Franz Boas.
Antropologia cultural. Org. Celso Castro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. 109 p. -
Por Nicole Isabel dos Reis
Celso Castro, professor do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, organizador e tradutor desse volume, inicia a apresentação do livro afirmando que é difícil de acreditar que essa seja a primeira coletânea de Franz Boas publicada no Brasil. Considerando-se a vastidão da obra de Boas e a sua imensa importância enquanto um dos "pais-fundadores" da antropologia moderna, uma tradução para o português era mais do que necessária, principalmente porque torna mais viável o uso dos textos do autor nos cursos de graduação (e Castro confessa que organizou o livro pensando principalmente em seus alunos).
Na apresentação, Castro inclui uma breve mas bastante completa biografia de Boas, usando como fontes dois especialistas, Douglas Cole e George Stocking Jr. Além disso, justifica a seleção dos artigos e comenta cada um deles. Todos os artigos são originários de
Race, Language and Culture, de 1940, uma coletânea que Boas organizou quase no final da vida, contendo 62 textos que ele julgava os mais representativos da sua carreira.
Dos cinco artigos, quatro são da parte de "Cultura" em
Race, Language and Culture. Isso é positivo, já que são provavelmente os artigos mais usados no ensino de Teoria Antropológica. O primeiro texto é o clássico
As Limitações do Método Comparativo em Antropologia Social, de 1896, onde Boas critica o evolucionismo social, com base na defesa da pertinência do método indutivo. Sem impugná-lo diretamente, Boas afirma que a comparação evolucionista entre povos seria possível somente dentro de territórios restritos, por meio de precisos estudos individuais. Além disso, nesse artigo Boas também critica o determinismo geográfico, baseado no argumento de que ele não dá conta de explicar a diversidade que existia entre povos que viviam em condições geográficas semelhantes.
Em
Os Métodos da Etnologia, de 1920, Boas critica novamente os métodos evolucionista e difusionista, afirmando que a validade das suas teses e conclusões não foi demonstrada pela moderna etnologia. Ele propõe, em troca, um método que estude as mudanças dinâmicas em uma única sociedade, o que pode ser observado no presente. Cada grupo cultural possui uma história própria e única, e, assim, é mais importante esclarecer os processos que ocorrem "diante de nossos olhos" do que propor grandes leis de desenvolvimento da civilização (como faziam o evolucionismo e o difusionismo).
Boas também comenta algumas incursões da psicanálise no campo da etnologia, colocando algumas de suas idéias como profícuas, mas veementemente negando que o método psicanalítico por si só seja capaz de avançar na compreensão do desenvolvimento da sociedade humana.
Em
Alguns Problemas de Metodologia nas Ciências Sociais, de 1930, Boas critica as tendências que certas linhas de investigação tinham, na época, de explicar as complexidades da vida cultural baseando-se num único conjunto de condições ou causas. Assim, é contestada a redução da raça à cultura, combatendo a ascensão do racismo biológico tão comum à época. Também Boas nega ainda que as condições geográficas ou econômicas sejam determinantes da cultura: elas podem estimular as condições culturais existentes, mas não possuem força criativa. Para o ilustre antropólogo, qualquer dessas tentativas de desenvolver leis gerais de integração da cultura não seria cientificamente eficaz. Como alternativa à improdutiva obsessão por leis gerais, Boas sustenta que as ciências sociais devem se preocupar em analisar fenômenos, formas definidas. Na contramão de décadas de reconstruções especulativas, Boas redireciona o método antropológico para a unidade empírica "indivíduo" em sua relação à cultura envolvente, pavimentando o caminho para a emergência da escola Cultura e Personalidade.
São basicamente essas idéias que Boas apresenta numa conferência da American Association for the Advancement of Science, em 1932, originando o quinto artigo dessa coletânea,
Os Objetivos da Pesquisa Antropológica. Boas define esses objetivos como "uma tentativa de compreender os passos pelos quais o homem tornou-se aquilo que é biológica, psicológica e culturalmente" (p. 88). Ele volta a criticar o evolucionismo, o difusionismo, os determinismos biológicos, geográficos e econômicos, e a defender uma antropologia que considere a cultura como uma totalidade em todas as suas manifestações, como algo integrado e extremamente complexo, e, portanto, impossível de ser explicado por um conjunto de leis análogas às da física. Além disso, Boas semeia as dúvidas tipicamente relativistas nas pretensões da "Grande Teoria" em ciências sociais, geralmente manipuláveis para finalidades de cunho ideológico: várias formas de pensamento e ação consideradas "universais" são, na verdade, características de uma cultura específica, e cabe à antropologia estudar justamente essa variedade das culturas (no plural).
Em
Raça e Progresso, de 1931, também uma conferência proferida no encontro da American Association for the Advancement of Science (da qual era presidente naquele ano), Boas critica fortemente, através de exemplos de pesquisas, as idéias de caráter racista então em voga nos Estados Unidos, até mesmo dentro do meio acadêmico. As diferenças observadas entre as populações originam-se de fatores sociais e ambientais, não biológicos. Assim, os testes de inteligência, muito em voga naquele momento, eram para Boas instrumentos totalmente inadequados para provar a superioridade ou inferioridade de algum grupo social.
Em
Race, Language and Culture estão outros artigos de caráter etnográfico que talvez pudessem constar na coletânea de Castro, como
The Social Organization of the Kwakiutl,
The Decorative Art of the North American Indians e
The Idea of the Future Life Among Primitive Tribes. Porém, para os objetivos da coletânea, uma ausência importante talvez seja a de um outro artigo,
The Aims of Ethnology, de 1888, uma palestra onde Boas defende a importância da etnologia e coloca como seu objetivo principal o estudo das características de cada povo. Ele tinha apenas 30 anos nessa época. A inclusão desse trabalho em
Race, Language and Culture é peculiar, já que a maioria dos artigos é de uma fase mais madura e posterior — e o próprio Boas, numa nota de rodapé, justifica a sua inclusão como necessária porque ilustra seus primeiros pontos de vista em relação aos problemas etnológicos. Na presente coletânea — certamente um marco para a antropologia brasileira — sua inclusão seria interessante por permitir contextualizar mudanças e refinamentos na trajetória intelectual de Franz Boas.
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Nicole Isabel dos Reis - Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Brasil
Mestranda em Antropologia Social.
In
Horiz. antropol., July/Dec. 2004, vol.10, no.22, p.355-357. ISSN 0104-7183.