31.3.06

Eclipse

O sol em proto-esfera
pelo luar levita
fragor, fragrância, vista
e o fumo das crateras

O sol da cor despela
em luz que regurgita
a cintura contrita
de amarela gazela

Na cal de primavera
aposto um seminal
na fossa genital
do caroço da, pera

Em orbital ambíguo
de um hermafrodita
prender atado à cinta
o outro lado do umbigo

Do ânus, casca basta
feito o parto do escuro
um feto fosco e anuro
emprenha sua madrasta

No mesmo intervalo
em que relincha a égua
e que a maré sonega
o esperma do cavalo

Endurecida a cinta
e cego o nascituro
perpassa o palinuro
a luminância extinta

E o coito se encerra
num orgasmo monocórdio
num preciso relógio
agônico de terra

Quebrado da placenta
o umbilical enlaça
a garganta da taça
herege e sacrossanta

E volta o grão ao estrume
e o ventre ensangüentado
celebra fecundado
o sombreado lume.

Lucas Tenório

28.3.06

Capiba & Gonzagão [Luiz Gonzaga] - Kuarup Discos


Capiba & Gonzagão

Interpretes Principais: Quinteto da Paraíba

No ano [2002] em que Gonzagão [Luiz Gonzaga] faria 90 anos (e Capiba 98), o Quinteto da Paraíba abraça Pernambuco nesta homenagem sonora a dois dos maiores heróis musicais do Nordeste. Em seu 2º CD para a Kuarup, o Quinteto gravou sete arranjos de Guerra Peixe para sucessos de Luis Gonzaga, além de nove peças de Capiba, com destaque para os Quatro Maracatus, com dedicatória do próprio compositor.

Músicas
Ficha Musical
Ficha Técnica
Apresentação

Capiba & Gonzagão - Quinteto da Paraíba (Músicas) Tempo Total: 62:08

01 Baião (Luiz Gonzaga/ Humberto Teixeira) 05:36
02 Um Pernambucano no Rio (Capiba) 03:35
03 Paraíba (Humberto Teixeira/ Luiz Gonzaga) 07:48
04 Minha Ciranda (Capiba) 04:03
05 Qui Nem Jiló (Luiz Gonzaga/ Humberto Teixeira) 04:17
06 Valsa verde (Capiba/ Ferreira dos Santos) 04:18
07 Algodão (Luiz Gonzaga/ Zé Dantas) 05:06
08 Recife, cidade lendária (Capiba) 04:54
09 Vozes da Seca (Luiz Gonzaga/ Zé Dantas) 03:28
10 Choro para Marco Cesar (Capiba) 04:13
11 Légua Tirana (Luiz Gonzaga/ Humberto Teixeira) 04:03
12 É de Tororó (Capiba/ Ascenso Ferreira) 03:48
13 Navio da Costa (Capiba) 03:48
14 Vira a Moenda (Capiba) 03:19
15 Cadê os Guerreiros (Capiba/ Ascenso Ferreira) 03:38
16 Respeita Januário (Luiz Gonzaga/ Humberto Teixeira) 03:14

Ficha Musical

Quinteto da Paraíba:

Yerko Tabilo e Ronedilk Dantas (violinos)
Samuel Espinosa (viola)
Nelson Videla (cello)
Xisto Medeiros (baixo)

Participações Especiais:

Marco César (bandolim)
Valter Albuquerque (sanfona)
Glauco Andreza (percussão)

Arranjos Gonzagão:
Guerra Peixe, adpt. Adail Fernandes

Arranjos Capiba:
Marco César (2,4,6,10)
Jarbas Maciel (8)
Guerra Peixe: adpt. Xisto Medeiros (12 a 15)

Ficha Técnica

Produzido pelo Quinteto da Paraíba

Assistente de Produção: Xisto Medeiros

Direção Musical: Quinteto da Paraíba

Mixagem e Masterização: Sérgio Galo e Quinteto da Paraíba

Gravado por Sérgio Galo

Capa: Janine Houard

Fotos: Gustavo Moura

Gravado entre Janeiro e Março de 2001 pelo SG Studio na Sala Banquê, João Pessoa, gentilmente cedida pela FUNESC.

Apresentação

O Quinteto da Paraíba foi fundado em 1989, ano em que Gonzagão faleceu, aos 77 anos. Capiba tinha então 85 anos, e viveu até os 93. Neste ano de 2002, em que Gonzagão faria 90 anos (e Capiba 98), a Paraíba volta a abraçar Pernambuco nesta homenagem sonora a dois dos maiores heróis musicais do Nordeste.

Quarenta dias antes de morrer, em 97, Capiba presenteou o Quinteto da Paraíba com seus "Quatro Maracatus", arranjados por seu velho amigo Guerra Peixe. "Com a minha admiração," escreveu o compositor em 21 de novembro de 1997, ao entregar a partitura ao Maestro Clóvis Pereira em seu quarto de hospital no Recife.

O presente só chegou a João Pessoa em fevereiro de 1998, mesmo ano em que saíu o CD Armorial & Piazzolla pela Kuarup, com a música Toada e Desafio, de Capiba, tema do filme Central do Brasil, de Walter Salles Jr., candidato ao Oscar daquele ano.

Logo em seguida, o maestro Adail Fernandes, que é uma espécie de "6º membro do Quinteto", descobriu e adaptou seis arranjos de Gonzagão feitos por Guerra Peixe. Estes e mais os "Quatro Maracatus" acabaram transformando Guerra no veio condutor do nascente CD Capiba & Gonzagão. Das 16 faixas, 10 partem de arranjos originais deste petropolitano apaixonado pelo Nordeste, um dos maiores compositores brasileiros de todos os tempos.

Capiba & Gonzagão foi completado pelo genial bandolinista Marco César (com quatro arranjos) e pelo maestro Jarbas Maciel, além de Xisto Medeiros, que adaptou para o Quinteto a partitura orquestral dos "Quatro Maracatus".

Não é à toa que as atenções do meio musical se voltam cada vez mais para o Quinteto da Paraíba. Com o recente Brasilerança repetindo a dobradinha com Xangai de Um Abraço pra ti Pequenina (todos lançados pela Kuarup), os cinco músicos lembram a sanfona do Gonzagão, popular e requintada, sempre a serviço da melhor música do Nordeste.

Mario de Aratanha


http://www.kuarup.com.br/br/cat_produto_cada.php?idioma=port&prod=64389679

26.3.06

Meu jardim - Malu Barni

Plantei-te no jardim dos nossos ninhos
Para ver o amor brotar em flor;
Reguei todos os dias os cantinhos,
Procurei flor-botão em flor-amor.

Então, encontrei pelos meus caminhos
Flores pisoteadas por amador.
Não ouço no coração burburinhos;
Nada mais floresce, só amargor.

Ousaste estragar o meu jardim
Onde tu eras um belo jasmim,
Cortaste meu amor de qualquer jeito.

Porém, plantarei flores novamente!
Desta vez, cuidarei atentamente.
Te arrancarei com força do meu peito!

21.3.06

poesia - Edimo Ginot

poesia
é o que transpiras
e o que inspiras
ao viver

é a noite
mais longa e escura
e o mais radiante
amanhecer

é a dor
pedindo passagem
é a alma
querendo te ver

é o amor
ditando a mensagem
é um poeta
querendo entender

é a visão
de uma miragem
é a sensação
de sempre nascer

é a vida
cantando a viagem
é um poeta
querendo morrer

20.3.06

Pinto do Monteiro - Joselito Nunes

TRADIÇÕES

O Pinto que cantava de galo

Novo livro do pesquisador Joselito Nunes faz um resgate da vida e da obra de Pinto do Monteiro














Eduardo Maia

A herança européia do trovadorismo, que remonta à idade média, aclimatou-se muito bem ao sertão nordestino. Os cantadores, violeiros e repentistas fazem parte da rica tradição cultural sertaneja, marcada fortemente pela oralidade. O pesquisador Carlos Jatobá informa que a tradição da cantoria tem origem provável no século 11, em Provença, no sul da França, mas que “veio até nós, adicionada com um leve sabor mourisco, um tanto aboiado, quase islâmico”, pois teria se desenvolvido e florescido na Península Ibérica.

No Brasil, o cantador Severino Lourenço da Silva Pinto, conhecido como Pinto do Monteiro, foi um dos maiores poetas entre os seguidores dessa tradição. Especialista em improvisos e pelejas, Pinto do Monteiro, em suas andanças pelo Sertão, enfrentou muitos improvisadores e, segundo testemunhos, parece ter levado a melhor na maioria dos casos. A obediência à métrica e à rima são importantes, mas a velocidade de raciocínio, a memória e a ironia são as peças-chave para um bom pelejador.

A vida e a obra de Pinto do Monteiro fazem parte do trabalho de resgate cultural realizado pelo pesquisador Joselito Nunes e transformado em livro, recentemente, no Recife. "Pinto Velho do Monteiro – um cantador sem parelha", recolhe depoimentos, passagens biográficas, versos e pelejas do cantador nascido em Carnaubinha, uma propriedade próxima ao município de Monteiro (PB).

Com quase 100 anos de idade, no dia 28 de outubro de 1990, falecia Severino da Silva Pinto, deixando a maior parte da sua obra, devido à oralidade, somente guardada na cabeça daqueles que tiveram a sorte de escutá-lo. O livro de Joselito Nunes, que conta com ensaios de vários colaboradores, é baseado em uma extensa pesquisa, e não deixa de ser também uma homenagem e um alerta para que nomes como o de Pinto do Monteiro não se percam como versos que só foram cantados uma vez e esquecidos no tempo.

(Leia mais na edição nº 63 [março de 2006] da Revista Continente Multicultural.)















Eduardo Maia é jornalista

http://www.continentemulticultural.com.br/

17.3.06

Panorama da Poesia em Pernambuco - Heloísa Arcoverde de Morais

Heloísa Arcoverde de Morais

LUGAR DE POETA É AQUI
ONDE O MAR É UMA MONTANHA....

que na língua dos bárbaros escura
Paranambuco de todos é chamado

Bento Teixeira




http://www.continentemulticultural.com.br/revista999/images/poesia1a.jpg

A história da poesia em terras pernambucanas começa, fins do século XVI, com a PROSOPOPÉIA, de Bento Teixeira, poema épico para exaltar o governador de Pernambuco, Jorge de Albuquerque Coelho. Polêmicas à parte sobre o valor literário da obra, a PROSOPOPÉIA, publicada em Lisboa, no ano de 1601, após a morte do autor, consta como sendo o primeiro texto poético escrito no Brasil, entre 1585 e 1594. Foi a época em que o poeta residiu em Olinda.

Todos cantam sua terra....


SÉCULO XVII

Tempos de Nassau

Maurício de Nassau, o Conde, governa Pernambuco holandês entre 1637 e 1644. Ergue palácios, constrói pontes, traz para o Recife artistas e cientistas que perpetuam os tempos flamengos. Nassau permanece no imaginário dos poetas da cidade maurícia.


SÉCULO XVIII

Religiosos, mas nem tanto

Na próspera capitania do açúcar, as atividades literárias não progrediam na mesma proporção das atividades econômicas. Os conventos eram o celeiro cultural e aos frades e padres cabia a primazia das letras.

O Barroco ainda predominava, atingindo alto grau de maneirismo. Aqui em Pernambuco, temos o Frei Jaboatão (Recife, 1695 - 1763/1775) com uma poesia sacra:

Ao menino Deus nascido no Presépio:
Esse que vês, pequenino,
nessas palhas reclinado
do Padre é verbo divino,
por nosso amor humanado

E a poesia satírica e bem humorada como a do Pe. Antônio Gomes Pacheco (Itamaracá 1741):

Pergunta certa Senhora
Sem presumir mal algum,
Se um beijo, na sexta-feira,
Fará quebrar o jejum..


SÉCULO XIX

Revoluções libertárias, novos pretextos poéticos

Quem passa a vida que eu passo,
Não deve a morte temer
Com a morte não se assusta
Quem está sempre a morrer

Frei Caneca

Sopraram em Pernambuco os ideais da Revolução Francesa de 1789, deflagrados na Revolução de 1817. Sufocada, deixa as sementes da rebeldia que prosperam, de novo, em 1824, com a Confederação do Equador.

O nacionalismo revolucionário, antimonarquista, sobressai nas campanhas jornalísticas do Typhis Pernambucano (1823-1824), dirigido pelo Frei Caneca, sob a égide do Iluminismo.

Frei do Amor Divino Caneca é fuzilado em 1825, no Forte das Cinco Pontas, após a derrota da conjuração. Deixa o sentimento libertário como herança poética.

Na literatura, ainda domina o estilo neoclássico. A poesia de José da Natividade Saldanha (Jaboatão 1795 - Bogotá 1830), poeta revolucionário dessa época, revela o lado patriótico e dilui o estético.

"Ai de mim que sou assim... romântico"

A transição, em Pernambuco, entre o neoclassicismo e a nova estética do Romantismo, surge na poesia de Maciel Monteiro, o barão de Itamaracá. O poeta dos salões nasce no Recife em 1804. Político e diplomata, atua em Lisboa onde morre no ano de 1868. Seus poemas, então esparsos, foram reunidos e publicados em edição póstuma (Recife 1905) por Regueira Costa e Álvares de Carvalho. O soneto FORMOSA contém elementos românticos como a divinização da mulher:

Formosa, qual pincel em tela fina
Debuxar jamais pôde ou nunca ousara;
Formosa, qual jamais desabrochara
Na primavera rosa purpurina

Formosa, qual se a própria mão divina
Lhe alinhara o contorno e a forma rara;
Formosa, qual no céu jamais brilhara
Astro gentil, estrela peregrina

Formosa, qual se a natureza e a sorte,
Dando as mãos em seus dons, em seus lavores
Jamais soube imitar no todo ou parte;

Mulher celeste, oh! anjo de primores!
Quem pode ver-te, sem querer amar-te?
Quem pode amar-te, sem morrer de amores?!

Maciel Monteiro

O navio é negreiro

Mal de amor não tem remédio. De saudade, tristeza e tuberculose morrem os poetas ultra-românticos.

Meados do século XIX. O céu é do condor. A poesia social dessa última fase romântica se inspira em Victor Hugo. Com 16 anos, em 1864, Castro Alves chega ao Recife para os estudos de Direito. Além dos suspiros pela atriz Eugênia Câmara, o baiano empresta voz e versos à grande causa do abolicionismo. Na mesma época, vem para ficar o sergipano Tobias Barreto. Poetas rivais, Castro Alves e Tobias Barreto agitam o Teatro de Santa Isabel com embates poético-passionais.

Pertence a essa fase condoreira, Vitoriano Palhares (Recife 1840-1890), com um lirismo subjetivo e patriótico, que tem a Guerra do Paraguai como tema.


FINAL DO SÉCULO XIX

Ciência, filosofia e arte

Século dezenove! o bronze do teu vulto
Há de ser venerado, há de se impor ao culto
Dos pósteros, bem como impõe-se à escuridão
Um relâmpago, um raio, um brilho, uma explosão!

Martins Júnior (Visões de Hoje)

Em torno de 1870, desembarcaram no Recife as influências do realismo europeu, embora românticos versos inspirassem ainda (e sempre) as vocações poéticas, tênues que são os limites de um movimento literário a outro. A vida intelectual da cidade é intensa. A Faculdade de Direito é o grande centro de formação de bacharéis, vindos de todo o Nordeste. Aglutinava professores e estudantes em torno das causas abolicionistas e republicanas, com destaque para os sergipanos Sílvio Romero e Tobias Barreto que nela viriam a ensinar.

A Escola do Recife

Após a fase condoreira (1867-1870), a poesia romântica de Tobias Barreto cede espaço à oratória e à prosa científica. Será a figura central da escola que o crítico literário Sílvio Romero, um dos seus seguidores, denominará Escola do Recife, sob a égide da filosofia alemã. Irradiará a nova ordem no meio cultural do Recife com base no positivismo e no evolucionismo.

Martins Júnior (Recife 1860 - Rio 1904) assumirá o tom realista na sua poesia científica: Lateja-me, no crânio, o cérebro e, no peito, // lateja-me, fervente, o coração. Termos científicos que, no início do século XX, o paraibano Augusto dos Anjos (PB 1884-MG 1914), utilizará no seu livro Eu.. Morou no Recife e poetizou a Ponte Buarque de Macedo.

A virada do século

O ideal da impessoalidade que se contrapõe ao Romantismo e o culto pela forma ditam o verso parnasiano. A estética da arte pela arte, assimilada dos franceses Theóphile Gautier e Leconte de Lisle, atravessa os primeiros vinte anos do novo século.

O poeta pernambucano Medeiros e Albuquerque inaugura o Simbolismo no Brasil, antes de Cruz e Souza, ao lançar Pecados, em 1889.

Parnasianos do fim do século e os neoparnasianos, seus sucessores, cultuarão o gosto pelo soneto, traídos muitas vezes pelos traços românticos e até simbolistas dos temas. Eis o cenário recifense dos poetas que abrangem esse período:

Farias Neves Sobrinho, Gervásio Fioranti e Carlos Porto Carreiro publicavam na Revista Contemporânea, dirigida por França Pereira e no Almanaque de Pernambuco, de Júlio Pires.

A essa geração sucede a da Heliópolis com Teotônio Freire, Manuel Arão, Mariano Lemos, Bastos Tigre. Esdras Farias é o poeta da geração boêmia.

Destacaríamos Olegário Mariano, radicado no Rio de Janeiro e Eugênio Coimbra Júnior, jornalista com produção poética até os anos 70 do século XX.

Estes quatro séculos de panorama poético delineiam o caráter aglutinador e cosmopolita da literatura em Pernambuco, pólo cultural do Nordeste: seus poetas são também, alagoanos, baianos, cearenses, paraibanos...


SÉCULO XX

Fartos do lirismo comedido

Até início dos anos 20, com raras exceções, a produção literária, mais especificamente a poesia, restringia-se ao soneto de forma repetitiva. Evidente que este marasmo seria sacudido pelos ventos transformadores que agitavam as diversas manifestações culturais, em várias partes do mundo, sendo São Paulo, no sul do país, o pólo dessas mudanças que culminaram na Semana da Arte Moderna de 1922.

Com Gilberto Freyre à frente, consolida-se um movimento que direciona a renovação cultural para o Regionalismo em Pernambuco, gerando fatos como o 1º Congresso Regionalista do Nordeste e a conseqüente publicação do Manifesto Regionalista. Por outro lado, polemizando, Joaquim Inojosa divulga as tendências modernistas na cidade, à semelhança de São Paulo.

Quanto à renovação da poesia, cuja produção ainda continuava, na sua maior parte, presa ao Romantismo e ao Parnasianismo, coube papel de destaque à Revista do Norte, idealizada por José Maria de Albuquerque e que reunia intelectuais freqüentadores do Café Continental, na Esquina da Lafaiete, centro do Recife.

Dessa década saem poetas como Benedito Monteiro, Vicente do Rego Monteiro (também pintor) e Austro Costa. Mas é a poesia de Ascenso Ferreira, impregnada de sensualidade brejeira, de saudade dos engenhos (seu primeiro livro Catimbó foi lançado pela Revista do Norte), ao lado da obras de Joaquim Cardozo e de Manuel Bandeira, já radicado no Rio de Janeiro, que irão marcar essa época. Trio que instaurou a modernidade entre nós.

Geração 45, o retorno à medida

O lápis , o esquadro, o papel;
O desenho, o projeto, o número:
O engenheiro pensa o mundo justo,
Mundo que nenhum véu encobre

João Cabral de Melo Neto (O engenheiro)

É a geração que, em várias partes do Brasil, sucede ao furor experimental do Modernismo de 22, com suas próprias experiências na linguagem poética, de acentuada preocupação com o rigor formal e com a metalinguagem - a poesia que fala da poesia. A recusa, por exemplo, aos poemas piadas, aos versos livres, é, de certo modo, o denominador comum dessa geração, assim batizada, por Domingos Carvalho da Silva, em 1948.

Em Pernambuco, a produção poética local apresenta, também, uma temática de caráter neo-regionalista.

Situam-se, neste contexto, Mauro Mota, Carlos Moreira e Edson Regis. O alagoano Geraldino Brasil lança seu primeiro livro de poemas em 1948. Na trajetória pernambucana de sua poesia, prende-se pouco ao rigor formalístico e imprime em seus versos o tom coloquial do espetáculo da vida. Deolindo Tavares faz poesia ainda nos anos 30, mas sua obra só é publicada postumamente em 45.

Por critério cronológico, alguns ensaístas acrescentam o nome de João Cabral de Melo Neto, no entanto, sua poesia vai além dos padrões dessa geração. Considerado um dos maiores poetas da língua portuguesa, Cabral ultrapassa as fronteiras de Pernambuco e do Brasil.

Solano Trindade (Recife 1908 - Rio 1974)

Civilização branca

Lincharam um homem
entre os arranha-céus
(li num jornal)
procurei o crime do homem
o crime não estava no homem
estava na cor de sua epiderme.

(in Cantares ao meu povo)

A poesia de Solano Trindade vai do humanismo socialista à defesa dos valores afrobrasileiros, atingindo a universalidade pelo vigor da linguagem poética.

Além de Gerações

Grupo de poetas com estréia a partir dos anos 50, como é o caso de Carlos Pena Filho, Edmir Domingues e Audálio Alves.

Como divisor de águas entre essa geração e a dos poetas que irão compor a geração 65, situaríamos a poesia de César Leal, poeta e ensaísta. Segundo o crítico Eduardo Portela sobre a produção poética César Leal: o trabalho encantado da linguagem é das construções mais convincentes da nossa literatura contemporânea.

Francisco Bandeira de Mello, também, inicia nos anos 50 a sua produção poética, com destaque para os seus sonetos líricos. No início de 60, surge a poesia de Sebastião Uchoa Leite que se notabiliza, ainda, como ensaísta e, apesar de sua permanência longe do Recife, deixa, após sua morte, um vazio intelectual na cidade.

Vertiginosamente azul
Carlos Pena Filho

Poeta dos mais queridos nesta cidade "metade roubada ao mar, / metade à imaginação," onde nasceu em 1929 e morreu em 1960. O lirismo dos seus sonetos permanece na memória dos antigos e novos freqüentadores, ou não, do Bar Savoy pois é lá que

o refrão é sempre assim:
são trinta copos de chope,
são trinta homens sentados
trezentos desejos presos
trinta mil sonhos frustrados.

GERAÇÃO 65

Múltiplas margens

Tadeu Rocha foi quem a denominou. O grupo é numeroso. Seus poetas ainda estão atuantes, daí a ambigüidade de se classificar artistas por geração. Muitos começos. Todos em torno de 1965. O crítico literário César Leal lança no Suplemento Literário do Diario de Pernambuco e na revista Estudos Universitários os primeiros nomes desta geração: Jaci Bezerra, Alberto Cunha Melo e Domingos Alexandre. Esman Dias, Everardo Norões e Orley Mesquita publicam seus poemas na Clave - caderno de poesia (Tipografia Marista 1965)

Outros poetas se aglutinam. Freqüentam os bares Torre de Londres (13 de Maio) e Savoy (Guararapes) e a Livro 7. Celina de Holanda os reúne em sua casa. João Cabral é a influência maior. Pertencem, também, a essa geração: José Carlos Targino, Marcus Accioly, Arnaldo Tobias, Ângelo Monteiro, Montez Magno, Fernando Monteiro, Marco Polo, Sérgio Moacyr de Albuquerque, Tarcísio Meira César, Severino Filgueira, José Rodrigues de Paiva, Cyl Gallindo, José Mário Rodrigues, Gladstone Vieira Belo.

Incorporam-se, depois, Almir Castro Barros, Luis Carlos Duarte, Lucila Nogueira, Janice Japiassu.

ANOS 70

Movimento Armorial

Voltado para uma temática nordestina, abrangendo a literatura, a dança, a música, as artes plásticas e as artes cênicas, seu objetivo é a realização de uma arte erudita brasileira. O poeta e dramaturgo Ariano Suassuna foi o criador do Movimento.

Pertenceram ao movimento os poetas Ângelo Monteiro, Deborah Brennand e Janice Japiassu.

A palavra da mulher

O final do século XIX já revelava uma atuação de poetisas pernambucanas escrevendo em jornais e revistas literárias que circulavam entre mulheres de todo o Brasil. Ao contrário dos jornais masculinos que as associavam à maternidade e ao magistério, abordavam temas políticos, contra a escravidão e a favor da República e em seus poemas falavam do amor, do desejo, e da vontade de escrever. São elas:

Francisca Izidora, Thargélia Barreto de Menezes, Ana Nogueira, Maria Heráclia e Joana Tiburtina Lins.

O Recife apresenta uma marcante presença feminina na poesia contemporânea..

Em 1979, a poeta portuguesa, naturalizada pernambucana, Maria de Lourdes Hortas, reuniu em livro sob o título Palavra de mulher (poesia feminina brasileira contemporânea) poetas mulheres de todo o Brasil, destacando as de Pernambuco: Tereza Halliday, Celina de Holanda, Deborah Brennand, Maria da Paz Ribeiro Dantas, Tereza Tenório, Zila Mamede, além da própria Maria de Lourdes Hortas e Lucila Nogueira.

Acrescentaríamos a esta lista de mulheres uma nova geração de poetas: Dione Barreto, Fátima Ferreira, Vernaide Vanderlei, Andrea Borba, Miriam Brindeiro, Clara Angélica, Cida Pedrosa, Lea Lopes, Júlia Lemos e Danielle Romani, Silvana Menezes, Aline Andrade, Cecília Villanova, entre tantas outras.

Resistir era preciso

Os anos 70 dão continuidade àquela poesia da década de 60, fiel ao lirismo bandeiriano ou herdeira de Cabral.

Entretanto, uma nova postura de fazer poesia como alternativa ao lirismo comedido ou como resistência aos poderes dominantes (golpe de 64) ocorre, também, em Pernambuco, a exemplo de outros pontos do país.

Dos meados da década de 70 ao início dos anos 80, Recife e Olinda são agitados por diversas manifestações poéticas: recitais, movimentos alternativos, caminhadas poéticas. É a poesia em bares, praças e ruas.

Convive-se com uma poesia que vai do texto bem comportado à vertente dos demolidores da linguagem, como um Jomard Muniz de Britto, professor universitário, cineasta, poeta e ensaísta.
Para o crítico paraibano Hildeberto Barbosa Filho em seu ensaio sobre a Terceira Aquarela do Brasil: uma escritura tropicalista: Jomard Muniz de Britto opera em múltiplos níveis: o redimensionamento histórico (Terceira Aquarela do Brasil); a desmistificação pedagógica (educação pela marreta); o estamento cultural pelo avesso (procura-se vivo ou morto); a perquirição política do momento (PT situações) e a leitura reiterativa do Nordeste (nos abismos da pernambucália).

Ligados, ainda, a esta vertente de desconstrução / construção da linguagem estão os poetas Pedro Américo e Wilson Araújo de Souza que, em parceria publicaram o folder Pedro Américo/Wilson Araújo.

Encontramos exemplo do poeta individual, andarilho, em Juareiz Correya. À época, Juareiz costumava viajar pelo interior abrindo espaços como divulgador de sua poesia. Publicou Americanto.

Poesia Visual

Segundo depoimento de Paulo Bruscky, o poema Processo surgiu em dezembro de 1967, simultaneamente em Natal e no Rio e teve não só grande repercussão como adesão de artistas e poetas pernambucanos. No período de 1968 a 1972 integraram este movimento: José Cláudio, Ivan Maurício, Arnaldo Tobias, Paulo Bruscky, Jobson Figueiredo e Alberto Cunha Melo.

Vale ressaltar a colaboração do Caderno C do Suplemento Cultural do Jornal do Commercio dirigido inicialmente por Celso Marconi e depois por Alberto Cunha Melo, que publicaram não só poetas locais, como também textos teóricos sobre o Poema Processo.

Alguns fatos são pioneiros, como o Livro do carimbo de José Cláudio, a publicação coletiva de Metamorfome de Ivan Maurício (livro envelope) com trabalho de José Cláudio, Zezo, Daura, Humberto.

A partir de 1973, eclodem no Recife movimentos de Poesia Visual e Experimental, além da Arte Correio ou Arte Postal, sendo Paulo Bruscky iniciador deste movimento pioneiro no país. Entre os participantes mais ativos estão Jomard Muniz de Brito, Daniel Santiago, Paulo Bruscky, Silvio Hansen, Arnaldo Tobias, Wilson Araújo, Pedro Américo, Ivan Maurício, Ypiranga Filho, Tarcísio Silva, Marconi Notaro, Maurício Silva, Leonhard Frank Duch e Alexandre Nóbrega. Várias publicações foram feitas neste período: revista Punho 1973; Envelope Multipostais 1978; Revista A Gazeta 1977; Telegramarte; Envelope 1978; Revista Classificada 1979 e Marca da Fantasia 1984.

ANOS 80

A poesia independente

Em 1981, começou no Recife o Movimento dos Escritores Independentes. Caracterizou-se pela promoção de recitais de poesia nas ruas: na calçada em frente à Livro 7, no Bar Casarão, na Rua Sete de Setembro, no Beco da Fome e na Praça do Sebo. Esse tipo de poesia começou a ter peso na imprensa e na intelectualidade pelo público que atraía. Marcelo Mário de Melo, um dos participantes, nos conta que nas manhãs dos sábados toda a freguesia das Lojas Americanas (próxima à Livro 7) se deslocava para ouvir e ver os poetas.

Marcelo ressalta que nem sempre havia nessa poesia um conteúdo crítico, político ou social. Se um poeta queria apresentar o seu poema, ter seu público, integrava-se a esse grupo para tal.

Participavam os poetas: Marcelo Mário de Melo, Léa Lopes, Azimar Rocha, Don Antônio, Geni Vieira, Wilson Freire, Jane Faria, Caesar Sobreira, Eduardo Martins, Cida Pedrosa, Francisco Espinhara, Samuel Santos, Fátima Ferreira, Chico Sá, Hector Pellizi, Manoel Constantino, Fred Caminha, Lenilda Andrade, Dione Barreto, Luis Carlos Monteiro.

Recitais ainda ressoam nos eventos de hoje. Outros poetas aderem e formam novos grupos com performances nos acontecimentos da cidade.

Vem da década de 80 a atuação de dois novos poetas, revelados, também por César Leal: Weydson de Barros Leal e Mário Hélio.

Os poetas da Rua do Imperador

O grupo "Os poetas da Rua do Imperador" foi uma invenção do poeta Vital Corrêa de Araújo, reunindo poetas que transitavam ou trabalhavam por aquela rua, entre eles, Iran Gama e Edgar Powell.

ANOS 90

A lição de poesia: marginal ou acadêmica?

Fazer versos, isso se aprende em academias? Ganha o Recife a sua geração 95? Existe uma produção poética que já chega madura, respaldada em erudição e embasamento teórico? Ou a poesia anda solta nas ruas, nas praças, nos bares? tão livre quanto seus poetas marginais? O final da década traz a poesia de Alvacir Raposo com a publicação d'O discurso do rei.

O ano 2000 inicia o milênio com Eduardo Diógenes lançando o livro A Barlavento. Jairo Lima surpreende com o Livro das Árias e das horas-pequeno livro das nuvens.

Da lama ao caos

Chico Science dá o mote e o compasso aos exercícios de linguagem dos mais jovens praticantes, com direito a se legitimar na arte da poesia. O manguebeat bate forte nos ritmos, nos versos e nas letras de música.

Novo milênio

Linguagens plurais. Multimeios. Que vanguardas? Quais rupturas ou neoconservadorismos? "poesia@com.pe"? Quem navegar, neste site, verá!

Desenhando o mapa poético da cidade, a Prefeitura do Recife vem editando as coletâneas Marginal Recife, Estação Recife e Invenção Recife, que se tornaram fonte de referência ao contemplar as várias dicções de seus poetas.

O PANORAMA VISTO DOS ARRECIFES

Esta abordagem não é um dicionário. Uma rica produção poética que, por sua qualidade, projeta Pernambuco no cenário literário nacional merece uma história revisitada. Precisa de revistas, suplementos literários e outros espaços, como este site, para revelar os novos e instigar os que permanece.

Foram registrados, em poucas páginas, alguns aspectos da convivência lírica de Pernambuco com seus poetas. Eles continuam aqui onde o mar é uma montanha, e têm o sentimento do mundo. As temáticas e a ordem cronológica não fazem a poesia e sim os poetas que, por valor intrisecamente literário, reacendem a cinza das horas, falam somente com o que falam, com as mesmas vinte palavras e pintam de azul os seus sapatos por não poder de azul pintar as ruas.

Pesquisa e texto Heloísa Arcoverde de Morais

Mestra em Literatura Brasileira pela UFPB

Dissertação Escola: Poesia? Presente?

16.3.06

Invisibilidade e Visibilidade públicas – cara e coroa da mesma medalha capitalista?

Recentemente travamos contato, numa sua especificidade, com um conceito curioso, mesmo instigante, apresentado por um psicólogo da Universidade de São Paulo: o da "Invisibilidade Pública". Em sua pesquisa de campo "Garis – um estudo de psicologia sobre invisibilidade pública", em que trabalhou por 5 anos como um deles - e entre eles – no campus universitário, durante meio turno, de um a três dias por semana, e precisamente na tese de mestrado apresentada em novembro de 2002, conforme relatado sucintamente no Boletim n. 1146 da Agência USP de Notícias, o psicólogo Fernando Braga da Costa assinala como constatação central, pelo que depreendi, o seguinte: que aqueles trabalhadores não eram reconhecidos como pessoas no exercício da humilde função de coletores de lixo. Não se lhes davam um tratamento digno de identificação humana, destinando-lhes em vez disso o lugar referencial de coisas. Coisas como as ferramentas auxiliares com as quais exerciam suas tarefas - extrapolação minha. Daí a conclusão pela "Invisibilidade Pública". O pesquisador situa o fenômeno como resultado, basicamente, da distância e diferença existentes entre as pessoas decorrentes da estratificação em classes e da divisão social do trabalho colocadas à nossa sociedade.

Pois bem. Declarado o conceito, o fundamental de sua materialidade in casu e do seu alegado substrato cultural, gostaria de passar, a largo de originalidade, a algumas considerações axiológicas – de valor – no interesse de relacionar os fenômenos, lato sensu, da Invisibilidade, Visibilidade públicas e categorias que chamaria, grosso modo, de "afins" - essas últimas tratadas posteriormente -, como manifestações congêneres - com ênfase no caráter meio que residual de uma e eminentemente seminal de outra - mas "correlatas" -, do mesmo brutal processo de alienação a que nos achamos submetidos e reduzidos na apropriação do significado de ser (agente) social no seio do fazer em sociedade, ou no do fazer vivendo em sociedade de Modo de Produção Capitalista. Compreensão já clássica, talvez tornada mais interessante com o aporte de uma das suas mais sombrias manifestações: A In(Visi)bilidade, alertada pelo estudo. Vejamos os argumentos.

Sabemos que aquelas duas categorias estruturais, a estratificação e a divisão do trabalho, nos foram e continuam sendo impostas socialmente, imbricadas e precisamente como o são, pela tutela da sempre reciclada ideologia socio-econômica e cultural capitalista posta ao nosso Estado, e objetivamente por seu modo de produção de riquezas, que instrumentaliza essa ideologia na realização concreta de tais estruturas. Também sabemos que no sistema de idéias-símbolos capitalista, o lugar do valor-trabalho é o da clássica dupla mistificação: infra e superestrutural e intercomplementares. Os labores são identificados e ponderados mediante a posição relativa que lhes é atribuída diante dos status das várias produções materiais e imateriais, "compulsoriamente" catalogados. E mistificação superestrutural porque, como nos alertaram alguns investigadores marxistas, no sutil exercício de embasamento daquelas posições não se parte exatamente do ponto de vista do que poderíamos chamar de um real valor objetivo - utilitário, de referência para o trabalho humano.

Esse referencial, posto como hierarquicamente superior e mais geral do que o do referente – o próprio trabalho -, consideraria algo como as traduzíveis - entenda-se, dessa lógica (neomarxista), materializáveis – daí, grosso modo, o discutível Materialismo Histórico -, contribuição e importância intrínsecas de cada tarefa, e sinteticamente do realizar como um todo, para os necessários bem-estar, equilíbrio e saúde – prosperidade - do conjunto do organismo social no qual se desenvolve a produção. E ainda para a indispensável manutenção desse estado ideal para a sociedade no continuum da sua existência.

No nosso regime, inobstante, esse paradigma é preterido por um, desobjetivado – tampouco subjetivado, que diga respeito, fundamentalmente, à melhor e mais eficiente forma de reinstrumentalizar (porque são o eco da nossa consciência) e enriquecer - portanto aprofundar ainda mais - o indispensável mecanismo de alienação capitalista do, e no trabalho, que, como sabemos, é perpetrado por esse sistema ao apropriar-se dele, trabalho, e esvaziá-lo – violentá-lo -, tanto arbitrária e direta (através da sua "divisão" - exclusiva), como subliminarmente (veja-se a gama de pseudo-trabalhos que no mais das vezes internalizamos mentalmente como legítimos e necessários).

Essa especial e superior alienação (pois o mecanismo se dá numa gradação ascendente em objeto e complexidade) - esse condão ideológico - é exercida do e pelo lugar então dos mais estratégicos e privilegiados para o seu sucesso: o do nosso construto mental do que venha a significar, para nós mesmos e para os outros, o valor trabalho.

Constatamos - para minimamente exemplificar, porque não há espaço aqui para esmiuçar esse esvaziamento – , não só por isso, é certo, mas principalmente, a ocorrência de fenômenos absurdos como certas percepções simbólicas e objetivas que involuntariamente somos levados a ter como insignificantes acerca da dimensão de fazeres humano-sociais imprescindíveis, desde a pesquisa séria de ponta que se desenvolve pela cura do câncer ou de outras doenças em todo o mundo, à própria coleta higiênica e profilática de toneladas e toneladas de lixo das nossas principais metrópoles, fornecimento e manutenção de água e esgoto, fornecimento e manutenção de luz elétrica, para citar alguns, ante a histeria psíquico-comportamental quase que generalizada frente ao métier do(a) novo(a) dançarino(a) do novo remelexo da moda.

Controvérsias à parte (ou colocadas), até porque sabemos que o Socialismo Real mostrou-se na prática consideravelmente distante da utopia comunista – depois de vários muros de berlin abaixo; o Capitalismo relativamente bem sucedido no centro do sistema e resistente às suas antevistas crises orgânicas e cíclicas – muitos sombrios consensos de washington depois - (que os Embalos de Sábado à Noite continuam, o sonho não acabou. Que é a Psicanálise um robusto – e resistente - saco de pancadas. E que o mundo... vasto mundo, o complexo mundaréu em tempos de globalização predatória está sendo irônico conosco, para dizer o mínimo. Em que os países do Leste Europeu pleiteiam um lugar, e patente, na OTAN. A Rússia, China e outros camaradas se embriaguam com a "Coca Cola" do Décio Pgnatari, e os "donos do dinheiro" cogitam, mesmo que discretamente e de faz de conta, uma módica Terceira Via) -, fiz questão de situar aqueles, digamos, conceitos-chaves, espero que ao menos razoavelmente bem, porque gostaria de justapor à apresentação da Invisibilidade Pública, do ilustre psicólogo e do seu notável estudo, a também conhecida "Visibilidade Pública", mas precisamente da seguinte forma: como a co-face da Invisibilidade. Unha e carne do mesmo clone humano que a mente prodígio do bicho-papão-de-petróleo tenta re-humanizar à base de Gatorad, terapia genética e computação gráfica. Frankstein, de novo, e a Prometida? Quem seria quem! Tudo, enfim, por (causa do) dinheiro, ou pela falta dele?

Uma tal Visibilidade Pública também no contexto da alienação do homem e do trabalho no modo de produção e pensamento capitalistas, com todas as suas complicações e seus desdobramentos. Capitalismo de tantas "revoluções" tecnológicas, principalmente as da (des)informacão. Capitalismo da anti-lógica do consumo na realização espírito-material humana.

Isto posto, caberia agora, não nos furtando à curiosidade pueril e talvez por necessidade epistemológica, a antecipação da seguinte pergunta: seria a Visibilidade Pública tão desumanizante, tão reificante e vazia, a "coroa" da mesma medalha mercadológica em que a "cara", e sua irmã genética, a Invisibilidade, faz com que os garis do campus universitário do citado estudo e tantos outros garis e correlatos, mágica e supostamente se incorporem à natureza objetual das suas pás, vassouras, camburões, lixeiras e lixos? A resposta não é fácil, principalmente porque para chegarmos a ela penso que teríamos de situar, ilustrar e compreender melhor a Visibilidade e a Invisibilidade Públicas nos seus universos representativos característicos, e lançar mão de dois paradigmas correspondentes, alternativos e auxiliares, que eu chamaria, apenas por necessidade momentâneo-metodológica, e sem qualquer rigor terminológico, somente para substantivar as idéias, de: "Pessoalização Pública" e "Coletivização Individual". Falarei de todas essas in(visi)bilidades nas suas manifestações categóricas. Chamo de categórico aquilo que as define e as assinala na sua máxima essência e portanto máximo significado e possibilidades. Infelizmente não deixa de ser uma razoável simplificação, mas esse tratamento é necessário porque existem várias posições intermediárias ocupadas por cada uma daquelas in(visi)bilidades nos mais diversos contextos em que se apresentam, diante do espectro possível de intensidade. Provavelmente nos perderíamos em objetividade e rigor se intentássemos persegui-los, como também há combinações entre elas que ora podem acentuar o característico de uma, ora o de outra, ainda mais complicadoras de um esquadrinhamento, se é que tal existe, completo. As constatações e consequente classificação das não-categóricas, creio que por dedução e extensão, ficarão a critério de cada observador, certamente como uma espécie de corolário dos aspectos essenciais das modalidades de referência. Faz-se mister, portanto e finalmente, o entendimento e formatação claros dessas premissas, as categóricas. Senão, vejamos:

O Invisível público categórico é de fato o tipo como a mosca do cocô do cavalo do bandido, como diria um amigo meu, em termos do seu status social. Um nada, de posição tão insignificante mesmo que não consegue se enxergar ou se situar sequer no universo da Coletivização Individual. Destituído desde o berço, evidentemente, de bens e valores (entendam-se as expressões nas suas máximas abrangências) apropriativos que pudessem eventualmente mediar a sua matrícula regular nas escolas da Visibilidade Pública e eventual ascensão a esta. Esvaziado, por legado, de conteúdo histórico-pessoal que pudesse alçá-lo, também em tempo, à categoria da Pessoalização Pública. Uma pedra que eventualmente pode estar no nosso caminho, e que ao primeiro sinal visível, sem trocadilho, nos faz mudar de calçada para não toparmos com ela. O Invisível público percebe-se dessa forma, como atesta o estudo comentado, e reage como pode a essa realidade excludente, creio que da maneira como qualquer um de nós reagiria – criando seu próprio mundo, sua escala de valores marginal, contra-atacando com sua linguagem subposicionada. Não está dentro do propósito deste ensaio aprofundar essa análise, densa e difícil, que comportaria considerações específicas e separadas.

O Visível público - tratado aqui também o categórico - aquele que se situa no topo da escala representativa dos valores dominantes-desviantes. O "the best" na sua área de atividade e significação, o exemplo maior de sucesso e realização pessoais - pelo que só se enxerga como tal, Visível, e não cogita pertencer a outras categorias, como a da Individuação Pública e a Coletiva. Isso simplesmente porque, provavelmente, não tenha tido oportunidade de conhecê-las, e portanto credencial para envergá-las, ou se, em caso afirmativo, porque o auto-deslumbramento e o gozo alienados do consumo (entenda-se a expressão na sua máxima abrangência) foram/são tão representativos que o tornam/tornaram amnésico e insensível para tal. Comentado, festejado, reverenciado, amado e odiado. Respeitado. Fala-se bem ou mal dele, mas fala-se, como diz o clichê. Estaria portando na condição supra-humana, não mais-privilegiada, de coisa também. Transcenderia às avessas a sua dimensão pessoal, da mesma forma reduzido porque situado no panteão dos frágeis e virtuais objetos modelares da ética-estética capitalista-consumista. Frágeis porque formados, ou melhor, malformados, daquela perspectiva ideal intrinsecamente falha e lacunosa dos significados representativos das construções materiais e espirituais no seio do universo do pensamento dominante. Virtuais porque não têm existência externa representativa autônoma, e sim enquanto perduram os efeitos embotadores e restritivos na consciência que não tentou ou conseguiu guiar-se à condicão minimamente crítica de re-situá-lo na sua existência real e substantiva para a, ideal?, conveniência social. Troquemos em miúdos:

(continua em breve)

Lucas Tenório

15.3.06

Sobre um Suposto Direito de Mentir por Amor à Humanidade

Penso, salvo melhor juízo e no mister de uma modesta e rápida reflexão, que o entendimento da verdade, em si mesma e como valor puro ou como atributo da experiência relacional, deva mesmo passar pelo domínio da especulação e crítica filosóficas clássicas, como todas e quaisquer outras grandes categorias experienciais de indagação do pensamento humano, quero dizer, vincada, ou pelo traço do puramente ontológico – metafísico e estético, ou axio-ontológico – racional, empírico e moral.

Podemos nos valer introdutoriamente a esse respeito, e ilustrativamente, da colocação de uma curiosa e propedêutica questão prática: na natureza, entre os seres ininteligentes, e na natureza bruta, haveria espaço para a manifestação da inverdade ou mentira? Ou mais: seria lícito, discursivamente falando, ponderar juízo de valor na senda pura e simples do arranjo biológico-natural e dos fenômenos físico-químicos gerais?

O que quero questionar, mais especificamente, é: a camuflagem, o mimetismo e a dissimulação de algumas espécies animais, ao ludibriarem as respectivas presas, revelariam um ato, uma composição de mentira? As ilusões de óptica, por outro exemplo e de outra sorte, seriam uma inverdade promovida pela natureza inter-relacional objeto-sujeito, objeto-percepção? A natureza mente?

Bom, creio que nos deparamos, já neste momento, com a questão que virá a reger todo o restante dessa nossa discussão, qual seja: a suposta relação, ou não, entre Verdade x Direito (Moral); Verdade, isso mesmo (com maíscula), à frente, como categoria filosófica geral e transcendental, e Direito, em seguida e abaixo, como a Doutrina, também universal, do equilíbrio epistemológico das ações.

Como sabemos, retomando o parágrafo penúltino supra, os animais ininteligentes, no exercício do seu convívio em e entre espécies, não são albergados por qualquer direito, e sim pela regra da natureza de seus instintos, características biológicas e pulsões. Isso lhes confere a prerrogativa, ancestral e irrefutável, de acesso inexpugnável aos mecanismos atávicos de sobrevivência no processo darwinista da competição e da seleção natural, quase que da mesma forma que o Sol tem resguardado o seu “direito natural” de se pôr e de nascer a cada doze horas. Haveria nisso, sim, uma espécie de garantia, de “direito”, e “natural”, dos animais em “mentirem” para sobreviver. Veja-se, inclusive, que essa suposta mentira, como sabemos, é involuntária e irracional, algo parecido com o que acontece com um inválido psiquiátrico que não esteja no domínio das suas faculdades mentais e emocionais. Nada obstante e de outra sorte, o que diria o gafanhoto que foi devorado pelo louva-a-deus, este camuflado em folha? Estaria o gafanhoto de acordo com esse “jogo” da sobrevivência, até porque presumivelmente faria o mesmo nessa seara? E entre aqueles que não se camuflam, como o cervo, por exemplo, como se encararia a agressão dissimulada de seus predadores? A natureza compensaria-os por essa não-dissimulação com outras habilidades físicas e cognitivas? Seriam eles, por essa ausência de “mentira”, “superiores” aos demais? Essa “mentira”, enfim, poderia ser considerada algo como a arma dos mais espertos, ou na lógica da vida natural não haveria tal prevalência e sim um equilíbrio lógico, sábio e sublime entre vida e morte? Particularmente no mundo dos humanos, em que a cultura quebra essa lógica do natural, há espaço para esse equilíbrio, que viria a assimilar a mentira como algo que fizesse parte do processo de civilização, ou é ela um mal que deve ser extirpado incondicionalmente e de qualquer forma, ou, ainda, numa escala intermediária entre esses extremos, tolerada dentro de certos limites e em determinadas situações especiais? Penso, em suma, que a Civilização Humana sufragou esta última alternativa.

Enquanto pré-históricos, certamente dissimulávamos, como os outros animais, na luta pela sobrevivência. Mas isto não era mentira, como acabamos de observar do exposto. Restaria portanto a conclusão de que só faz sentido estabelecer o juízo de valor entre mentira e verdade no seio da Cultura, e que por conseguinte também seríamos obrigados a reconhecer que, pela própria natureza de Cultura - e em sendo os conceitos de verdade e mentira éticos e morais -, as diversas culturas, por mais esquisito que possa parecer, teriam percepções diferenciadas do que seria verdade e mentira.

Poderíamos evocar a metafísica de Platão, a maiêutica socrática, para estabelecermos um paradigma de Verdade, aparentado à idéia do Belo e da Justiça, elencados em “A República” ou em “O Banquete”, ou ainda valermo-nos do “Fédon”, que descreve um Sócrates que prefere beber cicuta a desobedecer ao Estado, coisa que romperia com toda a sua trajetória ao lado da sua verdade política, que era o caminho em direção ao Bem e ao Belo, modelo que asseverava que só os ignorantes praticavam o mal, ou, no nosso particular, mentiam.

Poderíamos também, nessa linha, lançar mão de Aristóteles, Descartes e Spinoza, mas é sobretudo nas filosofias morais, que incorporam o empírico e o prático ao racional, em que encontramos respostas mais contundentes para as questões de fundo que levam em conta a controvertida categoria filosófica verdade, e valendo-nos do magistério de alguns, como Rousseau, Kant, ou Karl Marx, entre outros.

Pelo Contrato Social, abrimos mão de nossa liberdade ilimitada para passarmos a obedecer a um código moral e jurídico que nos garantiria a propriedade, a vida, a liberdade segura, a família. Para isso, fez-se necessária a renúncia à mentira natural para a aceitação das “verdades coletivas”, cuja principal delas, já observada, esteve na base de todo o contrato: a renúncia às liberdades naturais plenas para a adoção de uma liberdade artificial, condicionada e segura, tutelada pelo Estado. A pergunta, com efeito, que cabe a essa altura é a seguinte: uma mentira coletiva, patrocinada pelo Estado, teria o poder de suplantar a verdade? O Estado porventura poderia mentir, e aí retomamos a idéia contida no título do texto, em prol do bem comum? Seria possível, nesse sistema, falar-se também de mentiras individuais sem que todo o edifício normativo desmorone? Ou é exatamente o contrário, nenhuma sociedade sobreviveria se adotássemos a verdade como princípio inarredável? Estamos, como se pode perceber, no campo do Relativismo Moral.

Kant afirmava, em outras palavras, que deveríamos fazer ao outro o que esperamos que esse outro nos faça; em sendo assim, nenhuma mentira encontraria guarida em nossas vidas, pois ao alçar esse princípio a uma espécie de lei universal - e em situação de normalidade psíquica, e como queremos sempre saber a verdade (mesmo na alienação, a matéria alienante pode ser considerada uma verdade segunda – falaremos disso mais adiante), diríamos sempre a verdade para obtê-la como contrapartida. Creio que de fato não haja, nessa linha de raciocínio, algo como a concepção de direito à verdade, porquanto a verdade estaria, assim também entendo, acima do próprio Direito, e seria ela mesma o principal fundamento dele. O relativismo moral, que nos diz que podemos despistar um amigo que nos convidara a um jantar em sua casa, dizendo que tivemos uma forte dor de dente, não nos puniria por ter o nosso amigo direito subjetivo à verdade; o que nos pune, ora concreta ora abstratamente, é a quebra do contrato que pode levar esse amigo a fazer o mesmo conosco, e daí a entrada num ciclo de inverdade que pode ter consequências graves. Há o ditado popular que diz: quem rouba um tostão rouba um milhão; no âmbito do relativismo moral, também não é tão importante a materialidade em si, mesmo que a maioria das pessoas pense o contrário. Não importa que seja uma pequena mentirinha, porque o que se quebra, como se disse, é uma rede de expectativas, até mesmo consigo mesmo, que rege todo um conjunto de valores de sociedade e de civilização.

Então, afinal de contas, o que estaria havendo com a sociedade humana? Perdemos, ou nunca tivemos, esses tais valores superiores de vida em coletividade, que são alicerçados na opção inquestionável pela verdade, e sendo a verdade, como Rousseau e Kant, entre outros, assinalaram, o fio condutor do Direito Universal? Infelizmente, creio que, se não os perdemos e se em parte os tivemos, algo de bastante esquisito está acontecendo a esse respeito na civilização contemporânea.

Marx denunciou a mais valia capitalista, e considerou-a “imoral”, não só por ser uma subtração indevida ao produto do trabalho, mas por calcar-se numa operação de mistificação ideológica, de engodo perpetrado contra o trabalhador. A mais valia foi a grande mentira que alavancou o progresso científico e tecnológico modernos, a grande causa de desigualdade, miséria, fome e pobreza, mas também um móvel, no Capitalismo, de desenvolvimento e riqueza. Novamente nos deparamos com o relativismo moral.

Sartre e outros existencialistas, e muitos outros pensadores de diversas outras correntes, diante do reconhecimento definitivo da derrocada do projeto de felicidade iluminista, depois de duas guerras mundiais e tantos outros percalços humanos, professaram um ceticismo quanto às potencialidades humanas em realizar a paz abrangente, e o bem-estar e desenvolvimento e igualdade sociais. Pergunta-se: será que isso não significou, ao longo do balanço contemporâneo da História, seja ela de base materialista ou não, o reconhecimento de que o ser humano sempre se desvencilhou da verdade? Será que ainda trazemos no nosso cérebro, bem gravadas, as lições de dissimulação registradas nas épocas pré-históricas, e que nos foram utilíssimas para a sobrevivência passada e portanto para nossa permanência atual no mundo? Será que a Filosofia do Direito, ou mesmo a Filosofia Moral, não dão conta do disciplinamento ou esquadrinhamento da vida competitiva, desigual, desumana e predatória que de certo modo e em certa medida levamos, e que nos lega hoje algo como a tão famigerada “selva de pedra”, em certo sentido muito parecida com a nossa selva ancestral?

Tenho colocado muitas interrogações ao longo deste texto, não à toa, mas porque considero essa investigação acerca do valor superior e filosófico da verdade, frente à mentira, algo, no mínimo, extremamente controverso e híbrido. Se por um lado vimos que a mentira, de uma forma ou de outra, mais cedo ou mais tarde, é o liame da debacle geral, por outro pergunta-se: quem não mentiria, a um particular ou mesmo ao Estado ou a qualquer instituição civil, para salvar um filho da morte? Ou um pai, irmão, amigo e até um animal de estimação, e sem sofrer, em muitos casos, qualquer objeção ou retaliação? Outra interrogação: será que da mesma forma que o “povo” de Jerusalém, de 2.000 anos atrás, crucificou o homem que disse ser o portador da Verdade, o “povo” que matou Sócrates, um homem que teve a coragem, segundo se registra, de dizer uma das mais intrigantes verdades da humanidade: não sei!, o “povo” que matou Giordano Bruno, enfim, será que nós, humanidade, simplesmente pelas razões cuja investigação demandaria um extenso trabalho à parte ainda não estamos preparados para um regime de convivência que coloque o compromisso com a verdade como valor “verdadeiramente” superior e inquestionável? Enfim, e aí a Psicologia Social nos ajudaria, é possível viver hoje em dia dizendo-se exclusivamente a verdade?

A propaganda atualmente nos engana de forma sistemática, com mecanismos aperfeiçoados de estimulação e sedução, principalmente psicanalíticos. Fazem-nos crer, por exemplo, que “a boa” (cerveja) nos leva ao prazer e ao bem-estar máximos, e o que é pior, essa propaganda não se restringe à esfera privada, mas, como é sabido, há muito vem sendo usada pelos Estados, às vezes nos seus mais escusos e sombrios propósitos. A Política tem-se transformado na arte do engano, infelizmente. Nesse cenário, aquela pequena mentirinha como a do pneu que furou a caminho do trabalho começa a parecer tola e pueril, diante de um quadro moral que abona a inverdade como estratégia de convencimento. O que fazer? Acho que a saída estaria na refundação da sociedade em novos valores éticos; fazê-la acreditar que de fato vale a pena falar a verdade, para que se crie uma aura e uma corrente de austeridade e honestidade ressignificantes, livrada a questão da dicotomia redutora em que geralmente se a vê. Para isso, e perdoem-me o lugar comum retórico, não podemos continuar pensando as pessoas como mercadorias, e as relações humanas como atividades e subprodutos do mercado; o Capitalismo precisa ser revisto, com a máxima urgência. Enquanto isso, sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade!? Creio que a escolha seja sua. Nossa.

Lucas Tenório

9.3.06

Olaria

Da visita, à porta de entrada
um alpendre espreita
o que a colheita requentava

Na vasilha e forno
mingau de arroz
logo depois
adorno e torno

De um indivíduo maleado
pelo prosaico
do facão

E no prego uma parede
um alçapão
de rede

A nos dizer da entrada
ferro e tijolo
e de um monjolo
de água parada

Esquadrinhado o aposento:
dedo, alicate e vagina

E um arremedo de infante:
quase sem medo
edulcorante
de sacarina

Nem sequer chora
contorna e ora
se espreme e coça
enquanto cora

A carne escura.

Urina, salga, apura
o cozimento.
Pedra e cimento
arquitetura.

Lucas Tenório

7.3.06

A ostra e o vento

O vento traz no peso
repuxada na vaga
em arco espoletada
a ogiva de seu vezo

Liame granulado
em braço ambivalente
pavio impubescente
dum pendular petardo

Que ora leva o vento
ao átrio do abismo
e leva a pedra ao sismo
o ventre ao movimento

O vento cai vazio
de areia quando reto
maturo e de arquiteto
é redondo no cio

Redondo o vento vela
a todo sedimento
a crosta e a caravela
são excrementos de vento

Carcaças correlatas
ao mais suave aroma
lascivo o vento doma
matérias putrefatas

Do gozo a ostra exala
o sal do feromônio
caldeado o hormônio
que o vento traz na gala

E prolifera o coito
em profusão de esperma
berçário, gesta, intróito
e gênese de terra

E o mar vira sertão
num barro encarquilhado
e os rios e alagados
evadem-se do chão

Na fenda, a ostra está
prenhe do galeão
guardada em ovulação
a vertente de um mar

Num corpo desertor
costela de calcário
coroa, escapulário
e mãos de pescador.

Lucas Tenório

5.3.06

Paradoxo vital - Herculano Alencar

A vida, esta cruel insanidade,
um trago emético da morte,
que ao destilar a embriaguez da sorte,
faz-se um excremento da verdade.

A verdade é, da mentira, um feto.
Um dos filhos bastardos da moral
nascido de um parto natural
e educado sob o mesmo teto.

A vida é a morte em movimento;
Uma beleza tosca e fascinante;
Sonho e pesadelo dum momento;

Uma Paixão letal, escravizante,
do amor carnal, que açoita o sofrimento,
e nasce, e falece a todo instante.