornal de Santa Catarina". - www.santa.com.br

21.11.05

Franz Boas - Antropologia Cultural, por Nicole Reis

Franz Boas. Antropologia cultural. Org. Celso Castro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. 109 p. -

Por Nicole Isabel dos Reis


Celso Castro, professor do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, organizador e tradutor desse volume, inicia a apresentação do livro afirmando que é difícil de acreditar que essa seja a primeira coletânea de Franz Boas publicada no Brasil. Considerando-se a vastidão da obra de Boas e a sua imensa importância enquanto um dos "pais-fundadores" da antropologia moderna, uma tradução para o português era mais do que necessária, principalmente porque torna mais viável o uso dos textos do autor nos cursos de graduação (e Castro confessa que organizou o livro pensando principalmente em seus alunos).

Na apresentação, Castro inclui uma breve mas bastante completa biografia de Boas, usando como fontes dois especialistas, Douglas Cole e George Stocking Jr. Além disso, justifica a seleção dos artigos e comenta cada um deles. Todos os artigos são originários de Race, Language and Culture, de 1940, uma coletânea que Boas organizou quase no final da vida, contendo 62 textos que ele julgava os mais representativos da sua carreira.

Dos cinco artigos, quatro são da parte de "Cultura" em Race, Language and Culture. Isso é positivo, já que são provavelmente os artigos mais usados no ensino de Teoria Antropológica. O primeiro texto é o clássico As Limitações do Método Comparativo em Antropologia Social, de 1896, onde Boas critica o evolucionismo social, com base na defesa da pertinência do método indutivo. Sem impugná-lo diretamente, Boas afirma que a comparação evolucionista entre povos seria possível somente dentro de territórios restritos, por meio de precisos estudos individuais. Além disso, nesse artigo Boas também critica o determinismo geográfico, baseado no argumento de que ele não dá conta de explicar a diversidade que existia entre povos que viviam em condições geográficas semelhantes.

Em Os Métodos da Etnologia, de 1920, Boas critica novamente os métodos evolucionista e difusionista, afirmando que a validade das suas teses e conclusões não foi demonstrada pela moderna etnologia. Ele propõe, em troca, um método que estude as mudanças dinâmicas em uma única sociedade, o que pode ser observado no presente. Cada grupo cultural possui uma história própria e única, e, assim, é mais importante esclarecer os processos que ocorrem "diante de nossos olhos" do que propor grandes leis de desenvolvimento da civilização (como faziam o evolucionismo e o difusionismo).

Boas também comenta algumas incursões da psicanálise no campo da etnologia, colocando algumas de suas idéias como profícuas, mas veementemente negando que o método psicanalítico por si só seja capaz de avançar na compreensão do desenvolvimento da sociedade humana.

Em Alguns Problemas de Metodologia nas Ciências Sociais, de 1930, Boas critica as tendências que certas linhas de investigação tinham, na época, de explicar as complexidades da vida cultural baseando-se num único conjunto de condições ou causas. Assim, é contestada a redução da raça à cultura, combatendo a ascensão do racismo biológico tão comum à época. Também Boas nega ainda que as condições geográficas ou econômicas sejam determinantes da cultura: elas podem estimular as condições culturais existentes, mas não possuem força criativa. Para o ilustre antropólogo, qualquer dessas tentativas de desenvolver leis gerais de integração da cultura não seria cientificamente eficaz. Como alternativa à improdutiva obsessão por leis gerais, Boas sustenta que as ciências sociais devem se preocupar em analisar fenômenos, formas definidas. Na contramão de décadas de reconstruções especulativas, Boas redireciona o método antropológico para a unidade empírica "indivíduo" em sua relação à cultura envolvente, pavimentando o caminho para a emergência da escola Cultura e Personalidade.

São basicamente essas idéias que Boas apresenta numa conferência da American Association for the Advancement of Science, em 1932, originando o quinto artigo dessa coletânea, Os Objetivos da Pesquisa Antropológica. Boas define esses objetivos como "uma tentativa de compreender os passos pelos quais o homem tornou-se aquilo que é biológica, psicológica e culturalmente" (p. 88). Ele volta a criticar o evolucionismo, o difusionismo, os determinismos biológicos, geográficos e econômicos, e a defender uma antropologia que considere a cultura como uma totalidade em todas as suas manifestações, como algo integrado e extremamente complexo, e, portanto, impossível de ser explicado por um conjunto de leis análogas às da física. Além disso, Boas semeia as dúvidas tipicamente relativistas nas pretensões da "Grande Teoria" em ciências sociais, geralmente manipuláveis para finalidades de cunho ideológico: várias formas de pensamento e ação consideradas "universais" são, na verdade, características de uma cultura específica, e cabe à antropologia estudar justamente essa variedade das culturas (no plural).

Em Raça e Progresso, de 1931, também uma conferência proferida no encontro da American Association for the Advancement of Science (da qual era presidente naquele ano), Boas critica fortemente, através de exemplos de pesquisas, as idéias de caráter racista então em voga nos Estados Unidos, até mesmo dentro do meio acadêmico. As diferenças observadas entre as populações originam-se de fatores sociais e ambientais, não biológicos. Assim, os testes de inteligência, muito em voga naquele momento, eram para Boas instrumentos totalmente inadequados para provar a superioridade ou inferioridade de algum grupo social.

Em Race, Language and Culture estão outros artigos de caráter etnográfico que talvez pudessem constar na coletânea de Castro, como The Social Organization of the Kwakiutl, The Decorative Art of the North American Indians e The Idea of the Future Life Among Primitive Tribes. Porém, para os objetivos da coletânea, uma ausência importante talvez seja a de um outro artigo, The Aims of Ethnology, de 1888, uma palestra onde Boas defende a importância da etnologia e coloca como seu objetivo principal o estudo das características de cada povo. Ele tinha apenas 30 anos nessa época. A inclusão desse trabalho em Race, Language and Culture é peculiar, já que a maioria dos artigos é de uma fase mais madura e posterior — e o próprio Boas, numa nota de rodapé, justifica a sua inclusão como necessária porque ilustra seus primeiros pontos de vista em relação aos problemas etnológicos. Na presente coletânea — certamente um marco para a antropologia brasileira — sua inclusão seria interessante por permitir contextualizar mudanças e refinamentos na trajetória intelectual de Franz Boas.
_______________________________
Nicole Isabel dos Reis - Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Brasil
Mestranda em Antropologia Social.

In Horiz. antropol., July/Dec. 2004, vol.10, no.22, p.355-357. ISSN 0104-7183.

20.11.05

Geografia da Fome - Josué de Castro

"E foi assim que, pelas história dos homens e pelo roteiro do rio, fiquei sabendo que a fome não era um produto exclusivo dos mangues. Que os mangues apenas atraíram os homens famintos do Nordeste: os da zona da seca e os da zona da cana. Todos atraídos por esta terra de promissão, vindo se aninhar naquele ninho de lama, construído pelos dois e onde brota o maravilhoso ciclo do caranguejo. E quando cresci e saí pelo mundo afora, vendo outras paisagens, me apercebi com nova surpresa que o que eu pensava ser um fenômeno local, era um drama universal. Que a paisagem humana dos mangues se reproduzia no mundo inteiro. Que aqueles personagens da lama do Recife eram idênticos aos personagens de inúmeras outras áreas do mundo assolados pela fome. Que aquela lama humana do Recife, que eu conhecera na infância, continua sujando até hoje toda a paisagem de nosso planeta como negros borrões de miséria: as negras manchas demográficas da geografia da fome.1"

"O assunto deste livro é bastante delicado e perigoso. A tal ponto delicado e perigoso que se constituiu num dos tabus de nossa civilização. É realmente estranho, chocante o fato de que, num mundo como o nosso, caracterizado por tão excessiva capacidade de escrever-se e publicar-se, haja até hoje tão pouca coisa escrita acerca do fenômeno da fome, em suas diferentes manifestações.

Quais são os fatores ocultos desta verdadeira conspiração de silêncio em torno da fome? Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tomaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado publicamente.

Ao lado dos preconceitos morais, os interesses econômicos das minorias dominantes também trabalhavam para escamotear o fenômeno da fome do panorama espiritual moderno. É que ao imperialismo econômico e ao comércio internacional a serviço do mesmo interessava que a produção, a distribuição e o consumo dos produtos alimentares continuassem a se processar indefinidamente como fenômenos exclusivamente econômicos - dirigidos e estimulados dentro de seus interesses econômicos - e não como fatos intimamente ligados aos interesses da saúde pública.2"

http://www.josuedecastro.com.br/port/index.html
_________________________________________________
1 A Descoberta da Fome
Prefácio ao livro Homens e Caranguejos, Lisboa, 1966.
2 Geografia da Fome
Prefácio da última edição, incluído no livro Fome, Um Tema Proibido.
Última Edição, Civilização Brasileira 2003. Organizadora: Anna Maria de Castro.

18.11.05

1619 - Francisco José Tenreiro

Da terra negra à terra vermelha
por noites e dias fundos e escuros,
como os teus olhos de dor embaciados,
atravessaste esse manto de água verde
- estrada de escravatura
comércio de holandeses

Por noites e dias para ti tão longos
e tantos como as estrelas no ceú,
tombava o teu corpo ao peso de grilhetas e chicote
e só ritmo de chape-chape da água
acordava no teu coração a saudade
da última réstia de areia quente
e da última palhota que ficou para trás.

E já os teus olhos estavam cegos de negrume
já os teus braços arroxeavam de prisão
já não havia deuses nem batuques
para alegrarem a cadência do sangue nas tuas veias
quando ela, a terra vermelha e longínqua
se abriu para ti
- e foste 40'L esterlinas
em qualquer estado do SUL -

(Obra poética de Francisco José Tenreiro*, 1967
apud No Reino de Caliban III, p. 439)
____________________________________________________
* Nasceu em São Tomé em 20/01/1921 e morreu em Lisboa em 31/12/1956. Foi para Lisboa com cerca de dois anos de idade e nessa cidade concluiu os seus estudos. Cursou a antiga Escola Colonial e se doutorou em Ciências Geográficas na Faculdade de Lisboa. Foi professor catedrático do Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina e membro de associações científicas nacionais e internacionais. Em sua época de estudante, esteve muito ligado aos movimentos literários, culturais e políticos da Casa dos Estudantes do Império. Foi um dos fundadores do Centro de Estudos Africanos em Lisboa (1951), de atividade clandestina. Colaborou de maneira representativa em jornais e revistas nacionais e estrangeiros, de natureza literária ou científica. Além de poeta, foi ensaísta e investigador. Esteve ligado a várias iniciativas culturais. Obras publicadas: Ilha de nome santo (1942), postumamente integrado na Obra poética de Francisco José Tenreiro (1947), reeditada em 1982 com o título Coração em África; Panorama da literatura norte-americana (1945). Co-autoria no Caderno de poesia negra de expressão portuguesa (1953); São Tomé, monografia esta orientada no sentido da geografia humana (obra científica).
(In Antologia do Mar na Poesia Africana de Língua Portuguesa do Século XX - Volume III. Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco (Coordenadora). Faculdade de Letras UFRJ - 1999, pp. 181-182.)

Depois da teoria - Terry Eagleton

"De todo modo, a arte e a literatura abrangem um grande número de idéias e experiências difíceis de conciliar com o quadro político atual. Elas também levantam questões sobre a qualidade de vida num mundo onde a própria experiência parece perecível e degradada. Como, em tais condições, e antes de qualquer coisa, você pode produzir uma arte de valor? Não teria você que mudar a sociedade a fim de crescer como um artista? Além disso, aqueles que lidam com a arte falam a linguagem do valor, e não do preço. Eles lidam com trabalhos cuja profundidade e intensidade mostram a penúria da vida diária numa sociedade obcecada com o mercado. Também são treinados para imaginar alternativas ao existente. A arte encoraja você a fantasiar e desejar. Por todas essas razões, é fácil ver por que são estudantes de arte ou de inglês, em vez de engenheiros químicos, que tendem a prover pessoal para as barricadas.

No entanto estudantes de engenharia química, em geral, saem mais facilmente da cama do que estudantes de arte e de inglês. Algumas das próprias qualidades que atraem especialistas culturais para a esquerda política são as mesmas que fazem com que eles sejam difíceis de organizar. São os curingas no pacote político, ativistas relutantes que tendem a estar mais interessados em utopia do que em sindicatos. Ao contrário dos filisteus de Oscar Wilde, eles sabem o valor de tudo e o preço de nada. Você não poria Arthur Rimbaud num comitê sanitário. Nas décadas de 1960 e 1970, isso fez dos pensadores culturais os candidatos ideais para estarem dentro e fora do marxismo simultaneamente. Na Inglaterra, um teórico dos Estudos Culturais proeminente como Stuart Hall ocupou essa posição durante décadas, entes de passar decididamente para o campo não-marxista.

Estar dentro e fora de uma posição ao mesmo tempo - ocupar um território e ficar vagando ceticamente pela fronteira - é, com frequência, de onde brotam as idéias mais intensamente criativas. É um lugar cheio de recursos para se estar, mesmo que nem sempre seja isento de dores. Basta pensar nos grandes nomes da literatura inglesa do século XX: quase todos se moviam entre duas ou mais culturas nacionais. Mais tarde essa ambiguidade de posição seria herdada pelos novos teóricos culturais "franceses". Não muitos deles eram franceses de origem, e não muitos dos que eram franceses eram heterossexuais. Alguns vieram da Argélia, alguns da Bulgária e outros da utopia. No entanto, quando os anos 70 foram chegando ao fim, um bom número dos antigos radicais começou a chegar do frio. A passagem para os despolitizados anos 80 e 90 havia sido aberta."

A ascensão e queda da teoria

In Depois da teoria - Um olhar sobre os Estudos Culturais
e o pós-modernismo, Terry Eagleton, Civilização Brasileira,
Rio de Janeiro, 2005, pp. 63-65.

16.11.05

Soneto

Eu não sei bem aquilo que quero
Nem o que de mais queira eu não sei
Tenho certo só o quanto os espero
Certo estou, cedo ou tarde os terei

E o que espero, como vem, nunca sei
Sei que é minha, só minha encomenda
E sei dela que se dela não entenda
Fora ela o que de mais dela estudei

Estudei o que soube, quase nada
Estudei a essência, o que passa
A procura, o que virá na invernada

De minha vida, e que seja para sempre
O que busquei, o que quis, e esteve ausente
Noutros versos, deixados na estrada.

Lucas Tenório

As Várias Facetas do Recife - Leonardo Dantas Silva








Paisagem do Recife - Acervo FJN

Como as pessoas, as cidades
ou não se dão, ou se dão.
São elas introvertidas,
ou extrovertidas são.
O Rio se entrega todo
logo à primeira vista.
Mas o Recife, ao contrário,
se furta ao olhar do turista,
Que precisa procurar,
Com um bom e pronto guia,
Para que possa encontrar,
Nas suas ansiedades,
Donjuanescas e incontidas,
Da magra e esquiva cidade
As suas graças escondidas.
Carlos Moreira
Qual seria, entre tantas, a mais bela faceta deste nosso por vezes maltratado brilhante? Quem sabe qual seria a mais bela vista deste nosso Recife?

Este nosso brilhante parece opaco e sem brilho, na imensa maioria de suas facetas, mas, com um pouco de boa vontade e olhando-se mais com o coração, a parte obscurecida do belo, por certo, irá transparecer aos nossos olhos.

Vista do alto, a cidade pode ser assemelhada a uma estrela da qual se vislumbra a parte superior, tendo por centro a ilha do Recife, com seus raios espargindo-se em busca dos subúrbios.

Pode também ser comparada a uma aranha, com sua teia apegando-se ao longo da planície como se estivesse sendo tragada pelo Oceano Atlântico. Assim pareceu o Recife aos olhos do poeta João Cabral de Melo Neto, quando visto De um avião:
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .............
e eis o Recife, sol de todo
o sistema solar da planície:
daqui é uma estrela
ou uma aranha, o Recife,

se estrela, que estende seus dedos,
se aranha, que estende sua teia:
que estende sua cidade
por entre a lama negra.

Josué de Castro, em artigo publicado no Boletim da Cidade e do Porto do Recife (n.º 19-34), observa que "o Recife, como qualquer outra cidade, não se deixa penetrar em sua essência, nem consente em revelar o sentido de sua alma aparentemente dispersa nos contrastes da paisagem, senão de um determinado ângulo visual. [....] A cidade só se deixa captar na unidade de sua expressão urbana, quando vista do alto dos aviões, em sua perspectiva vertical". É das alturas das nuvens que se recebe todos os eflúvios de sua poesia urbana, subindo violentamente, através da atmosfera varada em todos os sentidos pelos reflexos da luz sobre as águas. Cidade construída numa planície encharcada, formada de ilhas, penínsulas, alagados, mangues e paús, envolvidos e salpicados por manchas d'água por todos os lados, é impossível captar-se a expressão do seu rosto, do nível do solo ou do mar.

Mas qual seria a mais bela paisagem do Recife? De onde seria este ponto de onde pudéssemos captar aquele micro-horizonte que viesse a ser um símbolo de nossa cidade?

O fato é que, estando localizado numa planície quaternária aluviônica, o Recife deve ser visto do alto, como demonstra Josué de Castro e como bem captou o poeta João Cabral de Melo Neto. Dali vislumbraríamos todo o delta do Capibaribe e as principais vias de penetração, como uma mão espalmada, formando depois uma verdadeira teia de aranha sendo tragada pelo Atlântico.

Na falta de um mirante, poderíamos optar pelo Recife visto dos arrecifes, mais ao sul, ponto de onde Frans Post (1612-1680) retratou a Mauritiopolis do conde João Maurício de Nassau, em gravura publicada no livro de Gaspar Barlaeus, datada de 1645. De uma tomada dos arrecifes, o célebre pintor registrou, em primeiro plano, uma jangada e o Forte do Mar, seguindo-se do bairro portuário, com nove naus ancoradas, o casario português, com seus sobrados, alguns de quatro pavimentos, e a primitiva ponte de madeira (1643). Do lado da ilha de Antônio Vaz, onde fora erguida a cidade Maurícia, a paisagem é marcada pelo Palácio de Friburgo (1642), o primeiro observatório astronômico de George Marcgrave, a igreja dos calvinistas franceses e o casario a obedecer o traçado de Pieter Post, vendo-se ao longe Olinda e as colinas terciárias que cercam a antiga baía do Recife.

Quem sabe se poderíamos escolher a vista do Recife tomada da cabeceira leste da Ponte do Pina, ponto de referência usado por José Gonçalves da Fonseca, em panorama datado de 31 de março de 1766? De lá, descortinaríamos a imensidão da Bacia do Pina, com o colorido dos armazéns do Cais José Estelita, vendo-se a ilha do Recife e o seu porto; o bucólico bairro de São José, hoje mutilado nas empenas de seus sobrados pela insensibilidade de alguns comerciantes, mas ainda ostentando algumas das seculares torres de suas igrejas.

Visto do norte, em hora da preamar, da Ponte do Limoeiro e/ou do terraço do edifício-sede da prefeitura, teremos uma singular vista de Olinda e do Cais da Rua da Aurora, com a ilha de Santo Antônio e as pontes que assinalam o centro da cidade. De suas cercanias, no Forte do Brum, foi desenhada uma das cromolitografias da série de W. Bassler, publicada em Dresden, em 1847. Hoje, de lá podemos, ainda, vislumbrar os jardins do Palácio do Campo das Princesas, as cúpulas da Assembléia Legislativa e do Palácio da Justiça, o casario da Rua da Aurora e alguns prédios modernos a manchar a paisagem com seus letreiros. Do lado contrário, da Ponte Velha ou da sede da Rede Ferroviária, avistaríamos o Recife com suas pontes, com o rio ladeado pelas ruas da Aurora e do Sol, e a Casa da Cultura, escondida pelo manguezal, ali plantado em 1989.

A vista de Olinda pode ser captada da Ponte Princesa Isabel, particularmente quando da preamar. De lá o nosso olhar, por entre a vegetação do mangue e os jardins da Rua da Aurora, centra-se na Ponte do Limoeiro e assim chega até o Alto da Sé, de onde se sobressai sobre o verde da colina a Igreja do Salvador do Mundo, o Seminário e o conjunto da Misericórdia.

Se vista do Alto da Misericórdia, em Olinda, a paisagem da planície do Recife, que tanto fascinou Ambrósio Fernandes Brandão (1618) e o reverendo Joannes Baers (1630), aparece como que surgida de uma cromolitografia de W. Bassler (1847). De lá podemos exclamar, como o poeta Carlos Pena Filho, ninguém diz é lá que eu moro, diz somente é lá que eu vejo!

Outras visões poderiam ser tomadas do Recife, até de pequeninos horizontes, como o bucólico Pátio de São Pedro. Lá, numa tarde de domingo, o poeta Mauro Mota, no colonial e imutável bairro de São José, chegou a vislumbrar:

Um vôo de pomba acaricia o espaço quieto O Espírito Santo
baixará no Pátio de São Pedro.

14.11.05

Osteogenia

A meu filho Álvaro
Do osso a histologia
na lente perquirida
diz-se do osso vida
crânio a filosofia.

Diz-se da osteogenia
que é pedra em água-viva
de sangue, humor, saliva
estirpe e fidalguia.

Diz-se pedra-de-toque
de todo um esqueleto
do corpo humano feito
forquilha de bodoque.

Forquilha de arremesso
de sangue, pedra e cal
esticado em varal
de corpo pelo avesso.

De corpo em inversão
do que lhe é ancestral
herança mineral
de corpo aluvião.

De corpo feito leito
de um rio em preamar
na foz sedimentar
dos seus vasos estreitos.

Por vasos onde escorrem
a pedra, o vento o sol
a nuvem e o farol
que nesse corpo dormem.

De um corpo feito quente
de pedra-seixo-togas
de peixes entre as algas
num escopo incandescente.

De um corpo em investidura
parindo luz e vida
na lente perquirida
de alma etérea e pura.


Lucas Tenório

10.11.05

Nordestinados - Marcus Accioly

"§ O canto, grão-de-milho
Plantado em março,
Na pedra onde ele ocupa
Menor espaço,
E após dormir no dentro
Da própria pedra
O grão se torna flor
E o milho medra.

E medra o milho, o canto,
Da pedra áspera,
Bebendo o suor do sol,
A água escassa,
Descendo as suas raízes
Com tanto esforço
Qual se descesse um balde
Dentro de um poço.

Qual se cavasse a pedra
Dentro fechada,
Descendo as suas raízes,
A sua enxada,
Descendo a língua seca
Como uma ponte
Que atravessando a pedra
Acha uma fonte.

E penetrando a pedra
Encontra a água
Do regador oculto
Que a pedra guarda,
Do crivo que derrama
A água interna
E abre dentro da pedra,
Sua cisterna."

CANTOMILHO

In Nordestinados, Marcus Accioly,
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1971
pp. 136-137

Morte e Vida Severina - João Cabral de Melo Neto

"FALAM OS VIZINHOS, AMIGOS, PESSOAS QUE VIERAM
COM PRESENTES ETC.

- De sua formosura
já venho dizer:
é um menino magro,
de muito peso não é,
mas tem o peso de homem,
de obra de ventre de mulher.
- De sua formosura
deixai-me que diga:
é uma criança pálida,
é uma criança franzina,
mas tem a marca de homem,
marca de humana oficina.
- Sua formosura
deixai-me que cante:
é um menino guenzo
como todos os desses mangues,
mas a máquina de homem
já bate nele, incessante.
- Sua formosura
eis aqui descrita:
é uma criança pequena,
enclenque e setemesinha,
mas as mãos que criam coisas
nas suas já se adivinha.


- De sua formosura
deixai-me que diga:
é belo como o coqueiro
que vence a areia marinha.
- De sua formosura
deixai-me que diga:
belo como o avelós
contra o Agreste de cinza.
- De sua formosura
deixai-me que diga:
belo como a palmatória
na caatinga sem saliva.
- De sua formosura
deixai-me que diga:
é tão belo como um sim
numa sala negativa.
- É tão belo como a soca
que o canavial multiplica.
- Belo porque é uma porta
abrindo-se em mais saídas.
- Belo como a última onda
que o fim do mar sempre adia.
- É tão belo como as ondas
em sua adição infinita.

- Belo porque tem de novo
a surpresa e a alegria.
- Belo como a coisa nova
na prateleira até então vazia.
- Como qualquer coisa nova
inaugurando o seu dia.
- Ou como o caderno novo
quando a gente o principia.

- E belo porque com o novo
todo o velho contagia.
- Belo porque corrompe
com sangue novo a anemia.

- Infecciona a miséria
com vida nova e sadia.
- Com oásis, o deserto,
com ventos, a calmaria."

Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto,
Livraria José Olympio Editora S.A., Rio de Janeiro, 1982,
pp. 109-111

4.11.05

GUARARAPES - Ariano Suassuna

A TERRA CÔR DE VINHO: A FURNA, A ONÇA CASTANHA.
NUM CAMPO DE BATALHA - O MUNDO, O OVRO DO SOL -
HÁ SANGUE NAS RAÍZES, HÁ OSSOS QUE BRANQUEJAM:
NO SOL DA TERRA SANGRA O SOL DÊSTE OUTRO SOL.

E AINDA ESTURRA AQUI A ONÇA DA PAZ, ESCURA,
MESTIÇA MAGISTRAL - A ONÇA AGATEADA:
UM DOS SEUS OLHOS DORME, O OUTRO, ACESO, ENCANDEIA,
VIGIANDO O SOL, AS PEDRAS, AS ÁRVORES SAGRADAS.

E DEUS ESCREVE CERTO SUAS ÁUREAS LINHAS TORTAS:
NESTA TERRA QUE É DÊLE, O DIABO PERDE AS BOTAS. -
"VIVA O SANGUE DE DEUS LIMPANDO A LUZ DO MAL!"-
GRITA O CLARIM DOS CANTOS, À LUZ DÊSTE MURAL.

Inscrição de um mural na esquina da Rua das Flores,
próxima à Igreja de Nossa Senhora do Carmo,

no centro do Recife.









Batalha dos Guararapes - Museu Calmon Barreto
detalhe do monumento “Heróis da Laguna”,
baixo relevo em bronze – 0,54 x 1,08 m. Rio, 1939

3.11.05

Lições Elementares da Pedra - VII

A sedução da pedra

A pedra é antes força
De gravidade-ser
É profusão de só
Em profusão de outras.

A pedra como outra
É mão que a sopesa
É olho que a enviesa
Em traço geometral.

A pedra do quintal
É pedra do inquilino
No abaulado sino
Do copular metal.

Do metal do menino
Da pedra de portão
Do maleável chão
De terra seminal.

Da pedra-mor de peso
A pedra é feita lar
De globo ocular
De pedra intestinal.

Mas pedra é pedra outra
Em pedra de desejo
Na pedra de cortejo
Por pedra mineral.

Vê-se que a pedra é mesma
O tinido do sino
A palma do menino
O visual da lesma.

Lucas Tenório