30.9.05

Recife













http://www.ac-nantes.fr:8080/peda/disc/histgeo/outice/multim/recifec.htm

Recife. E Recife quase sempre
ou quase não foi lauda num poema
Recife na nuança da eritema
que em rubro lhe esmaiava o transparente.

Recife, ou Recife, quase nada
e quase não foi nada, quase nunca
Recife quase tudo que caduca
na fala que se fala alienada.

Recife, do Recife, quase tudo
Que o brado fez embriagado e ousado
Recife, quase tudo, mas um pouco
do grito estertorado, quase mudo.

Recife, de insídias em seus planos
Recife, publicano tão prosaico
Um grito de profeta americano
Um gesto antecipadamente laico.

Recife, do teu sangue o rubro veio
Não és cidade, és universo alheio
Recife, te sondar no indiferente
É te encontrar intruso no meio seio.

Lucas Tenório

São Paulo













http://www.livingcovenant.com/PhotoSection/Brazil%202004%20Photos.htm

São Paulo,
Eu queria te ver
No meu rosto já não há
Os teus traços vis-à-vis.

São Paulo traz-me aqui
O mentor do Tietê.
A placidez daquele mar
De concreto calculado.

São Paulo desbravado
Angulado em quem te quis.
Os teus prédios monumentos
Os sacramentos guaranis.

São Paulo entrincheirado
Nas modernas conjecturas.
São Paulo as iluminuras
Dos vitrais maquinofaturados.

São Paulo tens mesquitas?
São Paulo sinagogas.
Tuas palavras-igrejas
Os urbanitas de Rita.

São Paulo tens em voga
Os meus credos de cidade.
São Paulo latinidade
Ascendente em lua nova.

Lucas Tenório

In Cidades Amadas, Os Urbanitas
http://www.aguaforte.com/antropologia/lucastenoriosaopaulo.html

29.9.05

Marcus Accioly

Homero põe as mãos na América

"Latinomérica", do pernambucano Marcus Accioly, evoca a literatura do continente














SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA - Folha de S. Paulo

Em "A Tempestade" (1611), Shakespeare fala de uma ilha imaginária controlada pelo sábio Próspero, que tem como serviçais Ariel -um espírito dos ares- e Caliban, ser bruto cujo nome seria um anagrama de "canibal" (ou uma corruptela de "caribbean").

Apesar de controvérsias, para muitos intelectuais, Caliban foi tomado como uma metáfora da América Latina, dominada pela força e pela língua de Próspero. O pernambucano Marcus Accioly, 58, não hesita em identificar-se com esse símbolo. "Fui sempre Caliban", diz, em "Latinomérica".

Com mais de 600 páginas, o texto de Accioly é um poema único, um épico que atravessa a história do continente desde tempos pré-colombianos até hoje. A obra, que levou 20 anos para ser concluída, acaba de chegar às livrarias, numa co-edição da Topbooks com a Fundação Biblioteca Nacional.

Accioly - que já tem 13 livros publicados e traduções para o espanhol, francês e alemão- tem admiradores entre os mais ilustres homens de letras do Brasil. A apresentação da obra, por exemplo, é de João Cabral de Melo Neto (morto em 99), e já haviam lhe derramado elogios, entre muitos outros, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado, Wilson Martins e Gilberto Freyre.

Accioly mostra como a língua do dominador serviu aos poetas em sua busca por restituir o "cânon perdido". Para ele, os cantos e sons da América pré-Conquista foram destruídos pelos conquistadores e o destino de todo poeta seria reconstruir essa linguagem desaparecida a partir da nova realidade. Exemplifica com Walt Whitman ("Agora o artista solta sua coragem, ele já tocou seu prelúdio nas flautas dentro de si").

O texto utiliza a oitava rima "camoniana", em decassílabos, "um retorno à tradição épica da língua portuguesa". Parênteses são recurso recorrente e criam uma segunda leitura, além de viabilizar citações. Mas, em vez de dividir sua epopéia em cantos, Accioly o faz em "rounds", como no boxe. Boxe? Isso mesmo. Cada fase apresenta um "lutador" diferente que assume as luvas para enfrentar o "inimigo comum", a colonização e a neocolonização.

Accioly conecta poetas, escritores, heróis e, especialmente, anti-heróis latino-americanos. Acidentes geográficos não ficam de fora, interagem com o poema arquipélagos e cordilheiras.

A narrativa segue uma linha principal: o herói-poeta sai em busca de seu pai (o conquistador). Não encontrando-o, volta-se para a mãe (a América). A América teria, então, como destino, ser violada, primeiro pela sanha do pai e depois pelo amor do filho.

Leia os principais trechos da entrevista que o poeta, nascido num engenho no Vale do Siriji, norte de Pernambuco, deu à Folha.

Folha - Sua obsessão pelo todo vai de encontro à fragmentação cultural que marca o momento que vivemos. Acha que o pan-americanismo é uma utopia?

Marcus Accioly - Drummond sinalizou o fragmentarismo do nosso tempo: "Este é tempo de partido/ tempo de homens partidos". Sim, somos pedaços, detalhes, partes do grande quebra-cabeças que é o homem e que ainda não conseguimos armar. Como diria Eduardo Portella, não somos globais, estamos globais. Quanto ao "pan-americanismo", que remonta ao diplomata brasileiro Alexandre de Gusmão, ou ao "bolivarismo", que pretendia "formar de todo o Novo Mundo uma única nação", não creio que tais princípios sejam utopia. Como o futuro é dos poetas ou dos loucos, continuo acreditando. Minha obsessão pelo todo vislumbra um tempo sem partido, um tempo de homens inteiros.

Folha - Você apresenta a língua como um dos nossos paradoxos. No seu modo de entender, Caliban e Malinche são "traidores"?

Accioly - A língua é a mais forte resistência humana. Digo sempre que a língua é uma raiz que vem do ventre, é um cordão umbilical que liga à mãe. Porém, cortadas as línguas primitivas, o nosso idioma vem do pai. Pela língua somos unidos e estamos separados. Somos unidos como Caliban, que aprendeu a língua de Próspero para amaldiçoar o colonizador. Estamos separados, como a Malinche, que aprendeu a língua de Cortés para trair e entregar seu povo ao alienígena.

Folha - O conceito de "realismo mágico" foi tão disseminado que acabou servindo para abarcar vários tipos de experimentalismos. Para onde caminha a literatura latino-americana?

Accioly - Utilizo, com respeito à poesia épica, a expressão realismo-épico para combater não o realismo mágico, mas expressões, como as de Miguel Ángel Asturias, de que "a literatura latino-americana irá florescer, mas não em versos". Afinal, contradizendo isso e incluindo o próprio Asturias, dos seis escritores que receberam o Nobel na América Latina [Gabriela Mistral, Miguel Ángel Asturias, Pablo Neruda, García Marquez, Octavio Paz e Derek Walcott], cinco são poetas.Talvez pelo mal do tempo ou pela pressa da comunicação, uma boa parte da poesia aqui tem virado prosa, e a prosa, jornalismo. Mas aposto que este início de milênio vai trazer um novo Renascimento, em que o homem e o canto poderão voltar a ser inteiros.

Folha - Você diz que "na América Latina não há heróis sobreviventes, mas anti-heróis exterminados". Acha que, aqui, o engajamento do escritor é inevitável?

Accioly - Suponho que, na Europa, um autor pode tratar, sem remorso, só das questões do espírito -como, aliás, fez a poesia inglesa do século 18. Na América Latina, o poeta é obrigado a lidar com os problemas da selva e da cidade, do sofrimento e da injustiça, a miséria e a violência, em detrimento dos grandes temas metafísicos. Por isso dividi o livro em rounds, como uma luta de boxe. (© Folha de S. Paulo)

http://www.web3.com.br/not0102/ne_not_20020121d.htm

A morte do autor - Roland Bhartes

Apesar de o império do Autor ser ainda muito poderoso (a nova crítica muitas vezes não fez mais do que consolidá-lo), é sabido que há muito certos escritores vêm tentando abalá-lo. Na França, Mallarmé, sem dúvida o primeiro, viu e previu em toda a sua amplitude a necessidade de colocar a própria linguagem no lugar daquele que era até então considerado seu proprietário; para ele, como para nós, é a linguagem que fala, não o autor; escrever é, através de uma impessoalidade prévia - que não se deve em momento algum confundir com a objetividade castradora do romancista realista -, atingir esse ponto em que só a linguagem age, "performa", e não "eu": toda a poética de Mallarmé consiste em suprimir o autor em proveito da escritura (o que vem a ser, como se verá, devolver ao leitor o seu lugar). Valéry, todo embaraçado numa psicologia do Eu, muito edulcorou a teoria mallarmeana, mas, reportando-se, por gosto do classicismo, à retórica, não cessou de colocar em dúvida e em derrisão o Autor, acentuou a natureza linguística e como que "arriscada" da sua atividade, e reivindicou ao longo de todos os seus livros em prosa a favor da condição essencialmente verbal da literatura, em face da qual todo recurso à interioridade do escritor lhe parecia pura superstição. O próprio Proust, a despeito do caráter aparentemente psicológico do que chamamos suas análises, deu-se visivelmente ao trabalho de emaranhar inexoravelmente, por uma subutilização extrema, a relação do escritor com as suas personagens: ao fazer do narrador não aquele que viu ou que sentiu, nem mesmo aquele que escreve, mas aquele que vai escrever (o jovem do romance - mas, a propósito, que idade tem e quem é ele? - quer escrever, mas não pode, e o romance acaba quando finalmente a escritura se torna possível). (...)
Finalmente, fora da própria literatura (a bem dizer tais distinções se tornam superadas), a linguística acaba de fornecer para a destruição do Autor um instrumento analítico precioso, mostrando que a enunciação em seu todo é um processo vazio que funciona perfeitamente sem que seja necessário preenchê-lo com a pessoa dos interlocutores: linguisticamente, o autor nunca é mais do que aquele que escreve, assim como "eu" outra coisa não é senão aquele que diz "eu": a linguagem conhece um "sujeito", não uma "pessoa", e esse sujeito, vazio fora da enunciação que o define, basta para "sustentar" a linguagem, isto é, para exauri-la.

Roland Bhartes, o rumor da língua, Martins Fontes, 2004, pp. 59-60

O lobby

O lance do elo é o belo?
O lance do Melo é o nome
O lance do lanche é o melão
O lobby do lance é o mel.

Lucas Tenório

Um comentário - Romildo Rodrigues

Recife é cidade entrecortada por ruas, becos e pontes, plasmada de estilos arquitetônicos antagônicos que existem em harmonia inusitada, como exemplo a Rua Nova, no centro, onde nos andares inferiores dos prédios se enxergam lojas de estruturas modernas e, oposta e repentinamente, nos andares de cima prevalecem imponentes as antigas fachadas de estilo colonial, cada uma mais bela que a outra, como se a três metros da rua outra rua se fizesse.

O autor de quem falo assemelha-se ao Recife; os contraditórios atos de viver e sentir coexistem, serena e harmoniosamente, na estrutura refinada dos seus versos, em que cada palavra possui um significado concreto, um sentido único, mesmo no seio da eventual contradição. Cada verso rebento traz consigo a difícil missão do poeta, ou seja, unir-se a outro para traduzir e retratar um gesto, um acontecimento - mesmo comezinho -, um sentido ou um sentimento, apesar de o signo, na maioria das vezes, mostrar-se insuficiente para isso.

A par dessa preocupação, a sonoridade e a cadência do seu trabalho revelam-se cada vez mais aguçadas, como bem traduzido em O Sapo, poema renovador, que mantém o contumaz sopro de recriação característico da cidade.

Admirador de Carlos Pena Filho, o Poeta do Azul - condensador da alma recifense -, o autor traduz em seus poemas o olhar atento aos detalhes das coisas simples, que frequentemente escapam à visão comum e fugidia, ao mesmo tempo em que faz com que outras matérias e percepções, dentro de suas complexidades, reúnam-se em uma única tez, palpável a todos que enveredam pelo que escreve.

Lucas Tenório presenteia os seus leitores com uma poesia desraigada do mero sentimentalismo, e precisa na forma de sua expressão. Revela um poeta preocupado em falar da naturalidade do viver, mas que ao mesmo tempo se espanta e admira, perplexo, ao buscar os sentidos daquilo que nos confunde, nos desafia e nos instiga a novas descobertas e novos caminhos, como necessidade inata do homem face ao, no mais das vezes, letárgico cotidiano.

Romildo Rodrigues

23.9.05

O Sapo

Vestiu-se o Sapo de jaqueta
E pegou sua lambreta.

Sol a pino, concreto, asfalto.

Trrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr

A britadeira.

O Sapo, da algibeira,
Coloca o protetor auricular.

- Não viu o apito, motorista?
- Não ouviu a placa

PARE

O Sapo, à guisa de dislexia,
Esnoba o fiscal policial.

Tira do bolso o cartão:

SAPOPARASAPO
GUARDAPARAGUARDA
RAIOPARARAIO
PARASAPOPOSSA
PARARAPARARABARBAEBABAR

Seu guarda.

SOPASSARPARASAPAR

APARARABARBAEBABAR

Seu guarda.

BOLAPARACOLA
DOLARROLADOCALO

OKAPA

O Sapo aguarda.
O Sapo aposta...

SAPOEPAPO
SAPOESOPA

Eu?! Que nado!

SAPOAPOSOSINALSALTAR

Sapo é brasileiro...

SAPOAPOS

O fiscal dá partida com o Sapo no camburão.

Inheminheminheminheminhem
Inheminheminheminheminhem

Inheminheminheminheminhem

Inheminheminheminheminhem

TAXITAXITAXITAXITAXITAXI

TAXITAXITAXITAXITAXITAXI

TAXITAXITAXITAXITAXITAXI

TAXITAXITAXITAXITAXITAXI

PUTAQUEPARIU

O Sapo atado se riu...

TAXITAXITAXITAXITAXITAXI

TAXITAXITAXITAXITAXITAXI


TAXITAXITAXITAXITAXITAXI


TAXITAXITAXITAXITAXITAXI


Pois não seu guarda?

EIACADEIA

Cadê?!... Olha, é bandeira 2, vai?



PUTAQUEPARIU


(O Sapo autuado sorriu.)

Lucas Tenório

Pequeno Santo Antônio

Argamassa do caminho
nos bueiros conformada:
terra do rato e arauto
de palavra alimentada.

Uns pés de pilão, moinho
mãos de ladrão de tempo
Cortam-se cocos nos conventos
em frente à Casa da Cultura.

A moldura que os olhos vêem
da praça Visconde de Mauá
É de um banco bem pra lá
dos travestis de plantão.

Pegue a contramão
e chegue à estação do metrô
Pergunte-se para onde vou:
cola, pipoca, cocada?

Argamassa do caminho
nos sapateiros conformada
terra do homem e calçada
de poeira apalavrada.

Lucas Tenório

Carlos Pena Filho - O Poeta Atlântico

“Tânia: recebe este livro
agora mesmo composto
na face azul do teu rosto,
ilha de sal e de areias
azuis como as nossas veias”.

Carlos Pena Filho (Dedicatória do Livro Geral de seus poemas a Tânia, sua mulher.)


É lamentável que a Pena de Carlos Pena Filho ainda seja pouco conhecida de boa parte do público brasileiro, enquanto a Cal de João Cabral de Melo Neto, o maior poeta brasileiro na síntese da materialidade das coisas (Carlos maior que ele na síntese de significados íntimos), e o Armorial de Ariano Suassuna, um híbrido dos dois, tenham alcançado todo o mundo.

Em conversa com Rita Amaral, outra sua admiradora, ao procurarmos uma identificação para a obra do poeta Carlos Pena, conhecido como Poeta do Azul, concluímos, atrevidamente, por chamá-lo de Poeta Atlântico, com o fito de afastar um pouco da poeira do esquecimento que se depositou sobre o que disse o homem que partiu prematuramente, aos 31 anos, em 1960. Atrevidos nós, porque julgamos que o sumo acadêmico Manuel Bandeira o cognominou de Poeta Solar, quando recambiou aquela cor para o amarelo do sol, em sua visita ao Soneto do Desmantelo Azul:

"ENTÃO, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul."

(Soneto do Desmantelo Azul)

“ESCREVO ESSE NOME, e estou certo que o inscrevo na eternidade [...] Como Mallarmé, tinha o poeta pernambucano a obsessão do azul: a sua bela Maria Tânia lhe parecia ‘bela e azul’, na rosa que ele amou via, nos seios da rosa, dois bêbedos marujos ‘desesperados, sós, raros, azuis’, há uma orgia de azul no ‘Soneto do desmantelo azul’, onde acaba nascendo um sol ‘vertiginosamente azul’. (Bandeira, apud Carneiro Leão, 1999:11)

Percebemos, desse relato, relato, penso, do maior nome da poesia brasileira de todos os tempos, ao lado de Carlos Drummond de Andrade e alguns poucos, o quanto é intenso, belo e forte o estro de Pena Filho.

Carlos Pena recebeu também, em carta póstuma, os comentários singelos e carinhosos do amigo romancista Jorge Amado (1999:09), um dos maiores romancistas brasileiros, em que o trata como “Carlinhos”, e que faz silenciar as apreciações nossas para, prudentemente, ouvi-los melhor:

“(...) Eras frágil de carne e osso, tão leve na balança, um vento mais forte podia te arrastar como uma folha de árvore ou um pedaço roto de poema. Por isso talvez sempre me deste a idéia de um anjo por amor perdido nas ruas do Recife. Mas como eras denso de vida por dentro, como eras tão homem e tão povo, tão pernambucano e universal!”

O sociólogo Gilberto Freyre, por seu turno, compara-o a um pintor de palavras, em seu comentário aposto no Livro Geral de Poemas do poeta.

“(...) É característico de Carlos Pena Filho ter dado a alguns de seus poemas títulos que confirmam nele o artista pictórico a servir-se por vezes de palavras como se serviria de tintas. A escrever, pintando com palavras. (Freyre, 1999:12).

De fato, Carlos Pena Filho, o nosso (meu e da Rita, oxalá de todos) Atlas Poietés, ou Trovador Atlântico, carrega seus poemas de tonalidades marítimas, suaves e intensas – em sua obra não se pode pensar sem uma imanente associação a cromatismos sentimentais -, como se os construísse em uma grande sinfonia de luzes, mediando Céu e Mar, em pares de contrastes, como nestes versos:

“O enorme céu que cobre mar e mágoas
ele abriga os astros,
sustém meu claro sonho sobre as águas,
velas e mastros.

Um dia hei de encontrar terra ignota:
é assim quem sonha.
E se nenhuma houver em minha rota,
Que Deus a ponha.

Em meio ao longo mar não faço caso
dos dias meus,
Pois tenho a guiar-me o vento ou o puro acaso
e o acaso é Deus.”

(Pedro Álvares Cabral, 1999:51)

Ou Trevas e Luz, Corpo e Alma, como nestes

“O quanto perco em luz conquisto em sombra
e é de recusa ao sol que me sustento.
Às estrelas prefiro o que se esconde
nos crepúsculos graves dos conventos.

Humildemente envolvo-me na sombra
que veste, à noite, os cegos monumentos
isolados nas praças esquecidas
e vazios de luz e movimento.

Não sei se entendes: em teus olhos nasce
a noite côncava e profunda, enquanto
clara manhã revive em tua face.

Daí amar teus olhos mais que o corpo
com esse escuro e amargo desespero
com que haverei de amar depois de morto.”

(Soneto, 1999:63)

Carlos Pena Filho mostra-se também um dissecador dos zéfiros e das primícias do arco-íris, num gesto poético ainda mais ousado que dá a noção exata do alcance de sua percepção:

“Aquém do sonho e além dos movimentos
uma nesga de azul perdeu as asas.
Quem a invadir, invade os próprios ventos
que varrem mares e entram pelas casas.

Às vezes, penso: não tem dor nem mágoas
quem se ofertou a tão alegre ofício,
mas a mulher que mora atrás do início,
diz: são meus estes céus, minhas as águas

que dormem neste chão, minhas as cores
que apascentam teus olhos e que vêm
de mim e vão das nuvens ou das flores.

Mas só pode ir além dos movimentos,
onde, serena, habito há muito, quem
pela nesga de azul entrar nos ventos.”

(Soneto Raspado das Telas de Aloísio Magalhães, 1999:88)

O Trovador Atlântico também “pisava” na terra (e como a semeava...), Como uma espécie de Ícaro luso-brasileiro e insatisfeito, do século XX. Talvez Renato Carneiro Campos tenha-lhe decifrado o porquê no seguinte depoimento:

“Nos últimos poemas, nos mais brasileiros pelo ritmo e pela temática, revela sua mestiçagem verbal, escreve palavras de sua época. Tudo isso como resultado da luta tremenda que trava todo escritor latino-americano (...), na procura de uma expressão nova e mestiça.” (1999:primeira orelha)

Este aspecto pode ser visto, inclusive, neste poema:

"Carolina, a cansada, fez-se espera
e nunca se entregou ao mar antigo,
Não por temor ao mar, mas ao perigo
de com ela incendiar-se a primavera.

Carolina, a cansada que então era,
despiu, humildemente, as vestes pretas
e incendiou navios e corvetas
já cansada, por fim, de tanta espera.

E cinza fez-se. E teve o corpo implume
escandalosamente penetrado
de imprevistos azuis e claro lume.

Foi quando se lembrou de ser esquife:
abandonou seu corpo incendiado
e adormeceu nas brumas do Recife."

(Soneto das Metamorfoses – A Edmundo Morais, 1999:112)

O Poeta do Azul, Poeta Solar, ou para nós (e muitos nós náuticos) Trovador Atlântico, ou Deus saiba lá o quê
(e acho que o saiba), era apaixonado pela ilha metade roubada ao Mar, metade ao Rio, o nosso, dos pernambucanos e de todos, Capibaribe. Daí o seu, o que modestamente lhe oferecemos, epíteto.

O poeta fez dessa ilha, a ilha Recife, seu porto de pousada e seu túmulo vivo de palavras e da sua alma. Tanto que podemos encontrá-lo, vívido e de olhos bem abertos e certamente azuis, se aceitarmos o seu convite para conhecê-la:

“No ponto onde o mar se extingue
E as areias se levantam
Cavaram seus alicerces
Na surda sombra da terra
E levantaram seus muros
Do frio sono das pedras.
Depois armaram seus flancos:
Trinta bandeiras azuis plantadas no litoral.
Hoje, serena flutua, metade roubada ao mar,
Metade à imaginação,
Pois é do sonho dos homens
Que uma cidade se inventa.”

(Guia Prático da Cidade do Recife – O Início, 1999:129)

Depois de fazer conhecer, na seqüência, O Navegador Holandês, Manuel, João e Joaquim, A Praia, os Subúrbios, A Lua, as Igrejas, O Bairro do Recife, São José, o Chopp, os Oradores, os Secos e Molhados, embriagado, provavelmente, ele termina, num gesto de bigamia:


“Recife, cruel cidade,
águia sangrenta, leão.
Ingrata para os da terra,
boa para os que não são.
Amiga dos que a maltratam
inimiga dos que não,
este é o teu retrato feito
com tintas do teu verão
e desmaiadas lembranças
do tempo em que também eras
noiva da revolução.”

(Guia Prático da Cidade do Recife – O Fim, 1999:142-143)

Concluindo, arrisco dizer que todo poeta que se queira prezar ou que espera ser prezado pelos outros deve ler
e estudar a obra do magistral bardo pernambucano Carlos Pena Filho, como qualquer brasileiro, ou falante da língua portuguesa – principalmente -, não apenas pelas construções quase mágicas dos seus versos, como pelo aprendizado do tingimento das emoções, como ele soube fazer como pouquíssimos, senão único.

Vale ressaltar que os “azuis” também estão presentes, e bem presentes, em Drummond, Bandeira, Quintana, Vinícius, Cruz e Sousa, Meirelles, Pessoa, Natália Correia, entre muitos outros, mas não como o estão em Carlos Pena Filho. Além do mais, ler Carlos Pena, no mínimo, nos induz a sonhar com um mundo vertiginosamente azul. Azul.

Lucas Tenório
__________________________________________________

Nota:

1 - Onde encontrar o Livro Geral de Poemas de Carlos Pena Filho em Pernambuco: Livraria Imperatriz da rua Sete de Setembro, Boa Vista, Recife, e Livraria Imperatriz do Shopping Center Tacaruna, Olinda, ou via Internet em: http://www.livrariaimperatriz.com.br/

2 - Agradeço a minha amiga Rita Amaral, que com sua inteligência, perspicácia, sensibilidade e instauração de rigor formal deu ao presente ensaio a abrangência e profundidade necessárias ao seu bom entendimento e que sem as quais seria impossível concluí-lo.

Bibliografia

Amado, Jorge. “Carlinhos” In Carneiro Leão, Tânia (Org) Livro Geral Poemas Carlos Pena Filho, Edição da Organizadora, Recife, 1999 (2ª edição) pp.09-10.

Bandeira, Manuel. “Carlos Pena Filho” In Carneiro Leão, Tânia (Org) Livro Geral Poemas Carlos Pena Filho, Edição da Organizadora, Recife, 1999 (2ª edição) pp.11.

Campos, Renato Carneiro.In Carneiro Leão, Tânia (Org) Livro Geral Poemas Carlos Pena Filho, Edição da Organizadora, Recife, 1999 2ª edição (orelha).

Carneiro Leão, Tânia. (Org) Livro Geral Poemas Carlos Pena Filho, Edição da Organizadora, Recife, 1999 (2ª edição) 159 pp.

Freyre, Gilberto. “Carlos Pena Filho” In Carneiro Leão, Tânia (Org) Livro Geral Poemas Carlos Pena Filho, Edição da Organizadora, Recife, 1999 (2ª edição) pp.12-17.

Pena Filho, Carlos. Livro Geral Poemas.(Organização de Tânia Carneiro Leão) Edição da Organizadora, Recife, 1999 2ª edição.

22.9.05

Manuel Bandeira e a Modernidade

Manuel Bandeira é o poeta de Pasárgada, da utopia hedônico-existencial. É o poeta que convive com a limitação física severa que a própria vida lhe impõe, e portanto vê na sua poesia o "alhures" onde poderia viver plenamente e livre – liberto (sadio?). Bandeira incorpora os valores da modernidade num poetizar lúdico, solto, irreverente, em que o diálogo dialético com a tradição se consubstancia numa forma extrovertida, alegórica, folclórica e fabular – e poderíamos até dizer mesmo também "simples" de escrever poesia.

Manuel bandeira rompe dessa forma com as amarras formais da língua e estética do período pré-modernista, com o "lirismo de repartição pública", como diz. Desliga-se das estruturas tradicionais do verso. Entretanto não deixa de compor seus poemas com musicalidade e ritmo – tradicionais, imanentes ao fazer poético, sim -, mas de uma forma muito própria e característica (reminiscências da musicalidade e cadência presentes nos anos da sua infância?). O poeta Incorpora, nisso, uma materialidade do viver, do dia-a-dia, um coloquialismo daquele que, no seu dizer, teme que as ruas de sua infância venham a ser rebatizadas como ruas "Dr. Fulano de Tal", contrariamente à singeleza e essencialidade existencial por que eram conhecidas, num sinal de sua repulsa, sempre presente, pelo elitismo e formalismo burocrático sócio-cultural.

Penso que Bandeira legou à posteridade essa lição de uma poesia viva, alegre, corrente, compromissada com as suas raízes, mas raízes essenciais e ônticas do ser-no-mundo. Manuel Bandeira foi um poeta "em tempo integral". Viveu poesia, sonhou poesia, foi poesia. A modernidade teve dele o exemplo de uma poética total, mas não totalizante. Poética essencialmente fenomenológica, dos "fatos" da vida e percepções/especulações humanas. Bandeira, para todos nós: "Trouxe a extinta esperança/ Trouxe a perdida alegria".

Lucas Tenório

Elementos de Teoria Literária - Fenomenologia, Teoria da Recepção - Terry Eagleton

(...)a principal obra de Heidegger, O Ser e o Tempo (1927) ocupa-se nada menos do que da questão do próprio ser - mais particularmente, do modo de ser que é especificamente humano. Tal existência, argumenta Heidegger, é em primeiro lugar sempre o ser-no-mundo: só somos sujeitos humanos porque estamos praticamente ligados ao nosso próximo e ao mundo material, e essas relações são constitutivas de nossa vida, e não acidentais a ela. O mundo não é um objeto que existe "fora de nós", a ser analisado racionalmente, constrastado com um sujeito comtemplativo: o mundo nunca é algo do qual possamos sair e nos confrontarmos com ele. Surgimos, como sujeitos, de dentro de uma realidade que nunca podemos objetivar plenamente, que abarca tanto "sujeito" quanto "objeto", que é inesgotável em seus significados e que nos gera tanto quanto nós a geramos. O mundo não é algo a ser dissolvido à la Husserl em imagens mentais: ele possui uma existência concreta, recalcitrante, que resiste aos nossos projetos, sendo que existimos simplesmente como parte dele. A entronização do ego transcendental feito por Husserl é apenas a fase mais recente de uma filosofia racionalista do Iluminismo, pela qual o "homem" marca imperiosamente o mundo com a sua própria imagem. Heidegger, ao contrário, afasta parcialmente o sujeito humano dessa posição imaginária de domínio. A existência humana é um diálogo com o mundo, e ouvir é uma atividade mais reverente do que falar. O conhecimento humano afasta-se sempre, e move-se dentro, daquilo que Heidegger chama de "pré-entendimento". Antes de chegarmos a pensar sistematicamente, já partilhamos de uma quantidade de pressupostos tácitos, obtidos de nossa ligação prática com o mundo, e a ciência ou a teoria nunca são mais do que abstrações parciais dessas preocupações concretas, como um mapa é a abstração de um terreno real. O entendimento não é, em primeiro lugar, uma "cognição" isolável, um ato particular que pratico, mas parte da própria estrutura da existência humana. Isso porque minha vida só será humana se eu me "projetar" constantemente para frente, reconhecendo e realizando possibilidades novas de ser; nunca sou puramente idêntico comigo mesmo, por assim dizer, mas um ser sempre lançado para frente, para além de mim mesmo. Minha existência nunca é algo que eu possa aprender como um objeto concluído, mas sempre uma questão de possibilidades novas, algo sempre problemático. E isso equivale a dizer que o ser humano é constituído pela história, ou pelo tempo. O tempo não é um meio no qual nos movimentamos, como uma garrafa poderia se movientar em um rio; é a estrutura mesma da própria vida humana, algo de que sou feito, antes de ser alguma coisa que posso medir. O entendimento, portanto, antes de ser uma questão de entendimento de alguma coisa em particular, é uma dimensão do Daisen, a dinâmica interior de minha constante autotranscendência. O entendimento é radicalmente histórico; ele está sempre relacionado com a situação concreta em que me encontro, e que tento transcender.

Terry Eagleton, Teoria da literatura: uma introdução, Martins Fontes, 1983, pp. 67-68

19.9.05

De Paulo Freire

"Continuemos a pensar um pouco sobre a inconclusão do ser que se sabe inconcluso, não a inconclusão pura, em si, do ser que, 'no suporte' [base material do mundo], não se tornou capaz de reconhecer-se interminado. A consciência do mundo e a consciência de si como ser inacabado necessariamente inscrevem o ser consciente de sua inconclusão num permanente movimento de busca. Na verdade, seria uma contradição se, inacabado e consciente do inacabamento, o ser humano não se inserisse em tal movimento. É neste sentido que, para mulheres e homens, estar no mundo necessariamente significa estar com o mundo e com os outros. Estar no mundo sem fazer história, sem por ela ser feito, sem fazer cultura, sem 'tratar' sua própria presença no mundo, sem sonhar, sem cantar, sem musicar, sem pintar, sem cuidar da terra, das águas, sem usar as mãos, sem esculpir, sem filosofar, sem pontos de vista sobre o mundo, sem fazer ciência, ou teologia, sem assombro em face do mistério, sem aprender, sem ensinar, sem idéias de formação, sem politizar não é possível."

Paulo Freire

Pedagogia da Autonomia, editora Paz e Terra, 1996, pp. 63-64

17.9.05

Capibaribe, Meu Rio - Austro Costa

Capibaribe, meu rio,
espelho do meu sonhar
quero fazer-te o elogio,
mas penso: Se te elogio,
é a mim que estou a elogiar...

Capibaribe, meu rio,
espelho do meu sonhar...

Meu velho Capibaribe
meu irmão de sonho e amor...
..............................................

Capibaribe, meu rio,
Que vida levamos nós!
tu corres: eu rodopio...
E há quarenta anos a fio:
sempre juntos - e tão sós!

Capibaribe, meu rio,
que vida levamos nós!
Mas sabe Deus a constância
com que sofreste e eu sofri,
para, vencida a distância,
vermos quão cega foi a ânsia
com que sofreste e eu sofri...

Capibaribe, meu rio,
vinhas de longe a correr.
- Aonde vais, poeta vadio?
E ouvindo o meu desafio,
paraste para me ver...

Capibaribe, meu rio,
vinhas de longe a correr...

Paraste... e, logo, nascia
em mim a doida ambição
de seguir-te... Até que um dia,
fiz a enorme tropelia
de abandonar meu rincão!

Paraste... e, logo, nascia
em mim a doida ambição...

Capibaribe, meu rio,
tal chegaras, tal cheguei...
Mercê do Fado sombrio,
tudo sofri, mas com brio:
sem dizer “Aqui-del-Rei!...”

Capibaribe, meu rio,
tal chegara, tal cheguei!

Por te ouvir, que triste engano,
Capibaribe!... Que horror!
Que destino inglório e insano!

Tu corrias para o Oceano,
eu corria para o Amor...

Por te ouvir, que triste engano!
Triste, mas encantador...

13.9.05

Ética e Direito

Este texto pretende lançar alguma luz na sondagem perquerida por muitos sobre a controvertida relação entre a pragmática do Direito e a Ética.

Pergunta-se, com efeito e como questão fundamental, se o Direito, enquanto norma positivamente elaborada e coercitivamente imposta – sendo a técnica e prática legais e procedimentais -, guardaria ou não um substrato fundante e geral de ordem ética.

Para começarmos a responder a esta questão vale registrar, neste ponto, que entendemos a Ética - também a sua co-irmã Estética -, como categorias de caráter superior do pensamento humano e de civilização, portanto construções intelectivas de cunho filosófico que instituem a relação com a noção do Belo: relação política – Ética; relação objetual – Estética.

Dessa lógica, entendemos razoavelmente que não havia Ética, conhecida como esse valor arquetípico considerado acima, antes da Filosofia Ocidental. Cremos que não podemos pensar em Ética, como aqui a colocamos, antes, principalmente, de Platão e Aristóteles. Não havia Ética, e sim uma espécie de moral primária, no ritualismo e na mitologia dos povos primitivos; nos ritos de passagem, iniciação e de poder; nas teogonias, e no animismo que fundamentava a relação deles com as forças da natureza e com seus pretensos deuses ou com o próprio Deus. Seus mitos é que diziam o quê, e como deveriam fazer e agir. Tinham esses povos, sim, arquétipos e estereótipos constituídos, nada obstante, tão-só para instrumentalizar e personalizar essa sua onipresente mitologia. Os mitos governavam assim o imaginário e o inconsciente coletivo das sociedades primitivas, e um deles, o mito do poder de origem divina ou sagrada deu vazão ideológica e embrionária à criação dos Estados teocráticos e autocráticos, e a seus incipientes códigos, primeiramente morais, para depois encontrarmos traços objetivos de jurisdição estatal como modernamente a conhecemos.

Pois bem: com o advento da Filosofia introduziu-se a ruptura com essa prática, e uma tentativa de leitura racional do mundo. No que se refere à Ética, o idealismo socrático ensinava, por exemplo, não valer a pena praticar o mal, inclusive porque o mal não existiria por si mesmo, a não ser como um contraponto ou ausência. Ausência do auto-conhecimento que levaria o homem inexoravelmente ao caminho dos modelos superiores, a caminho do Bem.

Um texto lido coloca essa maiêutica socrática como uma espécie de exercício interior de alteridade, o que nos levaria a sermos dois em um. Somos um que pratica e outro que analisa - e julga. O texto também coloca a possibilidade do mal como sendo a prática do ignorante, e não necessariamente do malfeitor, o que cria um impasse considerável à análise que ora fazemos sobre a possibilidade cognoscível da própria Ética - e de forma ontológica -, sem a qual - sem esse fino discernimento -, não teríamos como considerá-la imanentemente normativa. Pergunta-se, portanto e em suma: o sujeito pensante teria efetivamente, e sempre, consciência de sua eventual "maldade", por exemplo, ou mesmo consciência de que estaria sendo a-ético nesse proceder? Se não, seria moral e humanamente justo puni-lo por sua transgressão, desvendada e descoberta assim como absolutamente involuntária?

Essa questão é bastante complexa e difícil de responder, e pode ser deixada relativamente de lado porque quiçá represente um colapso na noção de Ética. Cumpre-nos então e agora, por razões de objetividade e manutenção de foco analítico, situar o Direito, o ordenamento jurídico, no seio das relações político-culturais das sociedades humanas para entender a eventual conexão que o tempo histórico estabeleceu entre ele e a Ética.

O Estado, do ponto de vista marxista – e como bem sabemos -, organizar-se-ia, dialeticamente, na dependência do modo de produção vigente na sociedade e da ideologia e valores dele decorrentes.

No início da História, com a Revolução do Neolítico, o homem tornou-se sedentário, artesão, agricultor, e daí surgiu, com o acúmulo material, a propriedade privada. Pode-se dizer que também a Arte em suas diversas vertentes teve nesse momento seu desenvolvimento iniciado. Houve a sobra de produção que alavancou, direta e indiretamente, a prosperidade material e espiritual. Formou-se o amálgama para a criação do Estado como o conhecemos: primeiramente, o Estado teocrático, através da proeminência dos sacerdotes, com os clãs e as primeiras tribos; no curso dos acontecimentos, sucedeu o Estado Autocrático, seja de raiz militar ou civil. E quanto ao Direito?

O Direito, também do ponto de vista marxista, o principal elemento da superestrutura da nova sociedade politicamente organizada, nasceria com o verniz que lhe imprimiria o modo de produção vigente, no que concerneria ao estabelecimento das regras de disciplinamento do acesso à produção, distribuição e consumo gerais, e portanto de acesso ao poder, mal disseminado e desigual desde o princípio de sua organização.

O Direito legitimou "o homem é o lobo do homem" através de códigos que favoreciam, seja direta ou através de sua exegese ideológica, elites militares, castas familiares e elites fundiárias e econômicas que marcaram principalmente a Idade Antiga e Média-Alta da nossa História.

O Renascimento, adiante, pôs fim às trevas. O Humanismo ressurgiu, principalmente nas artes plásticas, no urbanismo e na literatura. Cidades floresceram comercialmente com a Revolução Comercial e o Classicismo. Surge a Burguesia e a Ciência Política. Voltaire, Maquiavel, Montesquieu, Bacon. A Revolução Científica, mãe do Iluminismo, está em curso: Copérnico, Kepler, Galileu, Descartes. Há a reforma religiosa de Lutero e Calvino.

O Antropocentrismo substitui o Obscurantismo e o Teocentrismo. Há os Déspotas Esclarecidos, cujo exemplo temporão no Brasil foi o de D. Pedro II. Há uma espécie de euforia em torno da possibilidade de evolução exponencial, material e espiritual da civilização humana. Descartes é preceptor de um monarca, seguindo um antigo exemplo do Helenismo. O Direito, nesse cenário, tenta passar por uma reformulação que o descontamine do absolutismo que sempre o manteve preso às forças das elites. E quanto à Ética? Spinoza colocou seus pensamentos, na "Ética", em oposição a um dos maiores e resistentes poderes: o Cristianismo. E a Ética e o Direito? Ou pelo menos, e o Direito?

Rousseau e os Contratualistas acreditavam na boa e pura índole do homem, e advogavam um contrato social que tivesse por prerrogativa o pretenso Direito Natural, incorporando o entendimento clássico de que de fato pudesse haver uma Ética universal humanista. Hobbes, ao contrario, insistia num Estado forte, que coibisse desvios e paixões. Marx, bem depois, diz que a Burguesia é a expressão sofisticada da exploração, como que se quem "vencera" fora a tese de Hobbes, e que portanto a Ética burguesa não é exatamente aquela Ética, de Platão e Aristóteles – retomando o início do texto -, e sim uma concepção de valores ideologicamente deformados (e deformadores) pela alienação do modo de produção e de pensar capitalistas.

Deixamos de falar, pelo menos nominadamente, do projeto de mundo do Iluminismo.

O Iluminismo, na esteira do Renascimento e da Revolução Científica, prometeu uma prosperidade e um avanço de civilização que em parte não ocorreu. A Revolução Industrial demonstrou o poder da técnica, é verdade. O Positivismo instituiu como corolário o Primado ideológico da técnica. O Capitalismo se aperfeiçoa, mas parece entender o homem como máquina, afirmação que se entende ao se olhar o modus operandi do Taylorismo e do Fordismo. Os Direitos Romano e Anglo-Saxão, basicamente, mudaram para justificar os novos impérios (Inglês, Francês, Alemão e Norte-Americano) e suas relações com as novas colônias. O mundo cresceu, internacionalizou-se, mas a Ética permaneceu distante daquele ideal de relação política com a noção do Belo, porque a vida, o drama da maior parte da população humana continuou muito distante desse paradigma. O Iluminismo fracassou como um humanismo, como diriam os existencialistas. Os humanismos, ou os "ismos", enfim, fracassaram.

Atualmente, então, qual a relação entre Ética e Direito?

No nosso Estado Brasileiro, que cresceu de cima para baixo e mantém essa verticalidade de autoridade e de poder, há uma considerável distância entre esses dois valores. Na nossa sociedade de consumo, da alienação do trabalho e da vida, dessa pós-modernidade coisificada, pasteurizada e massificada, Ética é o que o mercado dita, como tal, na realização técnica do processo de produção e manutenção de sua infra e superestrutura de alienação sistêmica, e que nós, muitas vezes inadvertidamente, reproduzimos na forma dos piores estereótipos, paradigmas e clichês.

O Direito, em suma, nunca conseguiu se desvincular do poder, a não ser como filosofia pura. Pelo contrário, o Direito em si legitima, como conjunto de técnicas jurídicas de administração de normas positivas, o status quo sócio-político-econômico e cultural vigente em dada sociedade. E como o poder (ou poderes) tem apenas uma roupagem (oficialmente vestida pelo aparelho ideológico do Estado) de Democracia, veja, apenas a aparência, porque essencialmente - como disseram Freire, Frei Betto, Milton Santos, Boff e Bobbio -, a Globalização é uma nova e aperfeiçoada colonização, não tem ele um compromisso medular com aquela Ética filosófica e humana superior, mas tão-somente, como já foi falado, com a ética pós-moderna dos mercados globais.

Naquilo que remanescer de ético e ao mesmo tempo interessante à lógica de funcionamento dos mercados, o Direito terá cumprido sua função de promover a equidade; terá sido ético. Caso contrário, estará a norma positiva a promover e oficializar a incongruência e "desigualdade". Às vezes, subliminarmente, e mesmo que sutilmente e ideologicamente camuflada de equanimidade e como uma necessidade do Estado (vide o Stanilismo e o Nazismo). Isso acontece, evidentemente, não por culpa do Direito em si, nem tanto dos seus diversos ideólogos e operadores. Isso decorre, a bem da verdade, como consequência desse modelo secular de civilização e forma de "pensar" de mundo que ainda não conseguiu alçar o homem e o sentimento humano à condição de medida universal de todas as coisas.

Lucas Tenório

11.9.05

Plataforma de embarque

Quantos foram ao Céu?
Pergunta o diabo ao ascensorista

- O diabo fica ao léu
O Céu exclusivista
Os homens a sós
com Deus procurando uma pista


Lucas Tenório

papel ofício

A parafernália do dia
encontra-se pendurada no horizonte

vésper, rinoceronte e máquina de escrever.
No ocaso, todos vão para casa:
tatu, urubu e mandacaru
na goela do ruminante.

O poeta até tenta:
clica e cospe.
Clipe e pelica o assessoram no ofício.

Lucas Tenório

A rota

Uma ostra o guarda.
Cinco dedos cerrados
Uma ante (entre) o tarso
e a meta: Aorta. Arrota. A rota.

Lucas Tenório

10.9.05

O urubu imperial

Se um pernalta avoante
pousa no nosso rio
qual peixe, que peixe
sentirá frio?

E se na barriga do pescador
o anzol se acomodar
qual garça
regurgitará barbante?

Se na ponte o espectador
nada vê, nada sente
que imagem de defronte
senão um tosco Guararapes

Pescador, garça, peixe
todos agora são mascates
venderam o rio ao lixo
e o bicho os desfez de gentes

Pescador é doutor
Garça é comparsa
Peixe no novo reich
E o rio?

O rio leva ferraris
mansões, iates, foguetes
mal se lembra do azul
É agora pele e carcaça.

Lucas Tenório

Vocação do Recife - Frederico Barbosa


para Jomard Muniz de Britto


Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois -
Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância

Manuel Bandeira – Evocação do Recife


Recife sim
das revoluções libertárias
da teimosia ácida
do contra.

Não o Recife da minha infância
de golpe e exílios
gorilas e séquito
de vermes venais.

Recife sim
da coragem Caneca
a conscientização neológica
das lutas ligas lentes
do sempre
não.

Não o Recife sem literatura
no papo raso da elite vesga
a vida mole e a mente dura.

Recife sim
poesia e destino
na memória clandestina
de sombras magras
sobre pontes e postais.

Bandeira
sutil na preterição sim.

Clarice sim
frieza entranhada
na estranheza de ser Recife.

Recife sim
na literatura navalha
só lâmina solar
solidão sem soluços
só suor de João Cabral.

Recife sim
nos cortes certos
de Sebastião
contra a metáfora vaga
e o secreto.

Não o Recife sonho consumo
de turistas e prostitutas
na praia do sim
shopping sem graça
de Boa Viagem.

Recife sim
que em Nova Iorque
se revê
Hudson Capibaribe
ecos de Amsterdam.

Recife rios
ilhas retalhos
retiros velhos
reflexos de Holanda.

Não o Recife que revolta
na extrema diferença.
Não o Recife que expulsou
sua própria inteligência.

Recife sim
que se revolta
vivo.

Faca clara
que ainda fala
não.

http://fredbar.sites.uol.com.br/recife.html

Escrever poesia hoje - alea jacta est

Quando inicialmente tracei algumas primeiras linhas formais sobre a questão da poesia relativamente problematizada, estava a comentar com o editor do Jornal de Poesia, Soares Feitosa – brevemente e por e-mail -, uma observação do poeta Alexei Bueno sobre a poética brasileira “atual” (a de fins de 1990). Alexei, considerado pela crítica como “metafísico” (pelo que li de forma esparsa do hipertexto do próprio Jornal de Poesia), menos esquadrinhava que depreciava: principalmente da replicação insossa e estéril de fórmulas gastas – clichês? – no argumento do signo poético, fazia ele, pelo que me pareceu e se não erro, o termo de denúncia do esvaziamento lírico-espiritual-transcendental de um fazer poético anêmico, desidratado e eminentemente substantivo, uma malograda revisitação de Cabral pelos andaimes e roldanas do elevador “obsoleto” do pós-concretismo.

Li um pouco de Alexei, especialmente um seu poema chamado “Helena”, evocado, então, como um dos representativos, e no bojo da ocasião disse ao Feitosa ter encontrado no verso um conjunto formal com um “conteúdo” menos que proporcional.

O poeta da “pós-modernidade”, penso, encontra-se numa situação difícil, mas consigo mesmo. Não há escolas, movimentos, referências, mesmo estilos; não como ordinariamente os conhecemos. Há os grupos que me parecem mais escolhidos que egressos, adventícios da dinâmica psicopedagógica do escrever, da comunhão com o mistério da literatura: dos eleitos – pelo mistério; e não dos escolhidos, escolhidos por um filosofismo propedêutico e estruturalista do semântico/semiótico que é a (ou pretende ser) fina-flor de sua poesia. Mistério como, no dizer de Roland Bhartes, seria o Texto, a escritura, com tudo o que se lhe significa, e não algo infantilmente e simplificadamente esotérico.

Dificuldade do poeta consigo mesmo porquanto, se não eminentemente narcisista, ele se quer (também) espelhado em algo/alguém, parecido – verdade da cultura -, mas significativo do novo, do enigmático – mistério que em nossa época seria a decifração dos caos – verdade da escatologia. (Repousa ainda em nós o bom e velho homem de antigamente! Da costela de Adão e do Barro, o homem homo sapiens?)

Elucubrações à parte, li também no JP a conhecida carta de Mário Quintana em resposta a um jovem poeta que lhe pedia orientações em matéria de poesia. Quintana, depois de dizer ao consulente que seguisse seu próprio caminho, pediu que voltasse a falar-lhe depois de algumas dezenas de anos. Bom, frustrações à parte, o Quintana em questão ouviu o jovem poeta, respondeu-lhe, disse-lhe para voltar! E ah, Deus! Como seria bom se nós, poetas de 2005, tivéssemos o nosso Mário Quintana como conselheiro! Como isso nos seria reconfortante frente à mudez e frieza de tantos e tantos “consultados” diante de um discreto pedido de apreciação, um comentário, uma sugestão. É difícil hoje se receber, se se mereça, claro, um: “você escreve bem”; “gostei da sua poesia (do seu poema)”; “você precisa observar esse ou aquele detalhe”. Não. Não há resposta nesse sentido, acredito que com pouquíssimas exceções. Da minha experiência, há o silêncio como que a salvaguardar o descompromisso, o distanciamento, o não-envolvimento, o não-endosso a priori. A priori? De quê?

Vivemos essa era de dificuldades sem mecenas. Sem círculos - desarmados e espontâneos - de diálogo, conversação, troca de idéias. O que fazer aquele que pretende escrever poesia hoje e a um só tempo dialogar com outras perspectivas (tanto menos a dos afetados-iniciáticos), descontente com a retumbância singular e surda de sua própria voz? A poesia brasileira está tão ruim quanto disse Alexei? Paulo Leminski, Ana Cristina Cesar, Manoel de Barros, César Leal, Glauco Mattoso não fizeram a sua parte? Os letristas da MPB (essa uma outra nutrida controvérsia) não são poetas? Há espaço editorial fora das universidades e dos “clubes” literários fechados do velho eixo Rio-São Paulo?

E especificamente a jovem poesia, ou poetas da “agoridade”? A esses, o tatear no escuro. Não que a “descanonização” em si seja nociva, pelo contrário: provocadora, fértil; e o escuro, o horizonte difuso do devir da aurora!? Não. Uma espécie de eclipse que teima em manter-se “em cartaz”. A sorte está lançada ao poeta dos nossos tempos: com um dado viciado.

Lucas Tenório

9.9.05

cadaço(sic) e gravata

O cadaço do sapato
amarra o pé.
O pé tem seus dedos
Cada dedo com seu medo
Cada pé com seu arremedo
de forca.

Sei que o cadafalso
não faz
calo

meus medos pendurados
nos meus dedos
apertam a gravata.

Lucas Tenório

Habitat

Que habite no meu poema.
Seja ele casa
com as paredes ortogonais.
Sei que não a casa de Vinícius,
sem chão,
o largo dos pacifistas.

O meu modesto poema requer
um mocambo Freyreano.
Sei que não o mocambo alagoano
do guerreiro das senzalas,
da tribo dos Palmares,
nova Tupinambá.

O meu verso de taipa e argila,
a sala do sertanejo Lampião.
Sei que não a casa do Conselheiro,
o de lá,
com seu lajedo que ainda hoje cintila
ao sol de Belo Monte.
(a casa do desmonte dos generais)
Reerguida atrás do front,
bem aqui atrás,
na ante-sala-gleba do testamenteiro.

O meu poema requer uma casa,
um monumento ao séquito brasileiro.
Sei que não ao séquito modernista,
regionalista, concreto ou pós-moderno.

O meu poema só neste caderno.
No sêmen dessas poucas palavras.

Lucas Tenório

sal-da-de

Saudade imensa, sinto.
Intensa e impressa
faça-se dela sem fastio.

Sinto uma imensa saudade
que se afasta do usual.
O escrito dê-lhe gostos
de língua informal.

Sinto uma falta grande
que tempera o prato esperado
sonoridade aguada
ganhe beiços rebuscados

Sinto o sal da falta
de dedo em dedo composto:
Quem me dá um tira gosto
e a aguardente destilada?


Lucas Tenório

1.9.05

O Amor

Eu tenho quinze minutos para falar de amor.
Eu tenho um tempo que me suspende no ar.
Volteia, o meu tempo, e não me deixa em lugar algum.

Agora tenho menos de quinze minutos
e o tempo me segura e me surra.
Olha as minhas lágrimas com pena.
O tempo tem pena de mim.
Daí o tempo me diz:
Você tem dez minutos para falar de amor.

O tempo agora é indiferente,
duvida dos meus dez minutos e de mim,
enquanto eu o olho como a um pai,
com respeito e reverência.
Quase um Cronos.

Tenho uns sete, seis ou cinco minutos para falar de amor,
e o tempo agora expressa uma rotunda gargalhada.
Como é lindo o tempo!
O seu corpo, rosto, o seu intelecto!
Profundo conhecedor das nuances dos instantes.
(talvez tenha ejaculação precoce).

Dois minutos para falar de amor
e o tempo ensaia dar-me as costas.
Eu olharia sua bunda sem pudor ou sentimento de culpa,
se estivesse desnudo.
Eu a imaginava redonda como um relógio.
Eu queria rir do tempo.
Mas quem sou eu para rir de Cronos?

Eu queria encontrar uma vagina no tempo
por onde pudesse fecundá-lo
e paralisá-lo por nove meses. nove não.
Novecentos.

Instaria: devolva-me os novecentos segundos!
O tempo me diz:
Você tem um minuto e meio para falar de amor.

Se o tempo fosse mulher
eu a levaria ao orgasmo em um minuto e meio.
Eu tenho medo.
Comecei a ficar com medo.

O tempo ficou sem face: olhos, boca, nariz, sobrancelhas.
No seu lugar um espelho.
Eu me vejo nesse espelho
O tempo me consome
e quer me fazer acreditar que não saiba o que é o amor.

Eu iria conquistá-lo, copular com ele.
Amor é copular, perguntar-me-ia o tempo, certamente.
Eu lhe diria: quantos minutos? Trinta segundos.

Minha mente ferve em trinta segundos.
Tudo passa? Não.
Tudo se paralisa a meu redor.
Haveria tempo para uma ereção?
Sim. Talvez monstrando uma ereção ao tempo
eu me convecesse a mim mesmo de que sabia o que era o amor.

Mas eu queria mais. Quero o tempo no leito
e em trinta segundos olhar nos seus olhos e dizer:
Escute-me! E ficaria calado, literalmente ganhando o tempo.

Seios, vulva, coxas em minhas mãos.
O clitóris na boca e a nova pergunta:
Quanto tempo, meu amor?

Lucas Tenório

Conversa com o psiquiatra

Quantas folhas de uma árvore caíram
E pétalas de uma rosa?
Quantas patas de uma aranha se perderam
E com elas o veneno?

Perguntaste-me o que temo?
Um sol mais forte que o normal
A corte marcial americana
Porque não falo nada em inglês.

O que você fez?
Fiz uma caleidoscópio novo.
Ele era unidimensional e
Assim tornava a tudo.

Que cor escolhi?
O Azul, igualzinho ao céu
E aos cataventos do Mercado de Santa Cruz.

Sabe aquele artefato para vôo?
Levaria um daqueles ao Marco Zero
E tentaria sobrevoar os arrecifes.
Apenas alguns metros, porque tenho medo.

De quê?
De algumas coisas,
mas principalmente de altura e de ficar cego.

Minha alma enxerga, Doutor?
Ou não é a sua especialidade?
Vamos... Diga-me como está minha alma?
Essa coisa leve, boa e transparente.

É parecida com algodão doce?
É transparente como esperma?
É preta como carvão.

Posso vê-la ao caleidoscópio?
Sim.
Ela não existe mais...
Fugiu quando adoeci.
Eis o diagnóstico, Doutor:
Um homem vazio.
Um homem unidimensional.

Lucas Tenório

Nordestinidade difusa - Um usual estereótipo

Estava já há algum tempo inclinado a escrever alguma coisa sobre este fenômeno e estereótipo ideológico corrente, a que chamo – acredito que não originalmente, porque de formas diversas outros já assim aludiram ao assunto - de "Nordestinidade Difusa". A minha intenção no texto é a de imprimir uma modesta marca minha nessa aclaração, a partir da observação de alguns fatos e de algumas circunstâncias que se revelam e se revelaram, na minha opinião, vetores e portadores desse grande paradigma de conteúdo ideológico-reducionista, e de gosto usual e comum, dos mais populares aos mais sofisticados: o símbolo "Nordeste".

O que vem a significar o termo-idéia, difuso – reitere-se – "Nordeste", no imaginário psicossocial e no discurso formal de nossa sociedade, tanto a culta quanto a popular? Qual a sua conotação, e que valores simbólicos essa nomenclatura carrega e promove através do seu uso e de sua referência?

Começando pelo traço fundamental que lhe empresta essa sua marca, sabemos que o Nordeste é uma região economicamente pobre, principalmente se vista de uma forma classificatória geral (porque há vários "nordestes" nesse vasto espaço – voltaremos a essa questão, central, depois) e de um viés majoritariamente demográfico, ecológico ou geoeconômico.

Sabemos que as secas cíclicas que se abateram e se abatem sobre os seus sertões, principalmente, moldaram toda uma cultura e uma etnia sui generis, mercê do destemido sertanejo - biografado por Euclides da Cunha -, indissociavelmente marcado pelo ímpeto do desbravador luso-brasileiro e pela alma selvagem do índio nativo. Essas secas são conhecidas desde os primeiros estudos e observações que foram feitos sobre o Brasil, e seus flagelos constituíram uma espécie de adversidade fatalista com a qual se teve de conviver nos primeiros séculos da colonização, porquanto não havia os recursos técnicos e materiais (e as tecnologias) de que passamos a dispor em fins do século XIX e século XX, e que pudessem vir a ser usados, como podem hoje, em socorro ao problema da seca e à pobreza econômica da região.

Bom, no concernente às riquezas, sabemos como o Brasil se desenvolveu política e economicamente do descobrimento à contemporaneidade, e como o Nordeste perdeu sua maior e antiga importância nesses campos, e passou a ser uma região secundária no contexto da política e economia nacionais.

Sabemos que havia (e ainda há) uma "indústria da seca" na região, muito envolvida, segundo o discurso formal, em todo esse seu precário estado de subdesenvolvimento, um aproveitamento político-eleitoral-financeiro da indigência, da necessidade, da pobreza dos estados nordestinos. Mas também sabemos, em contrapartida, que fenômeno parecido aconteceu (e acontece) na Região Norte (permitam-me usar de outra grande generalização), e nos interiores de mais outras regiões brasileiras: na região Sul, no interior do Rio Grande do Sul, por exemplo; no Sudeste, no interior de São Paulo. Essa semelhança de situações foi apropriadamente colocada pelo antropólogo Darcy Ribeiro em seu livro "O Povo Brasileiro".

Sem entrar em investigação sobre a gênese e o porquê da supremacia econômica e política do eixo Sudeste-Sul sobre as demais regiões e estados do Brasil, análise complexa e extensa e que não caberia – nem interessaria tanto – aos propósitos deste pequeno artigo, compete-nos perguntar por que o Nordeste, no que lhe caberia de residual nessa organização continental e no status quo geral, mesmo assim ficou mais "atrasado" do que se poderia esperar, se houve, como disse Darcy Ribeiro em seu livro citado, processo assemelhado de organização e manipulação social de seus povos por parte das elites econômicas e políticas de outros lugares do país e de outras regiões nacionais, e que não apresentaram, nada obstante, problemas como os nossos?

Talvez não nos interesse tanto essa difícil resposta, mas sim, neste ponto, uma ousada pergunta - e como uma espécie de réplica necessária: de que Nordeste estaríamos exatamente falando quando nos indagamos recorrentemente sobre o seu "atraso"? De que Nordeste, leitor, você fala ou pensa quando reflete sobre a pobreza, o atraso, o subdesenvolvimento da região? O Nordeste dos nove estados e capitais, e das suas múltiplas e diversas cidades?

Afinal, exatamente de que Nordeste costumamos falar nesses momentos, se é que é possível e cabível esse esquadrinhamento?

Tivemos, mais recentemente na nossa História, especificamente no nordeste do Recife, de Pernambuco, do alcunhado "Leão do Norte" (inclusive pelo que representava a sua economia no início do século XX), a força (e ainda a temos) da tradicional Faculdade de Direito do Recife (antes em Olinda), a primeira do Brasil (junto à de São Paulo), e depois incorporada à Universidade Federal de Pernambuco. Legenda de Tobias Barreto, Joaquim Nabuco, Castro Alves, Augusto dos Anjos. Posteriormente o Recife/Pernambuco de Gilberto Freyre, Manuel Correia de Andrade (geógrafo), Manuel Bandeira, Joaquim Cardozo (poeta e engenheiro), Carlos Pena Filho (poeta), Paulo Freire, Mauro Motta, César Leal, Abelardo da Hora, Lenine, Alceu Valença, Francisco Brennand, Naná Vasconcelos, Austregésilo de Athayde, entre tantos outros.

Temos hoje o Recife do segundo pólo médico do Brasil, da medicina de ponta, de um dos mais avançados parques de informática e desenvolvimento de sistemas do país (ao lado do de São Paulo), com a experiência do Pólo Digital, no bairro do Recife Antigo, um conglomerado de unidades de desenvolvimento de sistemas interligadas em rede, como o Cesar (Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife), com a participação e coordenação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

O Recife/Pernambuco, além de suas universidades e de seus diversos pesquisadores em todas as áreas do conhecimento, dos congressos e convenções nacionais e internacionais, de sua economia de produtos e serviços, que teve início com os antigos Mascates do século XVIII.

Recife, nesse sentido e dessa forma colocada (lógico que o Recife tem uma série de problemas estruturais gerais, como de resto todas as capitais do Brasil), seria... "Nordeste"? Eu diria que não, pela observação que tenho feito e pelo entendimento que tenho desse fenômeno. Não, porque esse Nordeste, o termo-idéia-estereótipo pelo qual ele é amplamente identificado e compreendido, pressupõe uma série de simplificações e reducionismos na instrumentalização do seu significado: a emblemática e simbólica figura do retirante, o casebre característico, a pobreza, a fome, a seca, o tão famoso atraso com relação aos usos e costumes modernos das regiões mais prósperas do país.

Graciliano Ramos, em Vidas Secas, e João Cabral de Melo Neto, em Morte e Vida Severina, ajudaram a construir e a sagrar, no imaginário nacional, o símbolo do retirante desesperado e espoliado do Nordeste. Os romances regionalistas da segunda fase do Modernismo também apontaram nessa direção - e contribuíram para isso -, principalmente com José Lins do Rego e Jorge Amado. Abriu-se o espaço formal e cultural para a tão decantada, e não menos elaborada, simplificação e generalização semiótica e semântica do termo Nordeste; Nordeste querendo significar todas as mazelas a ele historicamente associadas.

Podemos falar, portanto, em alguma coisa como uma paralisia de paradigma no entendimento do Nordeste, e um seu decorrente círculo vicioso, numa generalização na forma de uma espécie de "nordestinidade difusa". O Nordeste é por conseguinte sempre visto e generalizado negativamente, e é visto dessa forma exatamente porque é Nordeste. O emblema Nordeste significa sempre atraso e pobreza, mesmo com o exemplo supracitado do Recife, que creio aconteçam, parecido, as situações do exemplo, na maioria das capitais da região, principalmente Fortaleza e Salvador, e em cidades do Agreste e Sertão nordestinos, como Petrolina, Campina Grande e Caruaru, que nesse sentido, no que fogem ao estereótipo, não são Nordeste, exceto naquilo que a ele, ao estereótipo, façam jus.

Há uma conspiração que faz com que esses exemplos, os positivos, não cheguem - ou cheguem ressignificados - com poder de desfazer essa generalizante imagem Nordeste nas mídias do Sudeste e Sul, e até na própria mídia da região? Não, não se trata exatamente de conspiração deliberada. Trata-se de uma postura cômoda, fácil e confortável, principalmente política e ideológica da maioria, em continuar pensando e entendendo o Nordeste dessa forma redutora, justificando tal procedimento através de recortes descontextualizados e tendenciosos de sua vida social, cultural, política e econômica.

Existe, evidentemente, um interesse conjuntural e estrutural maior, das elites políticas e econômicas do país, em preservar a riqueza do "Sul", e em manter-nos como sedes do bom Carnaval, da boa cultura, mas, veja, popular, do bom São João etc., algo parecido com o que se faz com o Brasil ao entendê-lo como o país do samba, da mulata, das praias, do jeitinho brasileiro.

Em conversa com uma amiga de São Paulo, eu dizia que nós, Nordeste, temos muito a melhorar e a fazer, evidentemente, mas que em parte já o fazemos sem termos o eco e a visibilidade que merecíamos por essas realizações, haja vista a curiosa, desproporcional e questionável facilidade peremptória em se noticiar a todos quanto se possa mais uma "mazela" nordestina, por menos representativa que seja ou possa parecer para o estado de coisas vigente.

Disse-lhe que, na minha opinião, para que o Nordeste vença esse seu emblemático, e de certa forma simbólico, "atraso", é necessária uma mudança de paradigma na sua compreensão - e desse seu atraso, por parte de todos nós. O Nordeste começaria a mudar na cabeça de cada um de nós, e a cabeça, o trabalho e a competência de cada nordestino começaria a mudar ainda mais o Nordeste, como já aconteceu no passado e vem sendo feito atualmente em larga escala. Nordeste dos seus Estados, da sua ciência e cultura e de seus valores diversos, e não dessa mistificadora "nordestinidade difusa".

Lucas Tenório