29.8.05

Lições elementares da pedra - II

O encontro com o nada
recorrência estética
da prole hígida
asséptica e vacinada
por anticorpos laudas
vazias.

O encontro com o branco
recorrência hermética
do alçapão fechado
do vaso furado
e do tamanco descalçado.

O encontro com o tronco
desenraizado, filhos adulterinos
sentados
no banco do trânsito do alcochoado vazio.

O encontro com o pavio
do barril de fogo
e o cadinho de gás
em metal de logro
em que nada faz
o que é nada em dobro.

Lucas Tenório

Lições elementares da pedra - I

Cacos rasgos de vidros toscos
Se digo da pedra o
fosso
em que aresta o fosco
estará para a luz exposto?

E se a aresta recortada
entre
o grão de areia
e a espada for uma lápide côncava?

E se a onda que quebra no rochedo
a concha engoli-la troncha
por sua face enviesada?

Restará aguada
acesa
triturada a luz
espargido o pus
da fenda descarnada.

Lucas Tenório

Lá vem o beco

Lá vem o beco
Figura caricata.
Pedras
de construtor
e uma prancheta de arquiteto
na pasta.

O beco quer uma perimetral -
diz ao seu poste único.

O beco intimidou o paisagista.

Tirou da maquete de um boteco
uma dose.

Incendiou-te o arquiteto?

Tem funerária no beco.

Ouviu-se um grito seco:
Foge, beco!

Lucas Tenório

Quiseram me convencer de que o Capibaribe é uma fossa

O formalismo geográfico
do esquecimento geológico
a desapropriação da terra
de que a excrescência se apossa
quiseram me convencer
de que o Capibaribe é uma fossa.

Uma sucessão de pontes
o convencionalismo historiográfico
um cão em sua lídima cova
onde as plumas desmaiadas escorça
quiseram me convencer
de que o Capibaribe é uma fossa.

Um cartão postal retocado
pela computação estatal
o cenário da ponte aérea
no cotidiano da aeromoça
quiseram me convencer
de que o Capibaribe é uma poça.

Os despojos do poeta vadio
na lembrança de Austro Costa
uma sede imensurável
de quem só almoça carcaça
quiseram me convencer
de que o Capibaribe é uma traça.

Uma cidade chamada Recife
esquife dialético do novo
um canteiro podre e febril
um intestino, uma víscera, um ovo
quiseram me convencer
de que o Capibaribe é um estorvo.

Lucas Tenório

Redoma

Falam perto de mim, me acercam
Tocam em meu corpo encurvado
Pedem-me desculpas, lacerado
Sei que a fé me diz o quanto pecam.

Agora se afastam, em desalento
Tristes são os que erram pelo nada
Minha alma queda-se calada
Não se passa nada num momento.

Um silêncio profundo me assoma
Distantes são as vozes, quase mudas
Rezo para que a indiferença os tome

Pelo pulso. Sei de todos os seus nomes
Algum deles já ouviu Pablo Neruda?
Deus, me dê por templo uma redoma.

Lucas Tenório

Noite

Sonhei com um soneto somente.
Era apenas um soneto, um soneto só.
Um soneto tão sozinho que dava dó.
Sonhei com um soneto, indiferente.

Era apenas um soneto, soneto mudo.
Ele não pedia nada, não me falava.
Entretanto me encarava, a tal me olhava
Como se quisesse pôr-me a par de tudo.

Mas era apenas um soneto, era mais um
Era apenas mais um sonho, mais um perdido
E era apenas um olhar, olhar algum...

Noutro dia outra manhã, novos olhares
Dessa velha solidão nos calcanhares
E um soneto a me espreitar, adormecido.

Lucas Tenório